Associação interpõe providência cautelar para travar obras em palácio de Alfama

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Sofia Cristino

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URBANISMO

Santa Maria Maior

23 Outubro, 2017

A Associação do Património e População de Alfama (APPA), em conjunto com os moradores do bairro, vai interpor uma providência cautelar para impedir a continuação das obras no Palácio de Santa Helena. O edifício do século XVII, antiga residência dos Condes de São Martinho, está a ser transformado em 20 apartamentos de luxo, tendo o actor Michael Fassbender já comprado um deles por dois milhões de euros. Muitos moradores estão revoltados não só por assistirem ao que acreditam ser a descaracterização do bairro histórico, mas também por perderem a vista sobre Alfama inteira e o Rio Tejo. A responsável pela empreitada, a imobiliária Stone Capital, acredita que, com esta intervenção, o Palácio recuperará a sua nobreza e Alfama ficará mais valorizada.

Nota Redactorial: Texto editado às 15h46, de 23 de outubro, clarificando posição dos vereadores do PCP.

Depois de várias tentativas de dialogar com a Câmara Municipal de Lisboa (CML), a Associação do Património e População de Alfama (APPA), em conjunto com os moradores de Alfama, vai interpor uma providência cautelar para impedir a continuação das obras no Palácio de Santa Helena. O imóvel do século XVII está a ser alvo de uma intervenção que prevê a construção de 20 apartamentos de luxo, da responsabilidade da imobiliária Stone Capital, que tem, neste momento, 25 projectos em mão na cidade de Lisboa.

Júlio Soares, morador do rés-do-chão de um prédio contíguo ao portão do Palácio de Santa Helena, em declarações a O Corvo, admite que a providência cautelar é “a única forma de, neste momento, parar o processo”. “Hoje (18 de Outubro), estive a falar com o responsável da empreitada e ele disse que queria deitar abaixo o muro que divide as duas propriedades e este muro está na planta do meu prédio. Não o pode fazer. Teria de solicitar uma reunião de condomínio pelo menos para nos informar. Foi a gota de água”, explica, indignado.



Arthur Moreno, o dono da Stone Capital, garante a O Corvo que a informação dada pelo morador não é totalmente verídica. “O muro tem um troço que é 100% da propriedade da Stone Capital, seguido de um troço que é 50% nosso e os restantes 50% do prédio vizinho. Isto está explícito no licenciamento aprovado na CML”, assegura. “Além disso, a ideia é construir um muro totalmente novo em betão armado, o que só vai trazer vantagens para os moradores. O troço do muro pertencente ao vizinho mantém-se na sua propriedade e não lhe será cobrado nenhum custo por esta intervenção”, garante, ainda.

A decisão do desmantelamento do muro advém do facto de este já se encontrar com “graves problemas de estabilidade”, segundo Arthur Moreno. “Para não colocar em causa as condições de segurança do muro, vimos necessidade de proceder à sua demolição”, explica. Contudo, segundo o auto de vistoria realizado pela Unidade de Intervenção Territorial da CML, a que O Corvo teve acesso, o prédio de Júlio Soares, de facto, não reúne todas as condições de segurança, estando em risco de ruir. Mas o muro em questão não se encontra com problemas de estabilidade.

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Projecção com o aspecto final do empreendimento imobiliário, enquadrado com o bairro de Alfama.

Conforme a planta do prédio, há duas casas de banho adjacentes ao muro, assim como terraços e coberturas. “Deitar propriedade privada abaixo não é legal, além de pôr em causa a segurança dos moradores”, acusa Júlio Soares. Confrontado com os riscos implícitos à destruição do muro, Arthur Moreno diz a O Corvo que não tem conhecimento de que existem casas de banho, nem se recorda do auto de vistoria realizado pela CML. “Não faço ideia, tenho muitos projectos neste momento. Acho que o muro precisa de ser requalificado porque está velho”, diz – contradizendo-se, quando já tinha afirmado a O Corvo que o muro não reunia todas as condições de segurança.

O empreendimento de luxo, desenhado pelo arquitecto Samuel Torres de Carvalho, foi aprovado pela Câmara de Lisboa, em Dezembro do ano passado, e a empreitada avançou no mês passado, numa altura em que, desde junho de 2016, já se sabia que o prédio de Júlio Soares estaria em risco de ruir. “Não há o mesmo peso e medida para toda a gente. Depois de repararmos que havia um problema nas escadas, estão tortas, veio cá a Unidade de Intervenção Territorial e confirmou que existe falta de segurança da infra-estrutura, tendo realizado um auto de vistoria. Fomos à CML e disseram-nos que tínhamos de começar a fazer obras mas que os licenciamentos estão atrasados. O vereador do Urbanismo sabe que o prédio está em risco de cair e permitiu que as obras do palácio ao lado continuassem”, denuncia o morador.

Neste momento, os moradores do prédio aguardam por resposta da autarquia para avançarem com as obras necessárias previstas no auto de vistoria. “É revoltante ver as obras ao lado serem aprovadas em oito meses e nós, com o nosso prédio em risco de cair, termos de esperar”, critica.

Segundo Júlio Soares e a presidente da APPA, Lurdes Pinheiro, não tem havido vontade por parte da autarquia em parar a empreitada. A presidente da APPA, Lurdes Pinheiro, diz mesmo que se informou atempadamente com o Departamento Jurídico da CML sobre qual o melhor procedimento a ter nestes casos, e que lhe foi garantido que tinha de ir a uma reunião de câmara por se tratar de um intervenção de carácter relevante. Mas a reunião não aconteceu e a obra avançou.

Carlos Moura e João Ferreira, vereadores do PCP, entregaram, no passado dia 21 de Setembro, um requerimento ao presidente da CML, Fernando Medina, a questionar se a aprovação e deferimento da operação urbanística no Palácio de Santa Helena deveria ter sido deliberada ou não pela Câmara Municipal, uma vez que se trata de uma intervenção com impacto relevante. Mas, até agora, não obtiveram resposta. Carlos Moura acrescenta, ainda, outra das suas preocupações: “Ao aumentarem a área das cavalariças, contígua aos prédios, estes ficam sem iluminação. Nós debatemo-nos essencialmente por esta questão, porque o avanço desta operação tem um grande impacto urbanístico”, afirma em declarações a O Corvo.

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Aspecto do interior do condomínio em construção.

“O vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, pensa que é o dono da cidade. No caso da construção do Museu Judaico, no Largo de São Miguel, também marcamos uma reunião de câmara que foi cancelada na véspera. Isto foi tudo feito no silêncio e a decisão da construção dos apartamentos de luxo, para todos os efeitos, foi aprovada ilegalmente”, acusa o morador. “Foi uma surpresa para nós porque nem colocaram um placar de licenciamento na fachada do edifício e é obrigatório. Junto às traseiras do prédio, também vão fazer dois pisos subterrâneos. A vistoria foi feita a 8 de junho e arrancaram em setembro, nem deviam ter começado”, reforça.

Júlio Soares foi na quarta-feira passada (18 de Outubro) à Câmara de Lisboa perguntar em que fase se encontra o processo. “Disseram-me que o requerimento entregue pelos vereadores do PCP deu entrada na direcção municipal, no Campo Grande, a 9 de Outubro e que estão à espera da resposta para ser encaminhado”, informa.

Os moradores queixam-se, essencialmente, da descaraterização que o bairro típico lisboeta tem vindo a sofrer nos últimos anos mas, também, da vista sobre a iminente perda da vista sobre o Rio Tejo, que tiveram durante toda a vida. “As pessoas que lá vivem deixam de ter o sol a entrar pela casa, porque os novos prédios vão tapar tudo”, comenta Lurdes Pinheiro, presidente da APPA. “Esta obra é uma aberração e vai ter um impacto urbanístico enorme. As fachadas do século XIX vão ser substituídas por fachadas do século XXI. O palácio de Santa Helena emparelha com um prédio anterior ao terramoto de 1755. Alfama deveria ser o bairro de Lisboa mais preservado, por ser o mais antigo da cidade, mas está a ser o mais prejudicado”, acrescenta Júlio Soares.

Arthur Moreno, proprietário da Stone Capital, tem outro ponto de vista. “Nós somos apaixonados pela cidade de Lisboa. Queremos valorizar o património, não queremos destruí-lo. Por exemplo, os azulejos do Palácio de Santa Helena vão ser restaurados manualmente e vamos manter a capela, dentro dos padrões urbanísticos. O projecto foi acompanhado por um historiador e um arqueólogo, porque sempre nos preocupamos com a preservação e restauração dos espaços. O Palácio vai recuperar a sua nobreza”, garante. “Começámos a apostar em Lisboa em 2010, numa altura em que Portugal estava em crise e sempre achamos que a cidade tinha um grande potencial. Acho que estamos a fazer um bom trabalho”, conclui.

Situado dentro da muralha Fernandina, numa posição elevada sobre o rio Tejo e o vale de São Miguel, o Palácio de Santa Helena foi durante quatro séculos a residência familiar dos Condes de São Martinho, detentores de altos cargos na corte portuguesa. Depois de deixar de ter funções habitacionais, albergou, ainda, a Escola Superior de Educação Almeida Garrett durante cerca de 20 anos.

O Corvo contactou, ao início da tarde de quinta-feira (19 de Outubro), a Câmara Municipal de Lisboa, pedindo esclarecimentos sobre este assunto, mas, até ao momento, não obteve resposta.

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