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Cardiotox – Um projeto exploratório duplamente ético

Cerca de dez anos é o tempo que demora o processo de introdução de qualquer fármaco no mercado, com um custo associado de aproximadamente 1 bilião de Euros. A tecnologia de indução de células adultas a partir de células estaminais pluripotentes é uma alternativa promissora aos ensaios de toxicidade com recurso a experimentação animal, aumentando a sua fidelidade, minimizando avaliações imprecisas e reduzindo custos de desenvolvimento. 

É esta tecnologia que Susana Carvalho Rosa, investigadora do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra (CNC), pretende utilizar para gerar células do músculo cardíaco in vitro, em quantidades suficientes para ensaios de toxicidade. O objetivo é desenvolver uma plataforma tecnológica adequada para determinar o nível de toxicidade cardíaca, um dos principais parâmetros avaliados durante o desenvolvimento de um medicamento.

Atualmente a introdução de fármacos no mercado envolve várias fases, desde a descoberta da substância até à sua efectiva comercialização. Modelos animais e linhas celulares (células mantidas em cultura no laboratório) são geralmente utilizados para avaliação da sua segurança e eficácia, em fase anterior aos ensaios clínicos em humanos, mas “estão longe de representarem com fidelidade o tecido cardíaco”, afirma a investigadora.

A produção de células do tecido cardíaco (cardiomiócitos) a partir de células estaminais pluripotentes induzidas (iPSCs) poderá contornar essas barreiras. No entanto, “a eficiência do processo de reprogramação de células estaminais pluripotentes induzidas em cardiomiócitos é variável e os cardiomiócitos derivados não possuem todas as características dos cardiomiócitos adultos”. É justamente este problema que a investigadora se propõe resolver, num projeto exploratório apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

[IMAGEM]  Cardiomiócitos em cultura

Cardiomiócitos em cultura

Na senda da medicina regenerativa e personalizada

Geradas por reprogramação de células adultas de vários tecidos (pele, sangue, etc.), as células estaminais pluripotentes induzidas (iPSCs) partilham muitas das propriedades das células estaminais embrionárias (ESCs), tais como a capacidade de se diferenciarem em qualquer tipo de célula do organismo e de auto-renovação a longo prazo, quando em cultura. As iPSCs oferecem, por conseguinte, potencialmente, as mesmas possibilidades das células estaminais embrionárias, mas, pelo facto de serem células “adultas”, obtidas de indivíduos jovens ou adultos, não suscitam os problemas éticos subjacentes à utilização das células estaminais embrionárias, obtidas diretamente a partir de embriões, nem barreiras de imunogenicidade.

De facto, a avaliação da toxicidade de químicos é apenas uma das potenciais aplicações desta tecnologia. Cada ser humano tem um código genético diferente, por isso os fármacos também atuam de forma diferente. Ao usar as células do próprio paciente os investigadores poderão criar células cerebrais, cardíacas ou do fígado com o ADN do paciente. Essas células poderão, então, ser usadas para testar a eficácia de determinado medicamento no tecido do próprio paciente antes do início efetivo da terapêutica.

Regenerar tecidos em indivíduos com doenças neurodegenerativas tais como Parkinson’s ou  Alzheimer, ou lesões da espinal medula e desenvolver órgãos para transplante são outras potenciais aplicações que se perscrutam, num futuro mais distante.

Em Portugal vários grupos de investigação estão atualmente a desenvolver investigação na área das iPSCs. O estudo dos mecanismos da doença de Machado-Joseph num modelo humano derivado de iPSCs, os mecanismos de expansão e diferenciação de células estaminais pluripotentes ou a utilização de derivados celulares de iPSCs para testes de toxicidade e para a identificação de novos fármacos são alguns exemplos de linhas de investigação em curso.

Uma tecnologia duplamente ética

[FOTO] Susana Rosa

Susana Rosa

O alcance das iPSCs na investigação biomédica advinha-se, de facto, excecional. Para além do seu potencial em medicina regenerativa, ao permitirem o desenvolvimento in vitro de virtualmente todos os tipos de células do organismo, em grandes quantidades, abrem de par-a-par as portas à testagem de fármacos, com maior eficácia e contribuindo para reduzir ou mesmo eliminar a necessidade de recurso a animais de laboratório para este fim.

A doutrina dos 3R’s é a fórmula que concilia os dois valores fundamentais do desenvolvimento da ciência e o do bem-estar animal. A criação de métodos alternativos com base nas iPSCs salvaguarda um dos três princípios: a substituição (“Replacement”),focado na adoção de métodos alternativos sempre que se mantenha possível alcançar os mesmos objetivos científicos. Os outros dois princípio são a redução (“Reduction”) e o refinamento (“Refinement”), que admitem a utilização de animais desde que se diminua drasticamente o número e se adoptem procedimentos que eliminem ou minimizem a dor infligida aos animais.

Dados da Direcção Geral de Alimentação e Veterinária, entidade responsável pelo controlo da utilização de animais em laboratório na investigação científica, revelam que em 2011, em Portugal, aproximadamente 47000 animais foram utilizados, dos quais 40930 em investigação biológica fundamental, 1079 em ensaios toxicológicos e 1305 em diagnóstico de doenças.

Susana Carvalho Rosa está no trilho para reduzir estes números “Se conseguirmos atingir as metas que nos propomos com este projeto, acreditamos que podemos ter uma plataforma que se diferencia claramente dos presentes métodos e plataformas utilizadas na avaliação de cardiotoxicidade de medicamentos e que por conseguinte tem tudo para ser uma alternativa “atrativa”.

As iPSCs… Uma história recente

Foi em 2006 que o investigador Shinya Yamanaka desenvolveu, pela primeira vez, um método para induzir células da pele de ratinhos a transformarem-se em células estaminais pluripotentes.

Apenas um ano depois, em 2007, Yamanaka viria a repetir com sucesso esta experiência em células humanas, que lhe valeu a atribuição do Prémio Nobel da Medicina em 2012.

Yamanaka revelou com as suas experiências que quatro genes específicos, quando introduzidos em células adultas da pele podem revertê-las a um estado de pluripotência, isto é, adquirir potencial para se transformarem em qualquer tipo de célula. A sua descoberta conduziu à multiplicação da investigação de células estaminais, resultando numa variedade de métodos para reprogramação de células adultas em células estaminais que, por sua vez, podem, potencialmente diferenciar-se em qualquer tipo de célula.