Nasceu um novo espaço partilhado de trabalho no Beato onde os lucros revertem para projectos sociais

REPORTAGEM
Sofia Cristino

Texto

VIDA NA CIDADE

Beato

11 Outubro, 2018

No bairro municipal João Nascimento Costa, na freguesia do Beato, há um novo espaço de cowork que quer revolucionar a forma como se olha para os sítios de trabalho partilhado. O valor pago para usufruir do Espaço C3 – espaço cowork, formação e multimédia reverte para projectos de intervenção local escolhidos pela própria população. A iniciativa, financiada pelo programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa (BIP/ZIP), quer pôr os coworkers em contacto com os verdadeiros problemas desta parte da cidade e desconstruir a ideia de que os bairros sociais são problemáticos. O novo espaço conta ainda com salas de formação, onde um grupo de raparigas de etnia cigana já começou a ter aulas à distância. Ao longo dos próximos meses, a ideia é criar cursos de alfabetização e formações nas áreas da culinária e artesanato e, até ao final de Outubro, entrará também em funcionamento um espaço de convívio para jovens do bairro.

“As vistas são um bocadinho diferentes daquelas a que estamos habituados, mas a ideia é confrontar as pessoas de fora do bairro com esta realidade e pô-las em contacto com os moradores”, diz Teresa Simões, coordenadora de comunicação da associação sem fins lucrativos Clube Intercultural Europeu, entidade gestora do Espaço C3 – espaço cowork, formação e multimédia, cujas instalações foram cedidas pela Junta de Freguesia do Beato. Da janela do novo sítio de trabalho partilhado, de portas abertas desde Maio, vêem-se, ao longe, os bairros municipais da Quinta do Lavrado, antigos bairros da Curraleira e do Casal do Pinto, na freguesia do Beato. Nas traseiras do espaço de cowork solidário, na Rua Almirante Sarmento Rodrigues, o cenário é menos agradável, o espaço público está muito degradado e um grupo de pessoas não se inibe de consumir drogas a céu aberto.

 

O Espaço C3 desconstrói todas as ideias pré-concebidas do que é um tradicional espaço de cowork – onde se concentram habitualmente startups, freelancers e empreendedores. A ideia do projecto, financiado pelo programa Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária de Lisboa (BIP/ZIP) da Câmara Municipal de Lisboa (CML), é juntar habitantes com estudantes universitários a iniciarem projectos profissionais ligados à área social, bem como todos os que quiserem inscrever-se. O valor pago mensalmente para usufruir do espaço reverterá para projectos de intervenção local ou desenvolvimento comunitário escolhidos pela própria população do bairro. E para dar a conhecer melhor o projecto, esta sexta-feira (12 de Outubro), o C3 vai estar de portas abertas para toda a comunidade.

“A área de trabalho pode não ser a social, mas, ao estarem a utilizar o espaço, já estão a ajudar. Quem quiser desenvolver projectos aqui é bem-vindo e tem a vantagem de estar mesmo no terreno, mas queremos receber todos”, explica Teresa Simões. Neste momento, segundo a responsável, só há um sítio de cowork em Lisboa a ser gerido por uma associação social, o Instituto Padre António Vieira (IPAV), mas é uma incubadora de novas empresas, ao contrário do Espaço C3. Diminuir o desemprego e aumentar os níveis de escolaridade são dois dos principais desafios da associação sem fins lucrativos. “Gostávamos de ter cursos de alfabetização, mas agora temos de ver se o projecto é sustentável ainda. Queremos, acima de tudo, desconstruir a ideia de que os bairros sociais são problemáticos e provar que se pode trabalhar aqui, e que as pessoas vão aos cafés do bairro e usufruam desta zona”, avança.

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António Ló: "Queria ver outras realidades, distintas do contexto social onde cresci. Estou a ter vivências que nunca tinha tido e a conhecer pessoas muito diferentes de mim".

Ao longo do próximo ano, Teresa Simões espera que os moradores também comecem a frequentar o espaço, mas reconhece que será um processo mais moroso. “Eles ainda vêem isto como um escritório e desvalorizam, porque também não sabem bem o que se faz aqui, mas queremos que percebam que podem vir, que foi feito também para eles”, explica. O valor por mês é de 60 euros, mas há um preço social, de 45 euros, para os habitantes dos bairros Horizonte, Quinta do Lavrado, Nascimento Costa, Carlos Botelho e Portugal Novo. O espaço pode ser utilizado das 9h às 20h, e, uma vez por mês, é possível aceder gratuitamente às salas de formações e à sala de reuniões. “Queremos que os coworkers entrem em contacto com os verdadeiros problemas da população. Não é um processo que se faz de um dia para o outro, mas queremos que seja o inicio dessas sinergias”, explica. Já apareceram algumas pessoas interessadas, mas, para já, a rede de Desenvolvimento Local de Base Comunitária de Lisboa (DLBC), com cerca de 160 associados, é a única inquilina do C3.


 

Na manhã em que O Corvo visitou o equipamento social, já havia alguns sinais de movimentação. Há menos de dois anos, era um imóvel devoluto, “uma sala de consumo de estupefacientes com muito lixo, sem qualquer utilização para a comunidade”, explica a responsável. António Ló, 21 anos, está a apoiar a gestão do Espaço C3 em regime de voluntariado, desde Junho. Depois de terminar a licenciatura em Economia, no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), e antes de entrar no mercado de trabalho, quis ter uma experiência inovadora. “Queria ver outras realidades, distintas do contexto social onde cresci, e está a ser muito enriquecedor. Estou a ter vivências que nunca tinha tido e a conhecer pessoas muito diferentes de mim. Tenho estado com jovens de etnia cigana que já pensam em casar aos catorze anos, para mim foi surpreendente”, conta, entusiasmado. Duas mesas à frente do recém-licenciado, Caroline Dewavrin, 22 anos, natural de Lyon, França, está em Portugal, no âmbito do programa Erasmus, e apoia o C3 na área administrativa. “Estou a gostar muito de estar aqui, mas ainda é pouco tempo para fazer uma avaliação. Ajudo muitas pessoas que só falam francês, fazendo traduções, e está a ser gratificante”, diz Caroline, referindo-se também ao trabalho por si desenvolvido no âmbito do Programa Mobilidades Europeias.

 

 

Logo pela manhã, numa das salas de formação, um grupo de nove raparigas de etnia cigana, a frequentar o 5º e o 6º anos de escolaridade, já assistiam a aulas à distância no computador, transmitidas em directo pelo agrupamento de escolas de Alcântara, uma das poucas escolas que já tem esta modalidade de ensino. O projecto-piloto de Ensino à Distância nasceu há menos de um mês, no Espaço C3, depois da Escola EB 2,3 das Olaias ter sugerido esta solução para as alunas. “Existe algum abandono escolar nesta parte da cidade, principalmente pela etnia cigana, e o agrupamento de escolas das Olaias entrou em contacto connosco e propôs-nos esta alternativa para colmatar essa taxa de desistência. É difícil retomar o hábito do estudo, a motivação, ou o simples facto de estarem sentadas durante a aula, mas é muito desafiante”, diz Teresa Simões.

 

Nuno Wemans, gestor do Espaço C3, a acompanhar mais de perto esta iniciativa, diz que o balanço ainda não é positivo. “O nível de dificuldade de aprendizagem, principalmente em grupo, é enorme. Uma das alunas do 6º ano está muito motivada, mas as outras não estão e distraem-na. É um processo complicado, mas temos de ir aperfeiçoando o programa, porque de outra forma nunca irão ter este nível de escolaridade e é importantíssimo para elas”, explica Nuno Wemans. Nos próximos meses, o C3 quer ainda proporcionar formações para adultos nas áreas do artesanato e da culinária.

 

Além das salas de formação, há um estúdio de produção multimédia, onde irão funcionar as web rádios do Clube Intercultural Europeu e a Curra FM, desenvolvidas por jovens dos antigos bairros da Curraleira. A ideia é que sejam os próprios moradores a escolherem as temáticas e a sugerirem os entrevistados, desenvolvendo competências linguísticas e sociais. Até ao final do mês de Outubro, entrará em funcionamento o Espaço Jovem – ainda em obras – reivindicado por um grupo de jovens do território, já constituído no projecto social Sementes a Crescer, em 2015. O centro comunitário foi pensado para combater o desinteresse escolar e pretende-se que seja um lugar de convívio e aprendizagem, de visualização de filmes, de actividades desportivas, entre outras valências, mas são os utilizadores do espaço, com idades compreendidas entre os 13 e os 18 anos, que vão decidir o que se vai fazer ali.

 

 

“Queremos que eles participem na construção do que vai ser esta estrutura, que se sintam donos do espaço e possam ter vontade própria para propor projectos. É preciso trabalhar a motivação, um trabalho que não surge de um dia para o outro, mas é um dos nossos principais objectivos”, explica Teresa Simões. A ideia é frequentarem o espaço depois das aulas, havendo um primeiro momento de maior convívio e, depois, actividades mais organizadas. “É um espaço onde vão ter a sua própria identidade, ao serem eles a preparem as iniciativas, são obrigados a terem um sentido de responsabilidade maior. Inicialmente, pediram-nos uma mesa de pingue-pongue, mas explicamos que tinham de ser eles a procurar uma forma de a ter. O nível de iniciativa é muito baixo, o que eles querem é um espaço de convívio e temos de ser nós a puxar pelas outras componentes mais pedagógicas. É um equilíbrio entre o que eles querem e o que nós queremos”, explica Nuno Wemans.

 

O C3 vai abrir para toda a comunidade, esta sexta-feira (12 de Outubro), naquele que será o primeiro dia de portas abertas para todos. “Vamos dar a conhecer melhor a história do espaço e projectos pensados para a zona, fazer networking e pensar em futuras sinergias. Ainda está tudo no início, o projecto ainda é muito embrionário, mas acreditamos que vai correr bem”, conclui Teresa Simões.

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COMENTÁRIOS

  • Pedro Neves
    Responder

    Iniciativa original e muito interessante. A torcer para que tenha oportunidade de vingar e dê bons frutos.

  • Afirma Pereira
    Responder

    Um grupo de alunas a ter “aulas à distância” dentro de Lisboa… Deve ser uma nova forma de “integração” modernaça.
    E os betinhos que nada sabem destes mundos paralelos vão ver e fascinar-se. E depois voltam prás suas vidinhas nos bairros finos, com grandes histórias pra contar, como se fossem exploradores do séc XIX a descrever o interior da Austrália.
    E depois há a população normal. Aquela que todos os dias convive com as comunidades que geram crianças com “aulas à distância” em plena Capital do Império. Ao contrário do “coworker” do artigo, essa população não se entusiasma com essa realidade. Conhece-a bem de mais. E paga-a. Paga o bairro municipal. Paga o espaço de “cowork”. Paga estas iniciativas… E enquanto trabalha para sustentar tudo isto talvez se pergunte o que significa isso de “cowork”…

  • Afirma Pereira
    Responder

    A minha opinião parece ser tão importante para o Corvo que o Corvo se apressou a apagá-la!
    Censura?!

    • O Corvo
      Responder

      Caro Afirma Pereira, a aprovação dos comentários não é automática, assim que é necessário que alguma pessoa da equipa esteja online para poder confirmar.

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