Newsletter 9 - Arquivo de Ciência e Tecnologia

Newsletter 9 – Arquivo de Ciência e Tecnologia

Os arquivos e a ciência: à conversa com Henrique Leitão

Para este número da Newsletter, o Arquivo de Ciência e Tecnologia esteve à conversa com o professor e investigador Henrique Leitão. Doutorado em Física Teórica (1998), Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tem-se dedicado nos últimos anos à História da Ciência, tendo sido eleito membro efetivo da Academia Internacional de História das Ciências, em 2013.

PHLeitao-highPode falar-nos um pouco sobre a importância e relevância dos arquivos para a investigação científica, não apenas para as Ciências Sociais e as Humanidades mas também para as Ciências Exatas, as Ciências da Natureza…

Estão a ocorrer muitas mudanças, muito rápidas, em muitas disciplinas. Uma que me parece muito evidente é que os cientistas – e aqui vou cingir-me apenas às ciências exatas e naturais – estão mais sensíveis ao problema de projetar uma imagem pública positiva. São mais cuidadosos acerca disto do que eram há alguns anos atrás. O facto de os cientistas perceberem que têm de chegar de uma maneira muito mais eficaz aos públicos não especializados tem tido muitas consequências. Por exemplo, estas: tem tido efeitos na própria história das disciplinas científicas; e tem afetado o que se refere aos repositórios de informação sobre a prática científica. Tradicionalmente, os cientistas das ciências exatas e naturais não ligavam muito à informação de arquivo, exceto em algumas disciplinas, por necessidades especiais. Em Astronomia, por exemplo, a importância dos arquivos sempre foi sentida. Mas, tirando estes casos isolados, os cientistas em geral cuidavam pouco dos arquivos. A ciência tende a ser a-histórica… Ora, tudo isto mudou substancialmente nos últimos trinta anos; os cientistas agora percebem que se têm de apresentar à população. Uma parte importante da divulgação científica tem que ver com isto.

E essa mudança deve-se a quê?

Em grande medida tem que ver com os avultados recursos financeiros que são exigidos hoje para a ciência. Impõe-se como um dever não só a prestação de contas, mas também uma justificação de fundo: para que é preciso tanto dinheiro para ciência. Há trinta ou quarenta anos isto não era tão importante porque a escala era mais pequena, mas o volume dos investimentos em ciência foi aumentando em todo o mundo. Ora, numa sociedade, toda a gente compete pelo dinheiro disponível. Os cientistas perceberam isto com antecedência. Perceberam que não bastava fazer ciência, era necessário explicar o que se fazia e porque se fazia. A divulgação científica tem também que ver com isto. Não é apenas para que as pessoas aprendam mais ciência (certamente uma razão importante), mas para que percebam o que um cientista faz, e porque é que o seu trabalho é importante. Esta necessidade tática, digamos assim, colocou também como problema os aspetos mais históricos, ou os aspetos que dependiam mais de arquivo. Penso que há hoje uma sensibilidade um pouco diferente, por causa disso. Mas de facto, habitualmente, os cientistas não ligam muito aos arquivos.

Por outro lado, algumas das disciplinas que dependiam mais de arquivo tornaram-se hoje em dia muito importantes. Dou um exemplo. Atualmente há imensos estudos sobre alterações climáticas — um dos tópicos mais investigados e onde há maiores investimentos — e parte substancial desta investigação depende de dados acumulados anteriormente e às vezes até de dados históricos. Depende, por isso, da capacidade de se ir aos arquivos e de se conseguir recolher informação quer de aspetos sociais (por exemplo demográficos), quer de aspetos físicos e naturais: temperaturas, de gelos antigos, de crescimento de plantas, etc… Para todas as disciplinas que trabalham com escalas temporais muito longas, os dados de arquivo são muito importantes. Por exemplo, em Astronomia é muito importante saber a evolução das manchas do Sol, e conhecer aquilo que era material de arquivo, como sejam séries contínuas de fotografias do Sol. De repente esta documentação passou a ser da maior importância para estudar a atividade solar, para perceber as suas implicações muito profundas no clima. O Observatório Astronómico de Coimbra tem uma série contínua de imagens fotográficas do Sol, com muitas décadas, que é de grande valor nacional e internacional. A existência e sobrevivência destes dados depende de haver um arquivo científico, depende de haver uma cultura arquivística, uma recolha que não seja curta no tempo.

Uma outra razão tem a ver com o fato de a História da Ciência se ter tornado mais interessante. Todos os testemunhos da prática real dos cientistas ganharam um valor que não tinham dantes. Porquê? Porque as pessoas passaram a interessar-se mais pela vida real, pelas atividades e pelas práticas dos cientistas de outras épocas, deixando de considerar a história da ciência apenas como um subcapítulo da história intelectual. Os arquivos que testemunham as suas atividades ganharam então uma importância acrescida.

De que forma é que a evolução da atividade científica, nomeadamente desde o século passado, se refletiu no trabalho dos arquivistas?

Uma das novidades da história do século XX consiste no abandono de uma história centrada nas figuras extraordinárias ou ímpares. Tenta-se agora captar a história da vida quotidiana e não apenas o excecional. O mesmo se passa na história da ciência. Dantes a história da ciência era apenas sobre os génios; o que se pretende hoje é a vida não só dos génios, mas de prática científica comum, corrente. Esta mudança para Portugal tem sido crucial porque a história científica portuguesa não tem os grandes génios de primeiro plano mundial, mas também seria injusto dizer que não teve nada. Ou seja, o problema que os historiadores têm entre mãos consiste precisamente em conseguir caracterizar o que foi a prática corrente de ciência no nosso país – o que era habitual, o que era a rotina – que em Portugal foi muitas vezes interessante. Todas estas questões colocam imensos desafios aos arquivistas porque de repente há todo um novo tipo de materiais que se tornam interessantes. Já não interessam apenas as memórias dos cientistas famosos, mas queremos saber como é que, no passado, um laboratório, uma instituição científica, funcionou no seu dia-a-dia, como é que as pessoas eram promovidas ou não eram promovidas, se ganhavam prémios, como é que o financiamento era feito, etc. Como o foco de interesse dos historiadores mudou, muitos documentos que pareceriam sem valor ou desinteressantes, tornaram-se agora de grande relevância.

E os arquivos dos próprios cientistas?

Essa questão é mais complicada, pois depende de pessoa para pessoa, não há práticas gerais bem definidas. Em alguns países da Europa, por exemplo, não há normas, mas há uma cultura própria, que tem a ver com a educação, e há uma noção histórica mais aguda do que cá. É necessário todo um processo educativo para fazer os cientistas mais sensíveis a este problema de guardarem os seus arquivos. Mas também é preciso ser realista e razoável. É preciso reconhecer que a dinâmica própria da investigação faz deitar fora. Interessa o paper, o artigo, o relatório e, a partir do momento em que está publicado, acabou. Aquilo que foi usado para realizar uma certa publicação tende depois a ser deitado fora. As grandes instituições internacionais têm tudo isto regularizado, como é natural. Se for a um grande laboratório em França, na Alemanha ou nos EUA há normas para isto. Há experiências que envolvem muitas pessoas e há normas muito bem definidas para o que deve ser preservado em arquivo, não são só os dados mas a construção de equipas, as discussões, os relatórios, os debates internos, toda aquela informação fica catalogada e depois guardada.

Aqui na Faculdade de Ciências tem sido um trabalho que se tem vindo a melhorar nos últimos anos. O nosso grupo, do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia, tem ajudado neste esforço, tentando preservar documentação histórica sobre a instituição e alguns dos seus professores que mais se destacaram.

Há alguns anos passou-se comigo uma história que recorda o que é preciso fazer. Houve um matemático português, muito famoso por volta dos anos quarenta e cinquenta, chamado Hugo Ribeiro. Quando ele morreu, a sua viúva falou com uns colegas dizendo que tinha a correspondência dele, e que não sabia o que lhe fazer. Pediram-me que eu fosse ver, para dar uma opinião. Algumas cartas eram de tal modo sensacionais – sobretudo por causa dos matemáticos eminentes, alguns dos melhores do mundo, com que ele se tinha correspondido — que depois de ver apenas algumas cartas disse que não precisava de ver mais para ter a certeza do imenso valor daquela correspondência. As cartas foram oferecidas como espólio à Biblioteca Nacional. Neste caso, tudo parece ter corrido bem; mas quanta correspondência de valor, de outros cientistas portugueses, não estará em perigo de se perder?

Esta necessidade tática [de divulgação científica],
digamos assim, colocou também como problema
os aspetos mais históricos, ou os aspetos que dependiam mais de arquivo

 

Se estivéssemos a falar de um investigador dos nossos dias, seria um pouco mais difícil, guardar a sua correspondência…

Sim, nos nossos dias isso é um problema terrível, que ninguém sabe bem como resolver. A generalização dos computadores está a introduzir um efeito perverso nisto, que é o problema do correio eletrónico. Já imaginaram quantos trabalhos históricos foram feitos tendo por base a correspondência das pessoas: políticos, governantes, generais, reis, cientistas. Mas isso agora parece ter-se tornado muito mais difícil, parece até correr o risco de deixar de ser possível. Conheço muitas edições de correspondência de cientistas que são da maior importância para a História da Ciência. Para os nossos dias isto já não vai existir. Eles não se corresponderam? Sim, corresponderam, mas foi por e-mail, e onde é que isso agora está? Só em casos muito raros é que estão implantados protocolos para não perder essa informação.

A questão que levanta remete também para a questão dos dados científicos, para a enorme massa de dados produzida com recurso às novas tecnologias da informação e comunicação. O que lhes vai suceder?

É uma questão gravíssima hoje em dia. Mas é um problema que ninguém sabe resolver bem. Quer dizer, as pessoas sabem do problema e estão a guardar muito. Há laboratórios que estão a guardar tudo. Para os cientistas, quando algo aparece em livro, já está muito canónico, já está consagrado e então é publicado. Ora, a própria tensão da descoberta, as grandes discussões, os problemas quando são mesmo graves, todas estas questões encontram-se nos manuscritos, na correspondência, nas trocas, em bilhetes, em coisas deste género. Só que agora todo este material já não existe, agora está tudo em e-mails. E então daqui a cinquenta ou sessenta anos quando se quiser estudar coisas de agora, onde é que estão estes e-mails? E isto agravado por problemas práticos de grande dificuldade: contínuas mudanças de suporte, de maneiras diferentes de codificar, etc. Como é que atualmente se pode ler uma fita de cassete dos anos setenta? Hoje em dia se nos dão uma cassete, o que é que lhe fazemos? Há aqui um trabalho imenso a desenvolver pelos responsáveis dos arquivos.

Qual pensa que deve ser o papel dos arquivistas na preservação e divulgação destes arquivos?

É importantíssimo, e não falo apenas das coisas básicas – preservação, acondicionamento, descrição. Os arquivistas têm de conseguir entrar em diálogo com os historiadores. Este é o aspeto que mais distingue os bons arquivistas, mas que ainda é preciso melhorar em Portugal. Eu tenho ótima opinião dos arquivistas em Portugal, no seguinte: são habitualmente pessoas com imensa consciência do que têm, imensamente dedicadas ao trabalho (habitualmente feito com pouquíssimos recursos), são simultaneamente profissionais e disponíveis. Mas falham muitas vezes na ligação com os investigadores porque vêem os dois trabalhos muito separados, quando deveriam ser vistos juntos. A ideia de que um arquivo vive só por si parece-me fatal. O objetivo do arquivo não é só a preservação e a descrição: parte crucial do seu objetivo tem de ser o trabalho com os investigadores. Aliás, este trabalho nunca está terminado porque é necessário voltar ciclicamente ao passado que se pensa já conhecer. É sempre preciso descobrir novos pontos de vista, novos ângulos, novas maneiras de mostrar e estudar o passado. Em história da ciência, que é a minha especialidade, isto é da maior importância. Mas a ligação entre arquivistas e historiadores nem sempre tem sido a mais eficaz, com o resultado de que há ainda muito para contar acerca do nosso passado científico. As novas tecnologias abrem horizontes amplos a este assunto, mas é preciso, antes de tudo, que haja a vontade de desenvolver projetos conjuntos entre arquivistas e investigadores.