“Afirma Pereira” – Obra-prima de Antonio Tabucchi adaptada para BD
Lisboa nos Livros
Um dos grandes livros sobre a Ditadura de Salazar, que é, simultaneamente, uma reflexão sobre a relação entre o homem e o seu meio. Afirma Pereira, obra-prima de Antonio Tabucchi, em BD, pela mão de Pierre-Henry Gomont.
«Dirijo a página cultural, que trata sobretudo do correio sentimental», afirma Pereira em conversa telefónica com o seu futuro colaborador, o jovem Francisco Rossi. Simultaneamente explica-nos, a nós, leitores, uma boa parte do que é o seu resignado e encafuado mundo, à medida da Lisboa claustrofóbica que acolhe o coração da Ditadura salazarista.
Publicado originalmente em 1994, em plena campanha eleitoral responsável pela ascensão de Silvio Berlusconi ao poder, o mais famoso romance de Antonio Tabucchi passa-se no final da década de 30, reflectindo uma sociedade amedrontada e refém de atávicos receios e pudores, explorados pela repressão política em todo seu potencial. Do lado de lá da fronteira, as terras de Espanha vivem dias os conturbados da Guerra Civil e uma das preocupações do regime português é conter quaisquer contaminações que essa resistência ao Fascismo possa transportar para as almas lusitanas.
Pereira trabalha no jornal Lisboa, habitando uma rotina triste e plena de desalento, depois da morte da mulher, com cujo retrato mantém recorrentes conversas, à falta de outros convívios («sonho com ela porque gosto de sonhar com ela», admite). Uma troca de palavras com Marta, a namorada do referido Rossi, ajuda entender melhor Pereira: «Não pertence à Juventude salazarista? E Você? Há muito tempo que não pertenço a género nenhum de juventude».
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Uma adaptação a privilegiar a dimensão onírica da narrativa
A adaptação de Pierre-Henry Gomont (n. 1978) é magistral, com inúmeros cenários alfacinhas de reconhecimento evidente, concedendo ao trabalho uma afinidade emocional acrescida a todos que vão identificando os cenários da acção, passeando pela Praça da Alegria, pela Rua Nova do Carvalho e Cais do Sodré, Jardim de São Pedro de Alcântara ou pela Praça Luís de Camões. Os eléctricos, os telhados, a arquitectura circundante…em imensos elementos visuais respira esta cidade e os seus ícones.
Pereira contrata Rossi com o intuito deste escrever obituários, a pensar em figuras famosas que poderão partir a qualquer momento, pelo que será imperioso o jornal assinalar o facto devidamente. Dois aspectos se colocam, desde logo: primeiro, a preocupação com a escolha das figuras em questão. Rossi pende para Lorca ou Maiakovski, personagens que, compreensivelmente, não acatam parecer positivo do director do jornal ou de uma clique circundante. Por outro lado, o simbolismo da preocupação de Pereira, em antecipar a morte, estar um passo à frente dela, o que se coaduna perfeitamente com a sua personalidade.
Os tempos não estão para heróis e a elite que faz um jornal divide-se entre os que aceitam as regras ou se arriscam a pagar por afrontá-las. Quando Pereira admoesta Rossi, é também uma auto-crítica, mais ou menos consciente, que lemos: «Não sei se você é um inconsciente ou um provocador… mas garanto-lhe que o jornalismo que se faz hoje em Portugal não tem lugar nem para uns, nem para outros».
Porém, Pereira não é feliz. Com o pretexto de combater maleitas físicas e maus hábitos alimentares, vai em repouso e dieta para a Parede, junto ao mar. O Dr. Cardoso vai-lhe abrir novas perspectivas, não em relação à dieta para o corpo, mas sobre as metamorfoses que habitam o seu espírito, ao partilhar consigo uma teoria sobre a personalidade, A Convenção das Almas. É o passo que faltava para desencadear um autêntico homem novo, que aguardava na sombra dos medos o momento de conquistar vida própria.
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«A História é um animal daqueles grandes, não se deixa domesticar facilmente», afirma Pereira, perante uma Marta algo surpreendida. O medo grassa por um país circunscrito à sua clausura assumida: «Penso que a Itália e a Alemanha ficam na Europa. E a Europa é longe. Aqui, estamos em Portugal, e o que se passa lá fora não nos diz respeito», explica-lhe o Sr. Silva, à mesa da Casa do Alentejo.
Do ponto de vista gráfico, o trabalho de Pierre-Henry Gomont é de uma originalidade a toda a prova, quer pelo traço adoptado, quer por algumas soluções encontradas, que reforçam a dimensão onírica e subjectiva da narrativa. Veja-se a utilização de filacteras com ilustrações em vez de texto (ou com diálogos dentro de diálogos), criando linhas de meta-linguagem que exploram interpretações e possibilidades de sub-texto. Além disso, a gama cromática revela-se eficaz na transposição dos ambientes pretendidos – quer estejamos a falar de espaços físicos, quer das sucessivas transformações psicológicas onde se joga a narrativa e a sua evolução.
Em suma, a história da transformação de um homem perante a realidade. A história de um país fechado sobre si mesmo, testemunha cega, surda e muda do seu tempo. E uma parte da história de uma cidade, contada pelos seus cenários. Tudo boas histórias.