Moradores acusam Câmara
de Lisboa de demolir barracas com “dezenas de gatos” lá dentro
Residentes dizem que quando, a 2 de Maio, a autarquia avançou com a demolição das construções na Rua Quinta da Noiva, junto à Avenida Gago Coutinho, não acautelou a segurança de dezenas de gatos que viviam numa colónia. Muitos terão morrido debaixo dos escombros ou atropelados durante a fuga. Residentes e trabalhadores da zona e ainda técnicos da Casa do Animal de Lisboa – entidade tutelada pela autarquia – estão agora concentrados no resgate dos sobreviventes. Quem mora na vizinhança assegura serem pelo menos 60 os gatos, mas a Provedora dos Animais de Lisboa diz já terem sido resgatados 13 e que, segundo informação obtida junto da Casa do Animal, não haverá muitos mais. Tanto a provedoria, como a Liga Portuguesa dos Direitos do Animal e os deputados municipais do PAN, exigem esclarecimentos à câmara. Querem o apuramento de responsabilidades “até às últimas consequências”, por não entenderem como se avançou para a demolição, se a colónia estava nos registos da Casa do Animal de Lisboa.
Georgi Georgiev e Lyubka Kutteva moraram em barracas, durante 16 anos, na Rua Quinta da Noiva, próximo da Avenida Almirante Gago Coutinho, em Lisboa, até serem demolidas no início deste mês. O casal búlgaro vive agora ao relento, debaixo das arcadas do prédio, no outro lado da avenida, com dois gatos e um cão. Nos escombros, garantem, ficaram seis dezenas de gatos, dos quais cuidavam. “A Câmara de Lisboa sabia que os animais estavam lá e, mesmo assim, avançou com a demolição”, acusa Lyubka, que viu a sua habitação ruir com todos os seus pertences, “inclusive uma arca frigorifica com comida para os próximos meses”.
Há vários anos que a autarquia ameaçava demolir as construções existentes naquela encosta – oficinas automóveis e habitações improvisadas –, por “perigo iminente” de derrocada da escarpa do Parque da Bela Vista. A operação concretizou-se, no dia 2 de Maio, com aviso prévio para moradores e trabalhadores abandonarem o local. Mas, neste processo, tanto os residentes como os cuidadores de animais criticam o município por alegadamente não ter acautelado a segurança dos gatos que ali viviam numa colónia. “Os funcionários apareceram com as máquinas e deitaram tudo abaixo, sem antes retirarem os animais”, conta Maria Gaspar, 50 anos, moradora nas redondezas.
Georgi Georgiev e Lyubka Kutteva queixam-se da actuação das autoridades municipais
O alerta foi dado logo após a demolição e, em poucos dias, residentes e trabalhadores da zona lançaram um apelo nas redes sociais para resgatar os animais que pudessem ter sobrevivido. Maria Gaspar esteve entre os primeiros a deslocarem-se à encosta: “Coloquei comida em vários sítios e começaram a aparecer gatos de todos os lados, pelo menos 25.” Estavam todos esfomeados e ela acabou por levar um para casa: “É um gatinho com poucas semanas de vida e estava completamente molhado.”
Teresa Veiga, moradora no Areeiro, está também convencida de que a Casa dos Animais de Lisboa (CAL), entidade tutelada pela câmara, não fez tudo o que estaria ao seu alcance: “Os técnicos foram ao local antes das demolições, para tratar dos cães e não ligaram à situação dos gatos.” Assim que as máquinas entraram no terreno – denuncia ela –, os animais refugiaram-se nas barracas, ficando enterrados. Outros fugiram, assustados, acabando atropelados. E o socorro, esse, acabou por ser bastante dificultado, dado que a polícia impediu a entrada dos moradores. “A CAL só avançou para a captura dos gatos depois de muito pressionada”, critica.
A CAL, aliás, e segundo nota da Provedoria dos Animais de Lisboa publicada a 8 de Maio na página de Facebook, já visitou o local, assegurando estarem agendadas novas diligências para capturar e recolher os gatos. A operação surgiu na sequência do “enorme número de denúncias” que chegaram à provedoria. Ainda antes das demolições, explica a provedora, uma médica veterinária da Casa dos Animais visitou o local a 22 de Abril. Acompanhada pela polícia municipal, fez a avaliação dos possíveis impactos da operação na segurança e bem-estar dos animais.
Os esforços da CAL, no entanto, foram insuficientes para acautelar a retirada dos animais antes da demolição, denuncia quem ali vive ou trabalha. Uma trabalhadora da zona, que pediu para não ser identificada, assegura que, com o avanço das máquinas, os animais fugiram, acabando alguns por morrer, incluindo algumas ninhadas: “Mandaram as barracas abaixo e nem confirmaram se havia animais debaixo dos escombros”, lamenta ela, contando que, do seu local de trabalho, já conseguiu ver na passada sexta-feira (10 de Maio), vários gatos ali pela zona.
“A Casa dos Animais apanhou meia dúzia deles, mas ainda há muitos”, diz a trabalhadora, advertido que, segundo as estimativas da polícia e do casal búlgaro, serão, pelo menos, uns 60 gatos. Reconhecendo que o resgate é um trabalho complicado por os animais estarem agora assustados e fugidios, não deixa de lembrar que não faltam voluntários para assumir essa tarefa: “Há disponibilidade de cuidadores e de munícipes para capturarem os animais, mas, até agora, foram ignorados.”
A preocupação dos moradores e cuidadores está agora focada nos animais que possam ter sobrevivido. Tal como Maria Gaspar, Etelvina Lage, também a morar na zona, percorreu os escombros, poucos dias depois das demolições. Após “insistir muito” junto da polícia municipal, conta que conseguiu entrar na zona dos escombros, tendo avistado “vários gatos”, visivelmente famintos. “Com a luz de uma lanterna, debaixo do entulho e de tábuas de madeira, conseguimos encontrar outros, o que me leva a acreditar que a câmara procedeu à demolição sem enviar ninguém ao terreno”, suspeita Etelvina, acrescentando já ter endereçado emails à Casa dos Animais de Lisboa, à câmara municipal e outras entidades protectoras dos animais, ainda sem respostas.
O Corvo também tentou contactar, por diversas vezes, quer a Casa dos Animais de Lisboa como a câmara municipal, mas sem sucesso. A provedora dos Animais de Lisboa, Marisa Quaresma dos Reis, diz, entretanto, a O Corvo que a CAL lhe garantiu que acompanhou o processo de demolição, não tendo identificado “nenhuma situação de risco para os gatos”. Admite, contudo, “várias informações contraditórias que é preciso apurar”.
A confirmarem-se as denúncias, salienta, será ainda necessário provar o “comportamento intencional do agente”, já que a “mera negligência” não é punível por lei: “Se for aberto um inquérito pela PSP ou Ministério Público, só no decurso da investigação será possível apurar se estão reunidos todos os requisitos para a prática do crime de maus-tratos e a sua autoria.” E, como tal, só após estas etapas é que poderá tomar uma posição, reconhece, avisando também que os trabalhos de captura vão decorrer durante toda a semana e que ela própria visitará o local com a sua equipa para fazer uma avaliação da situação.
“Até ao momento, foram capturados 13 felídeos – já em processo de esterilização – prevendo-se faltarem “poucos felinos” no local”, conta Marisa Quaresma dos Reis, esclarecendo haver uma aparente contradição entre os números da Casa do Animal e os que foram denunciados por moradores e trabalhadores da zona. “A CAL reitera que os animais não estão debaixo dos escombros, têm alimento e estão bem tratados”, diz a provedora, contando ainda que os gatos estão a ser colocados no gatil de adopção da Casa do Animal. Fica por explicar, no entanto, como é que as demolições avançaram sem se precaver antecipadamente a retirada dos gatos: “Tenho de apurar o que poderia ter sido feito e porque não retiraram os gatos antes. Se calhar, podia ter sido feito de outra forma”, reconhece.
Isso é, aliás, o que o grupo municipal do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) também quer saber, estando neste momento a elaborar um requerimento para entregar à Câmara de Lisboa a fim de obter mais esclarecimentos. “Se retiraram as pessoas, também deveriam ter retirado os animais”, diz a deputada municipal do PAN, Inês Sousa Real, assegurando que a colónia já estava registada na Casa dos Animais de Lisboa.
Também a presidente da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal, Maria do Céu Sampaio, diz que vai solicitar à autarquia o apuramento de responsabilidades “até às últimas consequências”. “Admira-me como é que uma das câmaras municipais que tem tido mais cuidado com os animais tenha deixado isto acontecer”, remata.