Festival Todos chega à Graça e quer “eliminar ideia de que estrangeiros não podem viver no centro de Lisboa”

REPORTAGEM
Sofia Cristino

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CULTURA
VIDA NA CIDADE

São Vicente

20 Setembro, 2018

“Eliminar a ideia de que os estrangeiros não podem viver no centro da cidade porque existem lá lisboetas” é um dos objectivos da décima edição do Festival Todos – Caminhada de Culturas, que arranca ao final da tarde desta quinta-feira (20 de Setembro) e decorre até domingo (23 de Setembro), na freguesia de São Vicente. “Há uma nova relação de cosmopolitismo desejável, onde o turista também é ‘o outro’, que a cidade deve oferecer. O festival poderá ajudar a combater um discurso xenófobo que já se vai ouvindo”, acredita Miguel Abreu, director-geral do Todos, em declarações a O Corvo.

Volvidos dez anos da primeira edição, a realidade da diversidade cultural de Lisboa mudou muito, mas os desafios do evento não se alteraram, garante Miguel Abreu. “Continuamos a querer combater o preconceito e a ameaça que ‘o outro’ ainda representa, que já não é ‘o outro’ só dos países pobres, mas também é o imigrante rico que compra casas em Lisboa”, explica.

Para Miguel Abreu, é preciso desmistificar a ideia de que há “estrangeiros a mais” em Lisboa. “Há muito Airnb, mas também há muitas pessoas que viveram aqui toda a vida. Não vejo uma mudança assim tão radical”, diz, avançando que o Todos em Casa, um projecto de cariz social direccionado para locais, já arrancou. Doze pessoas acamadas, apoiadas pela Voz do Operário, receberam três músicos nas suas casas, iniciativa que também demonstra o acompanhamento dos locais, ao longo do ano. A missão do festival – fomentar o encontro de diferentes nacionalidades numa viagem pelo mundo, sem sair de Lisboa – tem sido a mesma, ao longo da última década.

 

E, numa altura em que a cidade recebe mais habitantes estrangeiros, “torna-se urgente reforçá-la, aceitando a mudança como algo natural”, diz o responsável. “Podíamos trabalhar em bairros só com lisboetas ancestrais, mas a ideia é que cada um de nós ganhe consciência da importância de conviver, conhecer e aproximar-se do outro, que já pode estar a viver ao nosso lado ou a chegar. Já não existe ‘o outro e nós’, somos todos, a realidade mudou”, observa.

O evento acolhe 25 mil pessoas por ano, “uma verdadeira confusão”, mas Miguel Abreu diz que a ideia é mesmo essa. “Queremos que as pessoas tropecem umas nas outras, costumamos dizer que somos uma espécie de agência de convívio entre pessoas de todo o mundo, que, de outra forma, não se conheceriam. Se não fosse o festival, há vizinhos de há 30 ou 40 anos que não se falariam”, garante.

 

Nos primeiros cinco anos do festival, pensado por Miguel Abreu para a Câmara Municipal de Lisboa (CML), os bairros escolhidos – Martim Moniz, Intendente e Mouraria, Poço dos Negros e São Bento – eram “mais deprimidos”, segundo palavras do próprio. Mas, nos últimos três anos, os sítios seleccionados – Colina de Santana e Campo Mártires da Pátria e, agora, o de São Vicente – são “mais revitalizados”, fruto também da requalificação do edificado em Lisboa. “Queremos consciencializar os lisboetas e quem está a viver ou estudar na cidade e mora na periferia, para a interculturalidade existente. Por isso, é que também somos nómadas e, de três em três anos, mudamos o bairro onde fazemos o festival”, explica.

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O festival quer ajudar a combater "discurso xenófobo" face ao cosmopolitismo recente de Lisboa

Através de espectáculos de música, dança, teatro e funambulismo, o festival Todos junta artistas profissionais com amadores e pessoas de várias partes do mundo. Para que “o outro deixe de ser visto como uma ameaça, mas como uma ‘riqueza’ intelectual”, explica o responsável. Este ano, vão regressar três concertos que foram grandes sucessos em edições anteriores, dois de entrada livre e um pago. Um deles, o concerto Orquestra Todos, constituída por músicos brasileiros, cabo-verdianos, indianos e portugueses, entre outras nacionalidades, arranca às 22h desta quinta-feira (20 de Setembro), no salão de festas da Voz do Operário.


 

Os outros dois, os concertos dos Violons Barbares (3 euros) e da Orchestra di Piazza Vittorio (entrada gratuita), acontecem no claustro do Mosteiro de São Vicente de Fora, no Sábado (dia 22 de Setembro) e no Panteão Nacional, no domingo (23 de Setembro), respectivamente. Há espectáculos de entrada livre, mas a maioria não serão, ao contrário dos anos anteriores, para evitar filas de espera muito longas para aquisição dos bilhetes.

 

Os locais não foram escolhidos ao acaso. Desde o início do festival, há uma preocupação em dar a conhecer o património histórico dos bairros de Lisboa. A utilização das ruas e do espaço público continua a ser, também, uma das marcas identitárias do festival. A Kamchàtka, uma companhia de teatro da Catalunha, pela primeira vez em Portugal, vai invadir a Feira da Ladra.  No sábado (22 de Setembro), às 11h, oito actores vão passar-se por refugiados com malas de viagem perdidos no centro de Lisboa. “Vão improvisar o que sentem, quando chegam a uma terra onde não conhecem as pessoas e os seus hábitos. Queremos ver a estranheza com que as pessoas vão receber estes inesperados artistas, como os feirantes vão reagir no momento”, revela Miguel Abreu.

 

A mesma performance volta a repetir-se às 15h, mas com partida do Largo da Graça para as ruas do bairro, num espectáculo de rua que poderá ser “muito provocatório e estimulante para a reflexão”, considera o responsável. Os intérpretes vão deitar-se no meio da estrada, subir pelos eléctricos e invadir as ruas da Graça.

 

 

Nas traseiras do Panteão Nacional, decorrerão três espectáculos de funambulismo e também estes têm uma mensagem: “uma metáfora sobre os equilíbrios e as reflexões de equilíbrios que temos de fazer no mundo em que vivemos para nos encontrarmos uns com os outros”. De sexta a domingo, haverá na Voz do Operário espectáculos de circo, pelo valor de 3 euros, naquele que é “um dos momentos altos” do evento. “Queremos que pessoas de várias partes do mundo, que nunca viram um espectáculo do novo circo ao vivo, tenham essa oportunidade. Aqui, a multiculturalidade está na plateia e não no espectáculo”, explica Miguel Abreu.

 

O festival é aberto a todas as faixas etárias e, por isso, no sábado (22 de Setembro), às 15h30, na Escola Básica de Santa Clara, vai haver ainda uma conversa com crianças para discutir o racismo, intitulada “Porque é que há uns que gostam mais dos escuros, e outros dos claros?”, de entrada gratuita. À mesma hora, a Escola Básica e Secundária Gil Vicente será o palco da peça de teatro ‘Do Bosque para o Mundo’, de Miguel Fragata e Inês Barahona, que narra a história de uma criança afegã que foge do seu país à descoberta do mundo.

 

No domingo (23 de Setembro) à tarde, quatro batucadeiras cabo-verdianas juntar-se-ão a uma artista japonesa, dois actores ingleses e um músico português, no Jardim Botto Machado, para apresentar pequenos espectáculos de cineteatro. Na área da dança, Francisco Camacho dará a conhecer um trabalho desenvolvido ao longo dos últimos meses. O coreógrafo conviveu e entrevistou várias pessoas, de diferentes idades e nacionalidades, na freguesia de São Vicente, e compôs uma peça coreográfica, “Viagem Sentimental”, à qual se juntaram jovens da Associação Portuguesa dos Jovens Angolanos, refugiados a viver na Bobadela (Loures) e jovens apoiados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

 

“O espectáculo começa num espaço emblemático e pouco conhecido da Graça, a Casa dos Gessos, onde, antigamente, eram fundidas todas as estátuas de Lisboa. Lá, está em exposição o molde em gesso da estátua de Dom José, e o espectáculo começa precisamente aos pés do cavalo e da estátua do rei. É uma viagem sentimental que parte pelas ruas do bairro e atravessa toda a zona da Feira da Ladra”, explica o responsável pelo festival. O momento alto da coreografia acontece nas antigas Oficinas Gerais do Fardamento e Equipamento do Exército, num antigo armazém de fundição de ferro, onde, durante a segunda Guerra Mundial, trabalharam mais de 2 mil pessoas na confecção de fardas para os soldados.

 

É neste mesmo edifício, nas antigas cozinhas das Oficinas do Fardamento, que ficará patente a exposição de fotografias do festival Todos, com retratos de crianças e famílias do bairro, registadas por João Tuna, e fotografias de equipamentos e interiores de espaços que normalmente as pessoas não conhecem ou não podem visitar, tiradas por Luísa Ferreira e Luís Pavão. Na décima edição do festival, será ainda editado o livro Todos, com todas as fotografias dos fotógrafos que, ao longo dos últimos festivais, registaram “a outra Lisboa, a Lisboa dos outros, que muitas vezes as pessoas não conhecem, e fica registado para memória futura da cidade”, avança. No último dia do festival, haverá um almoço confeccionado por cozinheiros de todo o mundo, no qual participarão 400 pessoas mediante inscrição.

 

De 20 a 23 de Setembro, haverá ainda visitas guiadas pela freguesia de São Vicente, convidando os participantes a conhecerem melhor o bairro, num intercâmbio entre locais e estrangeiros. “Já irmos na décima edição e termos sempre um público tão presente e fiel revela que o projecto tem corrido bem. Há miúdos que nos acompanham desde os 6 anos, agora têm 16, e o festival é uma espécie de Natal para eles, reencontram-se e é sempre uma grande festa”, congratula-se Miguel Abreu.

 

A programação do festival pode ser consultada na íntegra em www.festivaltodos.com

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COMENTÁRIOS

  • Margarida Noronha
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    Boa tarde Ex.mo Senhor Miguel Abreu
    Ou colocou mal as palavras ou anda distraído. Sou lisboeta, moro num “bairro histórico” e se me der a sua morada envio-lhe com todo o gosto os papeis com que, as imobiliárias,me enchem a caixa de correio. É impossível alugar um andar porque 50m2 valem mais do que 1000€ de renda. É claro que a paciencia e gentileza dos lisboetas está a rebentar. Convido-o, e a assistir ao espectáculo de falta de consideração com que somos tratados pelos Srs turistas que nem sabem ler a reserva de lugares para deficientes, grávidas ou idosos…E fico-me por aqui.
    Agora percebo o meu incómodo em Milão sem conseguir ver nada, e em Florença, e noutros locais em que estive.
    Tenho imensa pena que não consigam reunir a vossa criatividade e energia para que, todos juntos, conseguirmos salvar Lisboa do saque porque espetáculo não falta.

  • Helena Cardoso
    Responder

    Justamente. Usar a energia para ajudar a defender o que para todos nós é básico e vital. De mil coisas mais, os tuks são uma praga infernal. Ajudem Lisboa, que o circo turístico está a cem por cento e não precisa de defesa.

  • José N.
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    A responsabilidade primeira deste circo que estamos a viver em Lisboa é da actual vereação da Câmara presidida pelo Sr. Medina. Depois há os chicos espertos que aproveitam a onda… Curiosamente ou talvez não, tudo está centrado nos turistas e os lisboetas ou aqueles que vivem em Lisboa são considerados danos colaterais. Tudo em nome dum progresso social mercantilista da cidade e depois se alguém se opõe a este tipo de filosofia de desenvolvimento social e urbanistico, o mais fácil é dizer que estamos perante um exemplo de xenofobia… Já agora, quem financia efectivamente este tipo de festival? Talvez o Sr. Medina ou o Sr. Salgado possam responder.

  • Catarina de Macedo
    Responder

    “Eliminar a ideia de que os estrangeiros não podem viver no centro da cidade porque existem lá lisboetas”

    Não devia ser ao contrário? Eliminar-se a ideia de que o centro da cidade não é para os lisboetas porque há estrangeiros que querem ir para lá viver?

    O Sr. que organiza este “espectáculo” não deve ser dos tais que foi despejado e não tem sítio para onde ir, graças aos “outros” que ele diz que são como nós, mas não são. Esses “outros” não são como nós porque estão a destruir os que já cá estavam. Pessoas que perderam completamente o poder de compra para conseguirem (ou tentarem) pagar um renda e ter um tecto graças a esses “outros”, e que ainda por cima se disserem que estão fartos da situação, são logo classificados de “xenófobos”. Agora pelos vistos é suposto calarmos-nos quando somos prejudicados pela rapina estrangeira (se fosse num país de terceiro mundo era logo classificado de colonialismo). E não é só no centro histórico, porque toda a Lisboa e periferias estão mais do que inflacionadas. E também não é apenas no que toca ao ramo imobiliário. Os restaurantes e cafés do centro estão descaracterizados e caros, assim como o comércio de rua, as ruas do centro histórico em geral estão imundas e cheias de gente (estrangeira) mal-educada. A maior parte dos turistas é completamente rude e desrespeitosa para com os hábitos locais (quem anda de metro sabe bem do que falo, eles bloqueiam lugares vagos com as malas, por exemplo, e recusam ceder lugar a pessoas prioritárias).

    Já quanto aos moradores estrangeiros, se o Sr. se estiver a referir, por exemplo, à vaga de franceses ricos (que vêm para cá para fugir aos “outros” da terra deles que são de religiões e raças que eles não apreciam) que estão a encarecer bairros inteiros em Lisboa (ex. Campo de Ourique) e que metem os filhos no colégio francês porque não querem misturas com os portugueses locais, que se recusam a aprender português porque parece “russo”, ou vêm abrir cafés “à francesa” porque não gostam dos típicos cafés daqui, então este festival bem devia servir era de lição a esses “outros” que nos vêem também como outros e não como “todos”.

  • André Studer Ferreira
    Responder

    Miguel Abreu mistura alhos com bugalhos … estrangeiros residentes com turistas, xenofobia com descontrolo imobiliário/ turístico. Incompetência descarada em desfavor dos interesses dos lisboetas. Não se entende este discurso de alguém com um currículo de alguém que desempenhou funções em instituições artísticas importantes. Para o bem de Todos, ou reveja o seu discurso ou passe(m) o cargo a outrém.

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