Luta solitária de homem para não ser despejado de prédio em Arroios vai “até ao fim”

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Samuel Alemão

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URBANISMO

Arroios

19 Junho, 2018

É uma amarga ironia. José António Marin, 55 anos, não consegue estar em casa durante o dia, pela grande instabilidade emocional que isso lhe causa. Neste momento, só lá vai para dormir. A pressão sentida, nos últimos quatro anos, para sair do terceiro andar do imóvel onde reside desde sempre, no número 17 da Rua Cidade de Cardiff, em Arroios, e o desgaste psíquico resultante dessa luta solitária levam-no a evitar permanecer muito tempo no andar por que se tem debatido com todas forças. “Isto é um enorme desgaste, sinto-me bastante sozinho. Estar lá agora, mexe-me com os nervos”, desabafa a O Corvo, à mesa de um café no Largo do Intendente, enquanto recorda com amargura a espiral negativa em que mergulhou. Morador único de um decrépito prédio vendido duas vezes, desde há ano e meio, tem resistido a abandoná-lo o mais que pôde. “Não saio do edifício em que sempre vivi!”, exalta-se, repetindo o mote da sua guerra pessoal – que lhe tem custado acelerada deterioração da saúde mental, admite.

Sentindo-se acossado pela pressão dos sucessivos senhorios para que abandone o imóvel, o qual garante não ter obras de manutenção desde 1969, este homem desempregado e beneficiário do Rendimento Social de Inserção (RSI) tem dado nas vistas pela forma encarniçada como luta pela permanência sob o mesmo tecto. Tanto através das redes sociais, como da presença em reuniões de câmara e da assembleia municipal, mas também pelo contacto directo, tudo tem feito para que o seu caso não seja esquecido e não seja apenas mais um a confirmar a inevitabilidade estatística dos despejos motivados pelo Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), surgido em 2012. E até organizou uma petição a denunciar o avançado estado de degradação do prédio, cujos relatório e recomendação para a realização de obras urgentes serão discutidos na sessão plenária desta terça-feira (19 de Junho) da Assembleia Municipal de Lisboa. Mas o reconhecimento, por parte dos deputados municipais, da necessidade de uma intervenção de requalificação imediata do prédio – e apesar de, entretanto, os trabalhos até já começaram, na semana passada – está longe de o deixar tranquilo. Pelo contrário, José sente esta como apenas mais uma etapa de um processo que culminará no há muito temido despejo.

“Acho a recomendação inócua, aquilo não protege de nada. Ganhei uma medalha de cortiça”, diz, referindo-se à recomendação de intimação do senhorio, a Desejo Alcançado, Lda, para fazer obras de requalificação do imóvel – adquirido a 8 de Março, quando a petição assinada por 331 pessoas já estava a ser analisada pela comissão permanente de habitação da AML, depois de ter dado entrada naquele órgão autárquico em 12 de Janeiro de 2018. Nessa altura, o prédio ainda pertencia à M.B.C.E.F. – Construção, Engenharia e Fiscalização de Obras, Lda, depois desta o ter comprado, a 9 de Maio de 2017, à antiga proprietária, Maria Helena Neves Baptista. A alegada recusa desta em passar recibos da renda mensal a José Marin terá sido, segundo o queixoso munícipe, uma das causas para o precipitar da situação dramática em que se encontra desde a morte da sua mãe, em Maio de 2013, com quem vivia naquela casa. “Nunca fez obras, tal como o pai já não fazia, e queria tirar-me de lá”, lamenta-se, apontando-a como responsável principal do estado de degradação a que imóvel chegou.

A descrença do acossado inquilino com o desfecho do seu caso e, mais concretamente, com a recomendação agora feita pela AML para que se realizem obras urgentes de manutenção tem, aliás, como fundamento o histórico de degradação do edifício. Que se acentuou nos últimos quatro anos, acompanhando o calvário pessoal de José Marin, a quem todos os azares parecem bater à porta. De acordo com a sua versão, o prédio esteve “ao abandono” entre Maio de 2014 e Fevereiro de 2018, por alegada incúria dos proprietários, permitindo ocupações abusivas e destruição de partes comuns e do segundo andar. A vandalização da sua caixa do correio, explica, terá levado ao desaparecimento frequente de correspondência. Entre ela contava-se uma convocatória da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). O que teve como consequência o corte do subsídio social de renda e, por conseguinte, a impossibilidade de continuar a pagá-la. Já em Novembro de 2017, pelo mesmo motivo, falhou uma outra convocatória, provocando-lhe uma interrupção momentânea do RSI.

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O prédio apresenta grandes sinais de degradação, incluindo na fachada

Cada vez mais enleado em problemas, padecendo de um quadro depressivo e sem possibilidade de pagar a renda, José Marin viu os anteriores senhorios moverem-lhe uma acção de despejo  – e isto já depois de terem oferecido a possibilidade de lhe perdoarem o montante em dívida, se ele abandonasse o apartamento de forma voluntária. Coisa que recusou, como continua a recusar. Tal como rejeita a solução de apoio social sugerida tanto pela CML como pela presidente da AML, Helena Roseta, e que passa pelo recurso ao apoio habitacional da Santa Casa. “Não preciso de caridadezinha, mas sim que a Câmara de Lisboa cumpra o seu dever de fazer obras coercivas e de exercer o direito de preferência sobre aquele imóvel”, afirma. O direito de preferência é uma prerrogativa da CML, a qual pode ter prioridade na aquisição de alguns imóveis, se a sua localização for considerada de importância estratégica, cabendo ao proprietário o ónus de questionar a autarquia sobre o seu eventual interesse, antes de o colocar no mercado.

A Câmara de Lisboa não só não se terá mostrado interessada em exercer tal direito, como não conseguiu sequer que os anteriores proprietários realizassem as obras coercivas para as quais haviam antes sido admoestados. Isso mesmo reconhece agora o parecer da Assembleia Municipal de Lisboa sobre a petição promovida por José Marin, e que será discutido nesta terça-feira. Nele se recorda que uma vistoria realizada pelos serviços camarários, em Dezembro de 2014, detectou uma série de problemas estruturais no edifício, entre os quais fissuras na fachada, infiltrações, reboco em queda na vida pública e danos na rede eléctrica, recomendando a realização de trabalhos de reabilitação. “O prazo para a conclusão das obras terminou em Janeiro de 2017, não tendo sido realizada qualquer intervenção no referido edifício”, nota o relatório dos deputados municipais, antes de lembrar que o “Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (RJUE) garante à Câmara Municipal de Lisboa os meios administrativos necessários para a resolução de situações como estas”. E fala, por isso, na necessidade de se avançar com nova intimação para realização das obras em falta e nas contraordenações previstas pelo dito regime.

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A exigência de José Marin para que se efectue a tomada de posse administrativa do edifício, por parte da câmara, mereceu o apoio do Bloco de Esquerda (BE) e do Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV). Ambos os partidos decidiram acrescentar declarações de voto nesse sentido ao relatório a ser levado agora a discussão no plenário da AML, precisamente por não verem expressa nesse documento a possibilidade de a CML proceder à posse administrativa do prédio, caso se mantenha o incumprimento do senhorio na realização de obras.


 

De acordo com a informação contida na declaração de voto do PEV, os novos donos do imóvel, a Desejo Alcançado, Lda, garantiram aos serviços de urbanismo da CML que pretendiam iniciar, a breve prazo, “obras de conservação para posterior venda das fracções”. Na lista de trabalhos, e de acordo com a mesma informação, inclui-se o arranjo da fachada do edifício, restantes partes comuns, escadas, cobertura e tardoz. O Corvo tentou, sem sucesso, contactar os responsáveis da Desejo Alcançado, Lda.

 

O Corvo questionou a CML sobre a situação particular deste imóvel e deste inquilino. “Poderia a CML ter exercido tal prerrogativa sobre este imóvel? Por que razão não o fez? Que apoio social prestou a CML a este munícipe?”, eram as perguntas em relação às quais, até ao momento da publicação deste artigo, não recebida resposta.

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COMENTÁRIOS

  • Pc
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    portanto, vive à custa do estao a partir do RSI, deve pagar uma ninharia de renda, pelo que vive à custa do senhorio, e ainda quer que a CML lhe faça obras coercivas em casa?

  • Cidadão
    Responder

    Portanto, este senhor não paga renda, tem pagamentos em atraso e quer continuar a viver em ocupação ilegal de propriedade alheia?… lol

  • Jorge Carvalho
    Responder

    Reconheço que não entendo a história neste caso.

  • Ivone
    Responder

    Para quem não percebeu a historia e simples…nasceu naquela casa e querem polo na rua …os estrangeiros dão mais….não paga porque a correspondência desaparece…caixa dos correios vandalizada…..Bullings imobiliários idosos e doentes postos na rua sem do nem piedade no nosso país agora e assim

    • "querem polo na rua"
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      Eu nasci na Maternidade. Vou exigir um que me deixem lá viver… Disparate? Não pior do que a peregrina frase “não paga porque a correspondência desaparece”. Os estrangeiros dão mais? Qualquer pessoa dá mais. O que não dá é para viver ao pé de alguém que faz seu o que é dos outros e ainda se fá de vítima. Ai Ivone Ivone…

    • Josefina Barata
      Responder

      Senhora Dona Ivone, como consta do texto nenhum dos compradores é estrangeiro… são portugueses. E mesmo que não fossem…
      E o nascer naquela casa não dá direito à mesma; é preciso ou comprar ou pagar renda. Este senhor não paga renda, logo o senhorio tem direito- nos termos da lei- a resolver o contrato. Parece-me claro.
      O senhor viu-se sem o RSI e por isso não pagou a renda, mas depois diz que não quer “caridadezinha”… ora, eu sei que a SCML ajuda em pagamentos de renda mediante pedido. Mas se não tem dinheiro para pagar nem quer a ajuda dos outros, então quer o quê? Que a CML exerça o direito de preferência?? E é justo que sejam os contribuintes a pagar as compras de todos os prédios em Lisboa em mau estado (e consequentemente pagar as posteriores obras)?? Se há um particular que quer comprar e fazer obras, reabilitando os prédios em Lisboa com o seu próprio dinheiro, porquê meter a CML ao barulho? A “prerrogativa” da CML não existe para satisfazer as vontades dos inquilinos que, mais uma vez, não pagam renda.

      Para além de que, o exercício do direito de preferência pela CML não garante que o senhor fique para sempre na casa. Quase de certeza a CML seria a primeira a “polo” na rua para fazer render o prédio… muito provavelmente vendendo a estrangeiros.

  • Cidadão
    Responder

    Este artigo é absolutamente surreal. O homem não paga renda, não quer pagar e ainda quer que o estado lhe faça obras em casa para viver no centro de Lisboa o resto da vida numa casa que ainda por cima não é dele. Senhores jornalistas, por favor não façam demagogia, façam jornalismo.

  • Miguel Kessler
    Responder

    Uma certa misturada de matérias.
    Em primeira linha vem o sacrossanto direito de propriedade que, abordado segundo os cânones do ultraliberalismo que informava o anterior Governo e os partidos que o suportavam, põe qualquer arrendatário de hoje na condição de potencial sem-abrigo de logo à noite. Ocorre-mede que uma das Leis Fundamentais de Espanha no tempo de Franco, o “Foro dos Espanhóis”, estabelecia (cito de cor) o respeito e a protecção do Estado pelo direito de propriedade em todos os domínios, mas subordinado, e bem, à “função social” da mesma. nessa linha, o Governo de Salazar congelou as rendas de habitação nos concelhos de Lisboa e Porto.
    Em segunda linha, com efeito, a tomada de posse administrativa para efeito da execução coerciva de obras de conservação, ao abrigo dos artigos 89º e 90º do regime jurídico da urbanização e da edificação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 555/99, de 16.12., com as alterações em vigor, introduzidas pelo Decreto-Lei nº 136/2014, de 8 de Setembro, constitui um poder discricionário das câmaras municipais; não é uma vinculação, é um poder que as autarquias exercem ou não, consoante a ponderação de interesse público da intervenção coerciva. Nesse sentido, por muita razão que assista a José António Marin face aos famigerados senhorios, tal razão reporta-se ao seu legítimo interesse privado, não ao público.
    Entretanto, uma questão existe de bem real interesse público, dir-se-ia mesmo de ordem pública, trazida à ribalta pela presente onda de rentabilização de propriedade por via dos despejos, passando por cima de tudo e de todos (e de todas, se fizerem muita questão no pontapé na gramática), que é a concomitante e flagrante violação da Constituição, em torpedeamento directo e frontal do direito à habitação. Não colhe a alegação do tipo “coça pra dentro” da Associação de Proprietários no sentido de que não lhes cabe assumir a função social que cabe ao Estado, relativamente aos inquilinos. Em seu entender, os inquilinos, coisa descartável e fungível, vão servindo enquanto não há renda melhor e não aparecem uns cavalheiros com propostas de muitos zeros à direita, totalmente imbatíveis pelos mujiques indígenas, e depois o Estado que se ocupe. Salazar não teria dificuldades em solucionar tanto e tão bom liberalismo. O senhor Ministro, ou a senhora Ministra (ou “Ministrina”, para respeitar a etimologia), na manhã do dia seguinte àquele em que propusesse coisa parecida com o actual NRAU, verificaria não ter polícia à porta de casa, nem carro oficial. E, chegada ao Ministério pelos seus próprios meios, encontraria sobre a secretária um cartão de formato A5, manuscrito e assinado pelo punho do Presidente do Conselho, agradecendo-lhe penhorado os serviços prestados e desejando-lhe as maiores felicidades e êxitos pessoais na sua vida subsequente à saída do Governo.
    Podendo entretanto parecer politicamente incorrecta a saudável metodologia salazarenta para o despedimento, com justa causa, de ministros – e de ministras -, urge pôr a casa em ordem por via legislativa, se ainda houver coragem, ânimo e vontade.

  • lsp
    Responder

    Surreais são os nossos óculos de leitura para este caso. Já não somos capazes de estar do lado dos vencidos; ou “losers”.
    Sim, todos envergamos agora excelentes ray-ban que filtram “losers” e só nos mostram “winners”.
    Há poucos anos, diria estarmos todos americanizados. Agora, fomos mais longe. Pela via Cristas, ficámos tão Trumpizados como aqueles americanos do interior dos EUA.
    Bem hajam senhores proprietariozinhos.

    • Miguel Kessler
      Responder

      «Pela via Cristas, ficámos tão Trumpizados como aqueles americanos do interior dos EUA.»
      Ficámos, sim senhor! Olhe, completamente Trampizados! TrAmpizados, se bem me entende… E olhe que coisa é tanto mais grave para quem assim age, quanto maior a responsabilidade dos decisores, se e quando se reivindicam católicos. Não quero invocar o nome de Deus em vão, mas ocorre-me a pergunta que Deus fez a Caim, após este ter assassinado o seu irmão Abel: «Caim, que fizeste de Teu irmão?» A mesma pergunta que continua a fazer hoje a todos os Cains deste mundo, sobretudo àqueles cujo exercício de poder mais susceptível é de “assassinar” os seus irmãos. Deveriam lembrar-se de que o Diabo existe. E o Inferno também. Lembrar-se, pois, e arrepender-se. Kyrie eleison!
      O catolicismo não é, não pode ser, liberal. Ou há-de ser social, ou simplesmente nada é!

  • lsp
    Responder

    Excelente forma de terminar os comentários sobre este assunto. Por mim, acho que foi tudo dito. Bem haja senhor Kessler.

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