Escola de Calceteiros de Lisboa: onde se aprende a fazer o chão que todos pisamos

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

Paula Ferreira

Fotografia

URBANISMO

Olivais

17 Junho, 2016


Criada há trinta anos pela Câmara Municipal de Lisboa, a escola ensina o saber fazer de uma arte muito nossa: a da calçada portuguesa. Mas não é fácil encontrar pessoas dispostas a aprender uma profissão dura, admitem os professores. Trabalhar com pedra e estar de cócoras, todo o dia, não é para todos. Muitos alunos desistem a meio da formação. O Corvo foi aos Olivais assistir a uma aula, onde há seis resistentes de um curso iniciado por 23. E encontrou, entre eles, um antigo afinador de pianos e um ex-empresário. Reinventam a carreira profissional a partir pedra.

As palavras de Vítor Graça, 48 anos, saem-lhe com uma calma e uma precisão tão claras quanto a forma como selecciona as pedras, as trabalha e as coloca no desenho que está a fazer. “As pessoas estão a voltar a dar valor a isto. Além disso, o mercado de trabalho está a mudar, temos que ver as oportunidades que surgem”, diz, enquanto procura a pedra certa. A agilidade e o poder de observação aliam-se em cada momento da sua contínua progressão enquanto calceteiro. Mas este é, sobretudo, um trabalho de paciência, reconhece.

Uma capacidade que foi sendo aprendida por este homem de voz pausada, ao longo de um percurso profissional com formas tão irregulares quanto o típico desenho da antiga calçada à portuguesa – técnica surgida no Castelo de São Jorge, em 1842, e que hoje encontrará no Largo de São Paulo, ao Cais do Sodré, o mais antigo e perfeito exemplo. Depois de um passado recente como empresário na área da venda de pescado, Vítor Graça tenta agora dar um novo rumo à vida.

No seguimento do encerramento da sua empresa, em 2009, ainda tentou a sorte a explorar um restaurante em Cabo Verde e, a seguir, como serralheiro na Holanda. Mas nada resultava, os resultados não estavam a aparecer. A esperança parecia perdida e as saudades da sua terra pareciam não ter fim. Até que, ainda em terras holandesas, se lembrou que sempre gostara de observar a calçada. E foi em busca de formação. A aprendizagem corre-lhe tão bem que pensa já em abrir uma empresa no ramo.

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As coisas parecem-lhe agora bem mais definidas  – tanto quanto a forma das pedras de vidraço de calcário que, com zelo, vai partindo a golpes precisos de martelo. Porque, quando tinha o seu negócio na área do pescado, a Vítor não lhe passaria pela cabeça que, num futuro não muito longínquo, poderia vir a ganhar a vida como calceteiro. Algo que, neste momento, encara com optimismo e uma atitude a denotar uma surpreendente serenidade.

Uns metros mais à frente, João Duarte, de 49 anos, partilha uma perspectiva ligeiramente diferente. E admite ter ainda alguma dificuldade em aceitar o desfecho que o conduziu até ali. Até 2012, era dono de uma empresa de afinação de pianos, que acumulava com um part-time de vigilante. Mas os problemas profissionais e familiares sucederam-se. De tal forma que se viu numa situação de grande precariedade. Está, por isso, a tentar reencontrar o caminho, enveredando por uma nova e improvável carreira.

As qualidades como afinador de pianos permitem-lhe ter uma perspectiva diferente sobre o que está a fazer, admite. “As pessoas dizem que, talvez por causa do meu passado, sou muito perfeccionista com as formas. Talvez seja assim, de facto, gosto de tentar até que as coisas fiquem como quero”, admite João, que ainda não se vê bem a desempenhar a profissão de calceteiro. Se tiver que ser – ou seja, se não puder mesmo voltar a ser afinador de pianos -, assim será. “Até estou a gostar”, confessa. No fundo, admite, o que ele quer é arranjar uma saída profissional, voltar a trabalhar.

Um desígnio, afinal, idêntico ao da meia-dúzia de alunos que, neste momento, frequentam o curso das Escolas de Calceteiros e Jardineiros de Lisboa, da Câmara Municipal de Lisboa (CML), situadas nos Olivais. Carregando percursos profissionais e pessoais que, na maioria das vezes, acabaram num beco sem saída, estes homens tentam agora reinventar-se através da formação naquela que é vista como uma das mais icónicas formas de expressão cultural nacional: a calçada portuguesa.

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O curso que frequentam – resultante de um protocolo entre a escola e o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) e que confere também equivalência ao 9º ano de escolaridade – acaba por ser uma porta para a tão desejada reentrada no mercado de trabalho. “Muitos dos que aqui vêm parar têm percursos de vida acidentados. Há várias pessoas que, à partida, nada teriam a ver com isto, inscreveram-se noutro curso qualquer no IEFP, mas até acabam por vir para o curso, por uma série de razões”, diz Ana Rodrigues, responsável pelo acompanhamento destes alunos.

Por causa disso, dessa falta de vocação preferencial para um trabalho difícil em termos técnicos e exigente a nível físico, muitos acabam por desistir. Dos 23 alunos que iniciaram o curso em Abril do ano passado, apenas restam seis. Um cenário que é recorrente. “São todos homens, têm as suas famílias e, muitas vezes, a meio do curso, encontram alguma coisa, algum biscate que lhes permite ganhar dinheiro, e acabam por sair”, explica Ana Rodrigues, antes de considerar que, “se estes seis conseguirem todos emprego, será fantástico”.

Mesmo que não venham a trabalhar para a CML ou outra câmara municipal ou junta de freguesia, há sempre a possibilidade de virem a dar uso ao que aqui aprendem, explica Ana Rodrigues. “Além de ficarem com o 9º ano de escolaridade, as pessoas que por aqui passam aprendem uma valência artística, que poderá ser aproveitada mais tarde. Se assim entenderem, e se tiverem essa capacidade, podem trabalhar peças que poderão vir a vender”, diz. Não quer dizer que ali se formem artistas, mas todos os que terminarem o curso – em Novembro próximo – terão de ter a capacidade de saber moldar as formas da pedra.

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“Não podemos ter a pretensão que eles saiam daqui já uns mestres, mas pretendemos que fiquem com a formação base que lhes vai permitir trabalhar nesta área”, explica ao Corvo Nuno Serra, 43, um dos dois professores das aulas práticas. A sua grande preocupação é a de, através da sua actividade lectiva, dar resposta ao que considera ser um problema prevalecente: “Há uma grande falta de qualidade dos calceteiros, em geral. E isso traz-nos o problema da falta de profissionais qualificados apenas para manter o património existente”.

Numa alameda sombreada por árvores, situada ao lado do edifício da escola, os seis alunos que restam dos tais 23 que, no ano passado, iniciaram o curso vão exercitando o que têm estado a aprender com Nuno Serra e com Jorge Duarte, 52, o outro professor. Ao lado de cada um dos aprendizes – sentados num minúsculo banco de madeira e curvados sobre a obra que têm em mãos -, há molhos de pedras, baldes, martelos e as maças usadas para compactar as pedras. Alternadamente, os docentes vão dando indicações, sugerindo correcções. Sempre com o poc-poc-poc dos martelos na pedra como fio condutor.

Seguindo os moldes de cartão colocados no chão, os alunos tentam reproduzir o melhor possível os desenhos propostos. Vítor Graça emaranha-se nas curvas do logotipo da escola, depois de já ter completado as iniciais, estilizadas e sobejamente conhecidas, do grupo de rock australiano AC/DC. Para o fazer, recorreu às técnicas de calcetamento “à portuguesa” e “puxada ao quadrado”, correspondentes a diferentes formas de assentar as pedras. Uma façanha elogiada por colegas e professores.

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“Aqui, aprendemos quatro técnicas básicas de desenho, mas os alunos focam-se, sobretudo, na calçada ‘puxada ao quadrado’ e no ‘dobrar o desenho’. Se eles saírem daqui a conseguirem fazer isso, fico muito satisfeito”, confessa Nuno Serra, homem de pose descontraída, piercing numa das orelhas e que, à primeira vista, dificilmente associaríamos a um trabalho que todos, alunos e professores, qualificam como “duro”. Nuno, engenheiro agrícola com formação posterior em Belas Artes, não desmente o grau de exigência deste trabalho.

Uma realidade, aliás, assumida como consensual. E que faz com que o recrutamento de novos alunos se revele assaz complicado. “É, sem dúvida, uma profissão dura, pois implica trabalhar com pedra e estar de cócoras. Não é para toda a gente e, por isso, é sempre difícil arranjar pessoas interessadas em aprender e em trabalhar nesta área”, afirma Isabel Polónia, coordenadora das Escolas de Jardinagem e Calceteiros. Algo que leva Nuno Serra a falar na necessidade de se encontrarem estratégias que conduzam à “valorização da profissão de calceteiro”.

“É mais difícil para as costas, passamos o dia todos dobrados”, diz Pedro Pinela, 49, comparando com o seu antigo trabalho na construção civil que a crise dos últimos anos fez desaparecer. “É precisa muita paciência, mas, por outro lado, gosto desta vertente mais artística”, confessa, enquanto tenta perceber a melhor forma de reproduzir as armas da cidade. Pedro já havia realizado o curso anterior, que, além da formação de calceteiro, lhe conferiria o 6º ano de escolaridade. O desemprego prolongado levou-o a perceber que este poderia ser o caminho mais indicado para dar a volta por cima.

O mesmo diz Carlos Ferreira, 53, que estava desempregado desde 2012. Carpinteiro de cofragem da construção civil, esteve durante nove anos na Alemanha, até que a insolvência do seu patrão português o deixou desamparado. Teve de regressar a Portugal, mas não conseguiu encontrar trabalho. No IEFP sugeriram-lhe este curso de formação profissional, que acabou por aceitar.

Carlos está confiante que a sua sorte mudará com esta aprendizagem da profissão de calceteiro. E, ao contrário do que outros dizem, não considera esta uma tarefa difícil. “É um trabalho de paciência. Se uma pessoa não tiver calma, não faz isto”. Tem de haver o mínimo de afeição pelo que se está a fazer, considera.

Algo que é sublinhado pelo professor Jorge Duarte, 52 anos, que está há três décadas na Escola de Calceteiros de Lisboa. Tanto tempo quanto a escola tem. Fez parte da primeira turma da escola, formada em 1986, e um par de anos depois já estava a ensinar o que havia aprendido. “Se a pessoa não gostar disto, não vale a pena andar aqui. Isto é duro, não vale a pena dizer que não é. Ando aqui há 30 anos e não sei nada”, diz, com os olhos bem abertos, denotando uma dureza e uma fibra à altura do desafio.

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Desde a sua abertura, em 1986, a Escola de Calceteiros de Lisboa formou 190 profissionais. Um número não muito impressionante, para um período de três décadas, há que reconhecer. Mas as referidas dificuldades de recrutamento e as desistências de formandos com os cursos a decorrer ajudam a explicar tal estatística.

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