Moradores da Graça contestam construção de condomínio de luxo em logradouro antes cheio de árvores
O que era um terreno de 0,6 hectares, densamente arborizado, numa encosta com vista sobre o Tejo, prepara-se para ser cenário de construção de um condomínio de luxo – com apartamentos a custarem entre 600 mil e dois milhões de euros. Algo de que os moradores ficaram a saber, há poucas semanas, quando as máquinas entraram pelo logradouro adentro e derrubaram quase todas as árvores. Depois do choque, mobilizam-se para suspender o projecto. Exigem discussão pública do mesmo. Mas a Stone Capital, empresa promotora, ligada a projectos polémicos como o Palácio de Santa Helena, em Alfama, ou os contentores do Martim Moniz, diz que muita da contestação não passa de desinformação. A começar pelo facto de, garante, todos os trâmites legais terem sido seguidos. Mais, a Stone assegura que, ao contrário do que é dito, o logradouro verde até vai aumentar e serão plantadas árvores. “Este projecto vai fazer muito pela Graça, vai requalificar uma zona que actualmente tem maioritariamente espécies infestastes e vai trazer lugares de estacionamento para residentes”, assegura.
Era um local quase paradisíaco no coração de um dos bairros mais típicos de Lisboa, uma mancha verde com árvores de grande porte e vegetação diversa em plena Graça. Mas, numa manhã de Janeiro passado, as máquinas vieram e destruíram quase tudo. A intervenção de preparação do terreno para a construção de um condomínio de luxo, cuja comercialização é feita sob a designação “Jardim da Glória”, acordou de forma abrupta para a nova realidade os residentes do quarteirão compreendido pelas ruas Josefa de Óbidos, das Beatas e da Senhora da Glória. “Nunca nos passou pela cabeça que fossem construir algo deste género, nesta zona, num terreno de logradouro que é permeável e com tantas árvores. Vão destruir a qualidade de vida as pessoas que já aqui viviam. Vamos ter uma aldeia de ricos a tapar a vista à aldeia dos pobres”, queixa-se Alexandra Vidal, 38 anos, a morar no rés-do-chão de um dos prédios da Rua Josefa de Óbidos há meia dúzia de anos. Como ela, outros estão agora a aperceber-se do impacto que o empreendimento terá no seu quotidiano. E por isso estão mobilizar-se.
Desde a semana passada, está a circular uma petição sob o mote “Não ao Jardim da Glória sem discussão pública. Não a um loteamento de luxo com destruição ambiental e patrimonial no coração da Graça”. Através dela, pede-se que o projecto seja suspenso até que o mesmo possa ser “tratado por todos como o loteamento que de facto é”. Algo que não sucedeu. O empreendimento da Stone Capital – empresa responsável por alguns dos mais polémicos projectos da capital, como o Palácio de Santa Helena (Alfama) ou a requalificação do Martim Moniz, esta através da participação na empresa Moonbrigade, Lda – ocupará grande parte da área de um logradouro com 6.249 metros quadrados. O projecto prevê a construção de 40 apartamentos com áreas entre os 45 e os 450 metros quadrados (a custarem entre 600 mil e dois milhões de euros ), estacionamento subterrâneo, piscina, spa e zona lounge, jardim e parque infantil. Apesar da dimensão da obra e das profundas alterações que o terreno sofrerá, os moradores dizem que nada sabiam sobre o projecto, até ao corte de árvores.
O logradouro antes da razia. As árvores de grande porte são já apenas uma recordação
Isso mesmo é salientado nos considerandos da petição, na qual se lê que, a 20 de Fevereiro “máquinas de obras destruíram quase 5 hectares (sic) de árvores e mato, de um imenso logradouro muito antigo, de um “pulmão verde” entre quatro ruas e quatro eixos de prédios, um elemento vital para o equilíbrio ambiental da zona e da cidade de Lisboa” – área que, de acordo com o Plano Director Municipal (PDM) em vigor, será na sua maior parte “logradouro verde permeável a preservar (espaço consolidado)”. De acordo com os promotores da recolha de assinaturas contra o projecto, a referida acção aconteceu “sem aviso prévio”. Mas também, alegam, sem a necessária presença de técnicos, sem a existência de estudos fitossanitários, como o Regulamento Municipal do Arvoredo determina, e, “como o imenso terreno fica ao lado da Capela Senhora da Glória, sem a respectiva avaliação arqueológica”. Pior, dizem, o empreendimento deveria obedecer aos procedimentos de um loteamento, mas acabou por ser aprovado pelos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa “como se não o fosse”.
Algo que terá contribuído para apanhar a comunidade desprevenida, alega-se na Graça. “Como não houve comunicação prévia, foi uma surpresa. Grande parte dos vizinhos não sabe o que vai acontecer. Sabia-se que havia um projecto qualquer, até porque havia obras no prédio com o número 16 da Rua das Beatas, onde é a entrada para este terreno, mas nada de concreto”, diz Nicolas Sousa, um dos moradores da zona – e que prefere manter a sua morada incógnita -, recordando o choque sentido por quem, a 23 de Janeiro, viu as máquinas entrarem por aquele oásis urbano e cortarem a primeiro árvore do logradouro, localizada numa zona que se suponha de protecção ambiental. Depois disso, voltou a acontecer uma grande intervenção, a 20 de Fevereiro, quando cortaram todas as árvores altas que restavam, com excepção de uma junto ao quintal de uma moradora. Viajando com frequência para o estrangeiro, Nicolas não assistiu a tal momento. Mas o que viu depois deixou marcas. “Quando voltei, apanhei um susto, estava perante uma paisagem apocalíptica”, descreve.
E a estupefacção de Nicolas, como dos restantes, com a intervenção em curso é tanto maior quanto, asseguram, a inexistência de informação pública transparente sobre o que ali estaria para acontecer. Para além das movimentações de operários no mencionado número 16 da Ruas das Beatas, os moradores daquela área dizem que nada faria supor o que agora se lhes assemelha a um pesadelo. Até porque a única comunicação a prévia a que supostamente tiveram acesso, através de uma carta enviada a cada um, a 3 de Julho passado, dificilmente deixaria adivinhar a dimensão da intervenção. Na missiva enviada pela firma Percurso Positivo, Lda, que tem a mesma morada da Stone Capital, os destinatários eram informados de que a mesma iria avançar com “obras de construção com execução de obras de escavação geral e beneficiação de muros periféricos”. Para além de garantir o cumprimento de todas as normas de segurança, a carta asseverava que a intervenção iria “contribuir para a melhoria da qualidade urbanística, social e ambiental desta freguesia e consequentemente da cidade de Lisboa”, comprometendo-se ainda a minimizar eventuais incómodos causados pelos trabalhos.
Só que os incómodos aparentam ser de uma escala bem maior, tal o grau de contestação que se vai fazendo sentir na Graça. “Os moradores dos prédios em volta do logradouro vão perder a vista sobre o Tejo e sobre uma área verde natural, para receberem em troca uma vista sobre dois enormes prédios e um pequeno jardim do novo condomínio. E os atuais proprietários desses prédios vão ver o valor imobiliário dessas casas diminuir”, denuncia-se na petição, que pede que o projecto seja suspenso, para que se inicie um processo de consulta pública sobre o mesmo. Algo que, salientam, compreende aviso público, fase de recolha de contributos dos interessados, relatório de ponderação, reformulação (ou não) da proposta e aprovação da mesma em reuniões de câmara e da assembleia municipal. “Dois prédios aqui no meio não fazem sentido nenhum. Isto não deveria ter sido aprovado ou, se fosse, pelo menos que houvesse uma partilha de opinião com as pessoas”, diz Alexandra Vidal. “É muito triste ver isto. Em Lisboa fazem falta espaços verdes”, diz Daniel Santos, 30, morador no último andar de um dos prédios da Rua Josefa de Óbidos.
Ora, a apreciação do processo feita pelos residentes contestatários não poderia ser mais distinta da realizada pelos promotores do projecto. Garantindo que o mesmo “seguiu todos os trâmites legais e regulamentares e foi objecto de todos os estudos necessários, tendo sido escrutinado ao longo de quatro longos anos de tramitação”, os representantes da Stone Capital asseguram a O Corvo ter tido profundas preocupações ambientais, segundo inclusivamente as recomendações para o respeito da biodiversidade e da biofilia, elaboradas por uma empresa francesa do ramo. “No final da obra, vamos aumentar o logradouro verde para 4,500 metros quadrados e plantar 67 árvores, 1,600 arbustos e 18 herbáceas. Os dois edifícios no jardim, desenhados pelos arquitectos da ARX, vão ser forrados a madeira para suavizar o seu impacto visual e se integrar no contexto ajardinado”, explica a mesma fonte, antes de notar que “há 20 anos atrás, uma grande parte do terreno estava ocupado com construções” precárias – tendo enviado uma foto como prova.
“Antes do início das obras de limpeza do terreno, este encontrava-se repleto de espécies de arvoredo infestantes e, de forma geral, mal tratado”, explicam os representantes da Stone Capital, assegurando que no projecto de paisagismo desenvolvido pelo NPK – Arquitectos Paisagistas Associados está projectada a integração de vegetação autóctone promotora de biodiversidade. “No plano da flora a implementar, estão mais de 100 espécies de diferentes portes, sazonalidade, biodiversidade e interesse”, explica a mesma fonte, em resposta escrita às questões enviadas por O Corvo, garantindo ainda que “este projecto vai fazer muito pela Graça, vai requalificar uma zona que actualmente tem maioritariamente espécies infestastes e vai trazer lugares de estacionamento para residentes”. No que se refere à comunicação do projecto aos moradores, a empresa diz ainda que, além da carta enviada em Julho de 2018, foi colocada uma placa de informação sobre o processo de licenciamento na Rua Nossa Senhora da Glória.
Nota editorial: texto editado às 9h50 de 12 de Março. Corrige referência à ligação da Stone Capital ao projecto do condomínio da Rua Damasceno Monteiro.