Crónica
J. L. engraxa sapatos no Rossio há mais de vinte anos. O verão, para ele, é a pior época.
– Os portugueses aderiram ao estilo dos brasileiros e já não têm vergonha de andar de chinelos ou de ténis.
Os novos materiais prescindem da graxa e do lustro – uma pequena revolução a juntar a muitas outras.
Nascido em Trás-os-Montes e criado em Angola, J.L. chegou a Lisboa em 1977. Tinha 20 anos, a idade de cumprir o serviço militar. (Era “o contributo de cada cidadão à defesa da Pátria” – obrigatório). A seguir, arranjou emprego numa fábrica de material de guerra.
– Trabalhei lá até a fábrica fechar. Depois, desemprego, etc.
Os engraxadores do Rossio, “ainda há uns 13 ou 14”, pagam à Câmara Municipal de Lisboa uma taxa mensal de 8,73 euros. Como outras profissões, já conheceram melhores dias.
– Antigamente, vínhamos para aqui de manhã, depois íamos ao cinema e voltávamos à tarde. Podíamos ganhar mais do que um empregado de escritório.
J.L. cobra 3 euros por engraxar um par de sapatos.
– Sei que é caro. Por três euros pode-se comer uma sopa, uma sandes e um café.
Depende do sítio, claro: na esplanada da ‘Suíça’, do outro lado da praça, só uma bica custa 2,10 euros. O trunfo de J.L. é a pomada, comprada numa loja quase centenária da Rua Poço do Borratem, especializada em “solas, cabedais e produtos similares”.
– Esses produtos auto-brilhantes que se vendem nos supermercados dão cabo do calçado. É melhor não usar nada.
J. L. fala sem ressentimento. O passado passou; preocupa-o mais “o problema dos refugiados” que estão a afluir à Europa em números nunca vistos.
– Já há divisões entre os países por causa dos refugiados. A União Europeia vai acabar. Não lhe dou mais do que cinco anos.
J.L. vê os telejornais com atenção. Isso e os documentários da National Geographic sobre a vida dos animais.
– Já reparou como os leões defendem a sua espécie e o seu território? É um instinto natural. Com as pessoas é o mesmo.
Pelo Rossio passam diariamente milhares de pessoas, de diferentes classes e etnias. J.L. gosta de observar a multidão.
– Às vezes, vejo pessoas muito bem vestidas, fato e gravata, que andam com sapatos velhos e sujos!… Não percebo, sinceramente, não percebo essas pessoas!
Texto: António Caeiro
[O Corvo] “Não percebo as pessoas que andam com sapatos sujos!” https://t.co/rZQiiHMvB5 #lisboa
Se eu tivesse nascido em Angola era bestial. Como não nasci em Angola não presto para nada. Não obstante sentir e pensar o mesmo que outro ser humano qualquer nascido em qualquer ponto do planeta. Compreendes? É magnifico saber isto. 🙂