Arruamento de Lisboa vai ser demolido e vedado por perigo de derrocada da escarpa do Parque da Bela Vista
As instruções são claras: é necessário abandonar o local o mais depressa possível, devido ao risco de derrocada. Todas as construções existentes na Rua Quinta da Noiva, junto à Avenida Almirante Gago Coutinho, deverão ser desocupadas, até 30 de Abril, para serem demolidas e se criar um perímetro de segurança com 20 metros. Seguir-se-ão obras de consolidação da arriba calcária. A operação obrigará à desocupação de armazéns e sobretudo oficinas automóveis, cujo senhorio é a Câmara de Lisboa. Os inquilinos, porém, mostram-se revoltados por lhes ter sido dado apenas um mês e meio para abandonarem os edifícios onde trabalharam durante décadas. Um local degradado e desordenado, é verdade, mas onde cerca de uma dezena de empresas funcionava. Para quase todas, o futuro é agora incerto.
O tom é de resignação, sem deixar de denotar incompreensão pela maneira como as coisas estão a acontecer. “Até percebo porque é que estão a fazer isto. Estamos no meio da cidade e, hoje em dia, já não é possível ter uma situação destas. Não entendo é por que é tem de ser feito assim, com tudo a correr. Não dão tempo às pessoas para encontrar soluções”, queixa-se Nuno Francisco, 67 anos, enquanto faz uma pausa no trabalho de preparação da nova pintura do Volkswagen carocha descapotável com que se tem ocupado nos últimos dias. Será por certo uma das suas últimas tarefas na oficina, situada na Rua da Quinta da Noiva, onde trabalha há já 45 anos. Terá de a abandonar até à próxima terça-feira, 30 de Abril, por ordem da Câmara Municipal de Lisboa (CML), tal como todos os outros ocupantes de pequenos negócios, quase todos relacionados com a reparação automóvel, e ainda quatro agregados familiares. Em causa está a necessidade de demolição de todas as construção e a criação de um perímetro de segurança, com a adopção de medidas urgentes de consolidação da Escarpa do Geomonumento do Parque da Bela Vista, devido ao risco de derrocada.
Quem, por estes dias, entre neste arruamento precariamente asfaltado, situado nas traseiras da Avenida Almirante Gago Coutinho, dificilmente poderia adivinhar que se está a menos de uma semana da demolição integral daquele núcleo urbanístico de aspecto algo desordenado, mas onde há uma dezenas de empresas e gente a trabalhar. A medida foi tomada pela autarquia da capital, através de uma deliberação aprovada a 15 de Março, “tendo em vista a salvaguarda de pessoas e bens”. Algo que decorre de uma situação de “perigo iminente” de derrocada da escarpa e da “total insalubridade” naquele aglomerado, justifica o edital camarário, em que se justifica a operação a desencadear a curto prazo. Depois de demolidas as construções, propriedade da Câmara de Lisboa, e estabelecido o referido perímetro de segurança, com um perímetro mínimo de 20 metros, terão lugar trabalhos de consolidação da escarpa do Geomonunento do Parque da Bela Vista. A Rua da Quinta da Noiva, tal como existia até aqui, desaparecerá quase de um dia para o outro, a 1 de Maio.
Nuno Francisco chegou à Quinta da Noiva em 1974. "Já naquela altura, diziam que isto podia vir abaixo".
Algo que Nuno Francisco, bem como os outros ao redor, diz não entender. Chegado aquele local a 7 de Setembro de 1974 – uma semana após ter desembarcado em Lisboa, na sequência de uma campanha de 22 meses na Guiné-Bissau, na guerra colonial -, o pintor de automóveis originário de Cernache do Bonjardim contesta a forma “apressada” como se realiza o processo de saída de um sítio onde deixou uma vida de trabalho. Até porque, garante, as notícias sobre a possibilidade de queda da arriba sobranceira ao conjunto de armazéns e oficinas não serão propriamente frescas. “Já nessa altura, quando vim para cá, em 74, se falava que isto tinha de ir abaixo, pois estava numa zona perigosa. Então, agora fazem isto assim de repente, a correr?”, interroga, notando que apenas está ser dado um mês e meio de aviso para abandonar um sítio onde está instalado há décadas pelo qual paga uma renda mensal de 1.845 euros. “Sempre paguei tudo, a tempo e horas. Estive no Ultramar, servi o Estado português. Acho que não merecíamos isto. Todo este processo me deixa desiludido”, desabafa.
Um sentimento partilhado por Olímpio Cardoso, 65 anos, que ocupa há mais de três décadas a oficina mesmo em frente, pela qual paga uma renda de 900 euros mensais. “De quatro em quatro anos, vinha aqui alguém da câmara e diziam que, muito provavelmente, tínhamos que ir embora por causa desta arriba. Mas nunca aconteceu nada. Agora, de repente, dão-nos um mês e meio para sair? Não pode ser”, indigna-se, enquanto faz contas à acumulação de problemas que a repentina decisão da autarquia lhe trouxe e se adivinha que trará. Com cinco funcionários, incluindo o filho, o empresário tem andado numa roda viva em busca de uma localização alternativa para o seu negócio. As rendas altas e a escassez da oferta de espaços afastaram a pretensão de permanecer na cidade, pelo que, se tudo correr bem, deverá conseguir mudar-se para Sacavém, no concelho de Loures. “Deviam dar-nos um pouco mais de tempo. Isto não é forma de fazer as coisas. Todos temos famílias, que dependem disto”, diz Tiago Cardoso, 34, filho de Olímpio.
Ao lado da dependência onde Tiago trabalha, fica a pequena oficina de Cecílio Caetano, 73, que não tem mais do que 70 metros quadrados, segundo estimativa do próprio, e pela qual paga à CML 363,75 euros mensais. O empresário mudou-se para aquele espaço, situado mesmo por baixo da escarpa do Parque da Bela Vista, há 33 anos, quando foi obrigado a sair das instalações que tinha na Avenida São João de Deus e encontrou ali uma alternativa à medida das suas possibilidades. Estando há tanto tempo na zona de maior perigo potencial de derrocada, critica a forma de actuação da câmara, que qualifica de “muita má”. “As razões não me convencem. Agora, de um momento para o outro, é que se lembram das escarpas e obrigam-nos a sair assim? Deviam dar uma alternativa às pessoas e não obrigá-las a sair assim. Temos dignidade e merecemos ser tratados de outra forma. Isto nem no terceiro mundo se faz”, queixa-se. Por causa desta alteração, diz, o seu único funcionário está já à procura de emprego. O fim da actividade comercial deverá, por isso, ser o desfecho para Cecílio.
Diferente será a opção da maioria dos que ali laboram. Mesmo que isso implique, para quase todos, a obrigação de abandonar a cidade de Lisboa, devido aos argumentos apresentados por Olímpio Cardoso: falta de oferta de espaços a preços aceitáveis. “Ando à procura de uma localização alternativa, mas dentro de Lisboa está fora de questão”, afirma Óscar Oliveira, 40, brasileiro de Minas Gerais há uma década com oficina instalada na Quinta da Noiva, pela qual paga uma renda mensal de 600 euros à CML. “Temos muito pouco tempo para sair. Parece que estamos a ser enxotados daqui, como se fôssemos cachorros”, comenta. Também Carlos – nome pelo qual pede para ser identificado um homem de 67 anos que trabalha há 45 naquele aglomerado – lamenta a saída apressada. Sem tempo a perder, vai limpando a oficina, que terá de abandonar dentro de dias, para ser demolida.
A procura de novas localizações para as oficinas é uma realidade para todos os que se encontrem ali em situação legal ou ilegal, quer tenham chegado a acordo com a CML para sair ou não. A isso são forçados pelo edital camarário em que são notificados da intervenção urgente nas escarpa. Nele se diz que “mesmo nas situações em que por acordo não seja possível a desocupação voluntária das construções a demolir, as condições de risco no local obrigam à utilização de meios administrativos alternativos”. O que é válido tanto para as oficinas como para os quatro agregados familiares ali detectados, dois em situação legal e outros tantos em situação ilegal – e que terão acompanhamento social dos serviços da câmara. Uma das pessoas que será realojada pela autarquia será Paula Espírito Santo, 44 anos, a viver ali há quatro anos. Desempregada, irá para uma habitação municipal “situada na zona entre Moscavide e a Gare do Oriente”.
A operação em curso envolve ainda a limpeza dos terrenos, dali se procedendo à retirada não só de diversos carros abandonados, mas também de todos os “diferentes resíduos perigosos e ferrosos”, bem como ao corte e remoção de um canavial. Além da circulação automóvel e ciclável, o dia 1 de Maio assistirá ainda ao corte definitivo do abastecimento de electricidade e água à Quinta da Noiva.