Rua de São Lázaro começa a sair do limbo em que mergulha há décadas

REPORTAGEM
Fernanda Ribeiro

Texto & Fotografia

URBANISMO

Arroios

23 Março, 2016

À excepção do trânsito intenso que a cruza, entre o Martim Moniz e o Campo dos Mártires da Pátria, e da dinâmica gerada por uma escola básica, a Rua de São Lázaro é parca em movimento. Mas, nos últimos meses, surgiram alguns sinais de mudança, com edifícios a entrar em obras. A Câmara de Lisboa, num plano lançado recentemente, atribui incentivos fiscais aos proprietários que recuperem os imóveis. E começou a notificar antigos comerciantes, seus locatários, de que terão de sair dos prédios que ocupam, para avançar com um programa de arrendamento acessível. Mas não será ela a recuperá-los.

“O movimento aqui é cada vez menor. E uma das coisas que poderia melhorar isto era a reabertura do Hospital de São Lázaro. Trazia aqui muita clientela e, desde que fechou, o movimento diminuiu muito”, queixa-se um comerciante da área da restauração da Rua de São Lázaro, num lamento repetido por outros, entre os que mantêm portas abertas. Alguns acabaram mesmo por encerrar.

Parece mergulhada num limbo e parada no tempo, a Rua de São Lázaro, na encosta que liga o Martim Moniz ao Campo dos Mártires da Pátria. Memórias de outras épocas da vida na cidade ali permanecem, nos seus velhos armazéns de revenda e nas lojas de soutiens de tamanhos gigantes, expostos aos olhos de quem passa, em varões visíveis da rua. Outras artes concorrem e ali ainda se pode ver um estofador a trabalhar. Mas este panorama está prestes a alterar-se.

Os sinais de mudança estão traçados. E não só no papel. Se o ambiente que se respira na velha Rua de São Lázaro é ainda o de de abandono do património de outras épocas – grande parte dos seus edifícios, muitos deles classificados, data dos séculos XVIII e XIX –, também já se vêem alguns prédios a iniciar obras, para se transformarem em hotéis ou em alojamentos turísticos, a aparente “solução única” encarada por quem em Lisboa vai investir no imobiliário.

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Recentemente, a Câmara Municipal de Lisboa – não tendo conseguido ainda avançar com toda a transformação prevista para a Colina de Santana com o encerramento e alienação dos hospitais – aprovou um plano de reabilitação para a zona da Rua de São Lázaro, numa área que se estende também à Rua do Desterro e à Calçada do Desterro e é delimitada a tardoz pelos edifícios da Rua da Palma, e ainda pelo Hospital de São José e pelo Martim Moniz.

Nesse plano, a autarquia promete requalificar o espaço público e conceder benefícios fiscais aos proprietários que executem obras nos seus prédios: isenta-os do pagamento de IMI durante cinco anos, renováveis por outros cinco e concede igualmente a isenção do IMT (Imposto sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) a quem adquira prédios ou fracções, para os transformar depois de reabilitados em habitação permanente.

O plano para requalificar a zona – onde a autarquia é uma das principais proprietárias do património edificado, parte dele devoluto – passa também pela criação de um programa de arrendamento acessível que possa vigorar na zona da Área de Intervenção Urbana da Rua de São Lázaro.

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Mas não será a autarquia a executar as obras de reabilitação. Apesar de tentar motivar os proprietários a fazê-lo, à custa de incentivos fiscais, a câmara pretende alienar os seus imóveis para que sejam os eventuais compradores do património a executar as obras e, assim, poder estabelecer o programa de arrendamento acessível.

Tendo em mira a alienação dos seus prédios – que deverão ser colocados em hasta pública, segundo foi comunicado a um comerciante – a câmara começou já a notificar alguns lojistas para que abandonem o local onde estão instalados.

Por enquanto, está apenas a notificar aqueles a quem, a título precário, cedeu o espaço das lojas. Mesmo que o “precário” possa significar um hiato de tempo que ultrapassa os 30 anos.

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É o caso do estofador Carlos Tomaz, estabelecido desde 1977 na Rua de São Lázaro, 56, com quem a câmara mantém, há quase 40 anos, um contrato de cedência a título precário. Ele foi um dos que já recebeu a notificação para desocupação do espaço. Algo com que não se conforma e que contestou por escrito numa carta enviada à câmara.

“Apoio totalmente que se promova um Programa de Arrendamento Acessível, porque a cidade precisa de voltar a ter mais população residente, sobretudo população jovem. O que não compreendo é que esse programa se faça com a desocupação de comércios rentáveis e, em particular, de ofícios em extinção”, diz. “Este é o único sustento do meu agregado familiar, um filho menor e esposa desempregada”, alega o estofador, que ali trabalha há 39 anos e se especializou no restauro de peças antigas, uma arte que já ensinou ao filho.

A mesma renitência manifestou ao Corvo um outro lojista, igualmente notificado: Manuel Rocha, detentor do espaço das Confecções Boucosil, na Rua de São Lázaro. “Quando fui à câmara, lá disseram-me que estes espaços vão ser colocados em hasta pública. Nesse caso, eu pedia um empréstimo e comprava, para me manter neste sítio, onde estou há 29 anos, o que até me devia dar direito a ter prioridade na compra. Mas eles disseram-me que não. E nem sei como fazer, porque tenho uma filha a estudar na universidade e tenho na loja vários empregados que terei de despedir, se tiver de sair daqui”, disse ao Corvo Manuel Rocha.

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Já o dono do café A Caprichosa – situado mesmo ao lado do Bolero, que até aos 70 era o poiso nocturno da boémia lisboeta – acha que devia ser a câmara a dar o exemplo e fazer obras no seu património, durante décadas deixado ao abandono. “Há prédios aqui na rua que estão desabitados há mais de 30 anos e muitos deles são da câmara. Ela é que devia dar o exemplo”, diz João.

“A câmara, para mim, até nem é um mau senhorio. Mas aqui o que falta é movimento. E desde que fechou o hospital de São Lázaro, então, quase não entra aqui ninguém…O hospital trazia muita clientela. O problema é que as pessoas não têm dinheiro”, diz o dono da Caprichosa.

Já a nível do espaço público, o plano elaborado pelos serviços municipais não explicita que tipo de intervenções irão ser realizadas. Mas para Lucinda Raposo, uma velha residente da Rua do Desterro – “vim para cá com quatro anos, tenho agora 84” – o que era mesmo preciso era que a câmara arranjasse a calçada. “Isso é que era um grande serviço, porque a calçada está toda esburacada”, diz esta antiga técnica de contas da Kors e da Montblanc.

Não longe da casa onde mora Lucinda, há já um prédio prestes a entrar em obras. “Era onde antes estava a Pierre Cardin. Agora, não sei o que vai ser. Se calhar um hotel…”, diz esta antiga moradora.

Na esquina da Calçada do Desterro com a Rua do Desterro, está já em obras um edifício que ocupa quase todo o quarteirão. Os trabalhos começaram com a demolição, para que ali se construa um novo edifício destinado a alojamentos turísticos, segundo revela o cartaz da obra afixado na fachada.

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Mais acima, na Rua de São Lázaro, existe a mais antiga escola de Lisboa, fundada no “anno de 1875”, como se lê na placa da Escola Básica nº 1, que é frequentada por alunos das diversas etnias e nacionalidades fixadas na zona, onde o comércio se alargou há alguns anos já, também a lojas chinesas, kebabs e mercearias paquistanesas.

Não longe da escola, estão dois edifícios em vias de entrar em obra. Um deles, ostenta um enorme cartaz relativo a um empreendimento denominado Colina de Santana, e destina-se, pelo que se percebe no anúncio, a um edifício de habitação com apartamentos T1, T2 e T3.

“As obras ainda não começaram porque ainda vive lá um senhora com 92 anos que os proprietários terão de realojar”, contou ao Corvo uma comerciante, de uma loja próxima.

Do lado oposto, entaipado e já em obras está um outro prédio, o número 10 da Rua de São Lázaro, que será também reabilitado para, presumivelmente dar lugar a apartamentos para habitação.

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Há muito tempo a necessitar de obras, este edifício, de cuja fachada desapareceram já o relógio e muitos dos vidros de formas geométricos que o decoravam, poderá ser um dos expoentes a garantir alguma eficiência ao plano traçado pela câmara. “Se tudo correr bem, entraremos em obras este ano, mas, por enquanto, ainda estamos a analisar os orçamentos que nos foram apresentados”, diz ao Corvo o filho do proprietário da Garagem Auto Lis, segundo o qual são atractivos os benefícios fiscais propostos pela autarquia.“A isenção do IMI é um bom incentivo”, afirma.

Já fora do perímetro da Rua de São Lázaro, mas ainda dentro da mesma Área de Reabilitação Urbana está, porventura, o mais conhecido dos imóveis desta zona, com fachada para a Rua da Palma e a fazer esquina com a Calçada do Desterro: o edifício da Garagem Auto Lis, um imóvel classificado de Interesse Público, que é um exemplar da arquitectura modernista de Lisboa.

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COMENTÁRIOS

  • Tuga News
    Responder

    [O Corvo] Rua de São Lázaro começa a sair do limbo em que mergulha há décadas https://t.co/cxEMrZ2zQA #lisboa

  • Elisa Nunes
    Responder

    Os grafitis da Calçada do Lavra estão a ser eliminados. Até quando ?

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