Arquivo de Ciência e Tecnologia

O espólio de um cientista português – David Ferreira

ArquivoCT_Foto1

José Francisco David Ferreira no Laboratório de Biologia Celular do Instituto Gulbenkian de Ciência, em 1967.

O Arquivo de Ciência e Tecnologia foi recentemente enriquecido com a integração de um primeiro conjunto documental proveniente do espólio de José Francisco David Ferreira, médico histologista português (1929 – 2012). A esse propósito, evocamos aqui a figura de David Ferreira, investigador cujo nome ficaria associado à promoção e ao desenvolvimento, em Portugal, da microscopia eletrónica, poderosa auxiliar da biologia e da medicina moleculares.

Natural de Montargil, José Francisco David Ferreira veio para Lisboa estudar, aqui frequentando o Liceu Camões, onde foi aluno de Rómulo de Carvalho. Em 1947 matricula-se na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). Aluno de Luís Dias Amado no Curso de Histologia – por um breve período antes da demissão compulsiva deste professor, decretada pelo governo de António Salazar -, orienta-se naturalmente para a área da medicina molecular, passando a assistir aos trabalhos no Instituto de Histologia e Embriologia então dirigido por Augusto Celestino da Costa (1884 – 1956). David Ferreira iniciou a sua carreira de investigação médica em 1952, ano em que conclui o curso de Medicina na FMUL, ingressando nesta Faculdade como «Assistente voluntário» e a partir de 1954, sucessivamente como «2º Assistente» e «1º Assistente», a convite do próprio Celestino da Costa. Foi bolseiro do Instituto de Alta Cultura (IAC) entre 1954 e 1962, tendo ainda obtido uma bolsa do governo francês que lhe permitiu completar a sua formação, em Villejuif, Paris (entre 1958 e 1962), como estagiário no Institut de Recherches sur le cancer/Institut Gustave-Roussy, centro pioneiro de investigação oncológica em França e na Europa, fundado em 1926.

ArquivoCT_Foto2

Inauguração do primeiro microscópio eletrónico na FMUL, em 1958. Da esquerda para a direita: José Francisco David Ferreira, José de Azeredo Perdigão, Francisco de Paula Leite Pinto e Manuel João Xavier Morato.

Em 1960, José Francisco David Ferreira obtém o grau de doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, com uma tese em Citologia intitulada A diferenciação do condrioma, aparelho de Golgi e ergastoplasma: estudo ao microscópio electrónico, em que reitera o interesse por esta tecnologia de examinação celular. De facto, David Ferreira cedo se interessou pela observação de tecidos e células obtidas pela microscopia eletrónica, tendo sido responsável pelo Laboratório de Microscopia Eletrónica no Instituto de Histologia e Embriologia, publicando diversos artigos a esse respeito em várias revistas especializadas, como o «Jornal da Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa» ou «Medicina Contemporânea» (histórica publicação fundada por Miguel Bombarda, José Thomaz de Sousa Martins e Manuel Bento de Sousa nos idos de 1883). Citamos como exemplos, «Técnicas citológicas e histológicas da microscopia electrónica» (1956), «A aplicação da microscopia electrónica em biologia. Limitações e Futuro» ou «Estudo ao microscópio electrónico das células Beta do pâncreas endócrino do rato» (ambos os títulos em 1958). Nessa qualidade, David Ferreira deu impulso à maturação desta área de especialização, ciente da grande importância da imagiologia na prática da investigação em ciências biomédicas na época contemporânea. Assim, vemo-lo envolver-se na criação da Sociedade Portuguesa de Microscopia Electrónica – de que foi sócio fundador, em 1966, desempenhando o cargo de Presidente desta mesma Sociedade, em 1972, 1979 e 1988.

Pelo início dos anos 60, David Ferreira iniciara uma colaboração estreita com a Fundação Calouste Gulbenkian, tendo sido bolseiro desta instituição nos EUA, entre 1962 e 1965. No seu regresso, associa-se à criação no Instituto Gulbenkian de Ciência – que seria inaugurado em Oeiras, em 1967 – do Centro de Biologia, aí assumindo os cargos de subdiretor e diretor (por morte do primeiro nomeado, Flávio Resende). Foi assim responsável pelo Laboratório de Biologia Celular, um dos quatro Laboratórios do Centro de Biologia, ao qual permaneceria ligado até 1993.

ArquivoCT_Foto3

Curso de Ultraestrutura Celular dos cursos pós-graduados do Instituto de Gulbenkian de Ciência, 1970.

Entretanto, David Ferreira prossegue a carreira docente. Entre 1974 e 1999 é sucessivamente regente das disciplinas de Biologia Celular e de Histologia e Embriologia na Faculdade de Medicina de Lisboa. Em 1978, apresenta O ensino da histologia e embriologia na Faculdade de Medicina de Lisboa: Relatório como «prova de concurso» para o cargo de professor extraordinário da Faculdade de Medicina de Lisboa, sendo no ano seguinte Professor Catedrático da mesma instituição.
David Ferreira foi promotor e Coordenador Científico do Centro de Biologia e Patologia Molecular da Universidade de Lisboa desde 1991 e vice-reitor da Universidade de Lisboa, entre 1997 e 2002. Agraciado com o título de Grande Oficial da ordem da Instrução Pública em 1999, professor jubilado da Universidade de Lisboa no mesmo ano, deixou uma obra de referência no âmbito da sua especialidade, medicina molecular, embriologia e histologia, sem deixar de prestar atenção à história da medicina em Portugal no Século XX.

Com efeito, David Ferreira dedicou uma parte da sua atividade à fixação da memória de outros médicos investigadores portugueses com quem tivera ocasião de trabalhar, entre os quais, Augusto Celestino da Costa – que fora reconhecidamente seu mestre -, fundador e diretor do Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina de Lisboa («Reflexões sobre a vida e a obra de Augusto Celestino da Costa», na separata do Jornal da Sociedade de Ciências Médicas, 1985) ou Manuel Xavier Morato (1906 – 1989) a quem David Ferreira viria a suceder em 1974 na direção do mesmo Instituto (até 1999).

Um acervo abundante e variado

O acervo de que o Arquivo de Ciência e Tecnologia é depositário desde 2013 é proveniente do antigo Instituto de Histologia e Embriologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, no Hospital de Santa Maria. Resulta de um protocolo assinado em julho de 2013 entre a FCT, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. O acervo apresenta uma grande variedade de materiais: publicações periódicas e não periódicas especializadas em medicina celular, histologia e outras áreas científicas contíguas, documentação epistolar, académica (currículos, programas de estudo, projetos de investigação, dissertações e relatórios) e institucional, bem como uma coleção apreciável de imagens médicas, positivos, negativos, transparências, pranchas de grande formato, e ainda alguns materiais gráficos didáticos ilustrando diversos aspetos da investigação molecular e celular, que foi o grande norte da carreira de David Ferreira.

O património documental reunido aponta pois para três grandes eixos de interesse na carreira do investigador português: (1) pesquisa e atividade docente associadas à Faculdade de Medicina de Lisboa, ao Instituto de Histologia e Embriologia, ao Centro de Biologia e Patologia Molecular, ao Centro de Biologia e Conselho Diretivo do Instituto Gulbenkian de Ciência, com numerosas publicações individuais ou coletivas, comunicações apresentadas em congressos, simpósios, colóquios e outras reuniões de especialidade, escritos produzidos no âmbito de relacionamentos diversos com universidades e investigadores nacionais e estrangeiros; (2) documentação sobre o envolvimento de José David Ferreira em atividades cívicas e de gestão de ciência, testemunhos da sua participação em diversas instituições como a Federação Portuguesa de Associações e Sociedades Científicas (FEPASC) ou a Sociedade Portuguesa de Microscopia Electrónica – agremiações em que, como vimos, David Ferreira assumiu um papel ativo -, sem esquecer a contribuição que também deu enquanto membro de outras organizações públicas e privadas associadas ao governo das atividades de educação e ciência como o Conselho Nacional para a Ética e as Ciências da Vida, entre 1996 e 2001; (3) um último eixo, relacionado com a história das ciências biomédicas em Portugal, com um subconjunto documental referente à figura de Celestino da Costa com quem David Ferreira conviveu e cuja memória se empenhou em conservar.

A redescobrir brevemente no Arquivo de Ciência e Tecnologia.

O Arquivo de Ciência e Tecnologia agradece a cedência das imagens por parte do Dr. José Pedro David Ferreira, bem como as sugestões para a redação deste texto.