Dossier
- Loucura
e Desrazão: Apresentação
O
primeiro número da revista CONCEITO implicou a colaboração entre filósofos,
psiquiatras, historiadores e estudiosos da literatura. Procuramos fazer uma história
das representações da loucura em Portugal, acompanhando dois domínios: aquele
que pertence à história propriamente dita, e que se dirige aos arquivos dos
asilos e à bibliografia médica, e aquele outro que procura reconstituir
genericamente as representações do louco, quer positivamente enquanto um modo
da condição humana, quer negativamente, como o outro da razão. Por isso
escolhemos para este primeiro conjunto de trabalhos o título de "Loucura e Desrazão".
No
plano institucional este número da
revista apresenta parte do material que se tem produzido no interior do projecto
de investigação Psiquiatria e
Fenomenologia na primeira metade do Século XX em Portugal, do Centro de
Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, criado em 2003. Mas
é o prolongamento de um outro, com o título História
da Loucura em Portugal, igualmente financiado pela FCT, e que se desenrolou
entre 1999 e 2001 no Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.
Desde
o início que os colaboradores deste projecto se confrontaram com uma questão
prévia: será que, em Portugal, se verifica essa mesma correlação entre a
história da psiquiatria e a história das representações da razão e da
verdade que Michel Foucault descobriu estar na origem da consciência moderna?
Haverá algum paralelo entre as metamorfoses da figura do louco, tal como se
constituem nos tratados médicos portugueses, e as diferentes aproximações à
ideia de humano que atravessam o ensaísmo disperso dos nossos pensadores? A
resposta só pode ser negativa. No plano da análise da intersecção directa
dos domínios, o ensaísmo e a psiquiatria portuguesas foram quase indiferentes
entre si. A psiquiatria em Portugal, respondeu genericamente a um princípio de
actualização de conhecimentos e de eficácia terapêutica, colocando algumas
vezes os nossos investigadores na condição de pioneiros. Apesar de estar
permanentemente marcada pelas questões antropológicas da consciência e da
racionalidade, e atenta sempre à transformação dos modelos de explicação e
de verdade produzidos pela filosofia do seu tempo, a psiquiatria portuguesa
nunca se reclamou dos trabalhos de ensaio ou de história da filosofia escritos
em Portugal. Os
pensadores que em Portugal se reclamavam da ideia de filosofia,
pelo seu lado, sempre se alimentaram de
uma soberana indiferença, não só pelo trabalho das ciências positivas, como
pelos adquiridos dos programas teóricos que foram surgindo no centro da Europa.
Assim
se explica que alguns dos textos que hoje reconhecemos como parte da história
do que seria o "pensamento português" tenham
sido escritos por médicos alienistas. Júlio de Matos continua a ser paradigmático,
mas também Miguel Bombarda, Egas Moniz, Barahona Fernandes, Sobral Cid ou, mais
recentemente, Coimbra de Matos. Também é reveladora a ausência nas obras do
ensaismo português de ressonâncias antropológicas, estéticas, políticas ou
culturais de algumas mutações decisivas do campo clínico que se verificaram
em Portugal nos últimos 100 anos. A chamada
"filosofia portuguesa" foi totalmente indiferente às questões da loucura, mesmo
quando a loucura aparecia como explicação para alguns casos marcantes da
cultura contemporânea - Nietzsche, Strindberg, Van Gogh, ou, na literatura
portuguesa, Antero de Quental, Manuel Laranjeira, Mário de Sá Carneiro. A
superficialidade com que alguns autores trataram o tema da loucura – como
Leonardo Coimbra ou Teixeira de Pascoaes - deixa perceber alguns dos factores da
pobreza da tradição do ensaísmo
em Portugal. Pode
mesmo dizer-se que a exclusão do tema da loucura no pensamento
filosófico de Portugal teve um efeito devastador. Apagando da sua agenda a
loucura, o pensamento português exclui-se de alguns dos problemas centrais da
cultura contemporânea.
Isso
significa que o que se foi escrevendo entre nós sobre a loucura do ponto de
vista especulativo só tem uma utilidade
em negativo. Nenhum
texto que reclame da ideia de filosofia escrito por autores
portugueses faz parte de algum capítulo de uma história da loucura
em Portugal. As
derivas poéticas sobre a vida interior do louco que se
encontram nas obras de Teixeira de Pascoaes e de Leonardo Coimbra não excedem o
regime de uma consciência irónica da razão que se encontrava já
em O Elogio
da Loucura de
Erasmo. Nenhum dos nomes que hoje se
pretendem elevar a património do pensamento português se demorou com rigor nas
questões da loucura, como doença mental, ou
da desrazão como uma outra forma da experiência. Por isso, tudo o que existe
sobre a loucura em Portugal pertence ao campo médico, e tenuemente ao campo
literário. Torna-se quase impossível fazer em Portugal uma história da
loucura que não se limite aos arquivos dos asilos, à evolução da doutrina
psiquiátrica, ou à ficção de uma racionalidade excêntrica ou extravagante.
O projecto que orienta este número
da CONCEITO parte de duas convicções: a) a urgência de reconstituição dos
principais paradigmas que orientaram a psiquiatria e a prática dos asilos em
Portugal e, b) da necessidade de recorrer a modelos filosóficos exteriores ao
espaço do ensaísmo português para compreender a instauração clínica e
antropológica da loucura
em Portugal. Isso
faz com que o nosso projecto se oriente por três linhas nem
sempre convergentes. Uma, que se inscreve integralmente num trabalho de arquivo,
outra que acompanha alguns textos paradigmáticos da literatura portuguesa
contemporânea, e uma terceira que arranca de Foucault e procura utilizá-lo
como ferramenta para a leitura desse arquivo médico e dessa tradição literária.
No primeiro domínio, os campos de trabalho têm sido os seguintes: 1.
descrições pessoais de formas de sofrimento mental, 2. legislação sobre o
encarceramento da loucura a partir do sec. XVII. 3. análise do regime de práticas
perante a loucura e a progressiva constituição da ciência médica da loucura.
Aqui se situam os trabalhos de José Subtil e Rita Garnel, aqui publicados.
No
plano do que seria uma teoria da cultura portuguesa temos procurado construir a
história das representações literárias da loucura (Antero de Quental,
Teixeira de Pascoais, Manuel Laranjeira, Fernando Pessoa, Mário de Sá
Carneiro, Raul Brandão, Raul Proença).
Neste número publicamos os estudos de Patrícia San Payo e de Jerónimo Pizarro
- dedicados a Raul Brandão, o primeiro, e
a Antero de Quental e Fernando Pessoa, o segundo.
No
domínio filosófico procura-se determinar a função e o
lugar da loucura no pensamento de Michel Foucault e, desse modo, precisar o
papel que o pensamento da loucura aí desempenhou de crítica e de inversão da
tradição filosófica. Atravessamos aqui domínios tão vastos e nucleares como
a constituição do saber e da verdade, a elaboração do campo transcendental,
os limites (e o alargamento) da razão. Os trabalhos de José Luís Câmara Leme
e de Nuno Melim pertencem a este domínio.
Cada
vez se torna mais clara a necessidade, para a compreensão do "caso" português,
dos muitos trabalhos já feitos sobre a história da psiquiatria no Brasil. Ali,
a problematização dos textos dos médicos alienistas, das práticas terapêuticas,
dos regimes jurídicos sobre internamento compulsivo, ou sobre inimputabilidades, tem já uma
imensa tradição. As visitas que Foucault fez ao Brasil, e os vínculos que aí
estabeleceu com alguns dos pensadores mais significativos da comunidade filosófica
e psiquiátrica, permitiu que se fosse escrevendo, não apenas o que pode ser
considerado uma versão tropical da História
da Loucura na Idade Clássica, mas sobretudo uma visão política e
epistemológica das grandes instituições e dos grandes textos sobre a loucura
escritos em língua portuguesa. Nesses estudos é possível detectar
dispositivos comuns em Portugal e no Brasil de explicação das patologias
mentais tal como eles surgem na literatura, nas doutrinas jurídicas, nos
tratados escolares de psicologia, nas obras de filosofia. É neste sentido que
incluímos neste conjunto de trabalhos sobre "Loucura e Desrazão"
contributos de investigadores brasileiros como Roberto Machado, Peter Pál
Pelbart e Vera Portocarrero.
Dois
outros textos ajudam a compreender a arqueologia do tema da loucura no
pensamento contemporâneo. Trata-se de um estudo sobre o conceito de
"inconsciente" em Schelling, escrito por Teresa Pedro, e da entrada
"Loucura" que Voltaire escreveu para o seu Dicionário
Filosófico, traduzida por Nuno Melim.
Em
números posteriores da revista esperamos publicar outros estudos sobre o tema
da loucura e desrazão. Queremos alargar este trabalho interdisciplinar para além
do que se vem fazendo no interior do projecto Fenomenologia e Psiquiatria. Contamos que a comunidade dos que se
dedicam à filosofia, ao direito, à história, à teoria da literatura, à
psiquiatria, à sociologia, ou à antropologia, se venha a reconhecer no(a)
CONCEITO.
Nuno
Nabais
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