tempomedicina.com | Edição Semanal | 1º Caderno | 1121ANT3F0111JMA21Z número 1435 20.Maio.2011 Director: Dr. José M. Antunes A propósito dos 60 anos da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna Ética e Medicina Interna António José de Barros Veloso* Quando me falam em ética, lembro-me sempre do slogan usado por Clinton na campanha para Presidente — «It’s the economy, stupid!» — e apetece-me dizer: «É a ética, estúpido!». Porquê? Porque começa a perceber-se que foi a falta de ética a causa principal das várias crises que agora se abateram sobre o Mundo. O Homem (já se sabia) não é, por natureza, um animal ético. O seu equipamento genético foi talhado mais para defender territórios, garantir a alimentação e proteger as crias, do que para organizar chás de caridade ou peditórios públicos. Mesmo com gravata e telemóvel, ao volante do seu jeep (sobretudo ao volante do seu jeep), continua agressivo, quezilento, conflituoso. E se, subitamente, sente que a sua vida ou a sobrevivência da sua espécie se encontram ameaçadas, pode transformar-se numa verdadeira fera. Felizmente que o Homem é também um animal medroso. Depois de se ver obrigado a viver em sociedade, os seus instintos agressivos têm sido contidos por vários medos. A religião inventou o pecado, a culpa e o castigo eterno — este, talvez, o mais eficaz de todos os medos. A sociedade civil criou, como lhe competia, a polícia e os tribunais. A civilização burguesa introduziu uma figura assustadora, a perda do bom nome e da honra. Ir para o Inferno, acabar na prisão ou ser enxovalhado na praça pública são três medos que têm permitido desfrutar de uma relativa paz social nos curtos intervalos entre as pequenas e as «grandes guerras». O problema é que, nesta sociedade pós-moderna em que vivemos, estes medos estão a ser feitos em estilhaços. Numa cultura fortemente laicizada, já nem o Papa acredita no Inferno. A justiça, ferida de morte pela preocupação «garantística» e por uma ineficácia que brada aos céus, incomoda mais as vítimas do que os prevaricadores. E o circo mediático, onde figuras respeitáveis se dizem e desdizem sem qualquer vergonha, ajudou a desacreditar definitivamente valores como reputação e honestidade. Perdido o medo, restava-nos a ética que é um produto de sociedades capazes já de uma auto-reflexão profunda sobre cada um de nós na sua relação com o «outro». Só ela nos poderia valer para construir um mundo mais justo e mais seguro mas, como se tem visto, também ela está a falhar. O que se passa com a Medicina? Chegados a este ponto, é altura de perguntar: e o que se passa com a Medicina? Os médicos, vinculados ao Julgamento de Hipócrates e habituados a conviver diariamente com a dor e com o sofrimento, estão tradicionalmente ligados a uma imagem ética que decorre directamente da própria natureza da profissão. Ser capaz de colocar o doente em primeiro lugar, de se sacrificar por ele, de estar atento às suas queixas, de guardar sigilo do que ouve e do que vê, tudo isto (que já não é pouco) se esperava deles. Mas entretanto muitas coisas mudaram. O progresso das últimas décadas trouxe, como se sabe, novas tecnologias, mais eficácia e também perspectivas de grandes negócios. A cultura de uma sociedade consumista e pragmática, em que o tempo deixou de ser um percurso entre o passado e um futuro-cheio-de-utopias, para se «espacializar» e se centrar no presente, tem feito o resto. «Fartar vilanagem», parece ser o slogan que melhor se adapta aos dias de hoje. Os grupos financeiros procuram na Medicina o terreno ideal para multiplicar capitais e rapar o fundo do tacho de um Estado completamente falido. Cada vez mais, são os gestores que ditam as regras do jogo e, obcecados com a tirania dos números e o desejo de apresentar lucros, põem em causa diariamente alguns dos pilares em que a Medicina outrora procurava legitimar-se: compaixão, disponibilidade para ouvir, prudência, qualidade técnica e ensino permanente. Para muitos médicos, as novas tecnologias trouxeram uma forma expedita de aumentar a conta bancária sem estarem sujeitos ao desgaste que implica envolverem-se com a angústia e a ansiedade que acompanham as doenças. (Lembro-me, por exemplo, de um colega que, preparado para executar uma técnica numa doente que nunca mais parava de falar, resolveu o problema com esta frase lapidar: «Minha senhora, o seu tempo de antena terminou!»). Estamos, portanto, numa fase em que a Medicina, dominada por exigências administrativas, interesses financeiros e tecnologias, está a tornar-se menos humana e, por isso mesmo, menos ética. Uma das principais reservas de ética médica Que dizer então da Medicina Interna? Agora, que se comemoram 60 anos sobre a fundação da sua Sociedade, o momento é mais para festejos e homenagens e do que para críticas. Talvez por essa razão, estou tentado a afirmar que a Medicina Interna não é a única, mas é, com certeza, uma das principais reservas de ética médica. Não porque os internistas sejam pessoas diferentes, mas porque ao longo da sua carreira são formatados numa prática orientada para a valorização dos dados clínicos, para a utilização racional das tecnologias, para o recurso ponderado às terapêuticas. Eles sabem, melhor do que ninguém, que as tecnologias não podem substituir a informação recolhida à cabeceira do doente, que as doenças iatrogénicas provocadas por medicamentos inúteis são uma praga e que a confiança no médico é o mais poderoso placebo que se conhece. Rigor no diagnóstico, contenção em gastos desnecessários e humanização são comportamentos que estão presentes no seu ADN. Mas não são estes, afinal, alguns dos componentes essenciais de uma verdadeira ética médica? *Médico especialista de Medicina Interna TEMPO MEDICINA ONLINE de 2011.05.23 1121ANT3F0111JMA21Z A reprodução total ou parcial deste site é proibida, excepto se autorizada expressa e previamente pela Impremédica, Imprensa Médica, Lda., nos termos da legislação em vigor.