Existe uma história cosmopolita de Lisboa para ver no museu da cidade

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Sofia Cristino

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CULTURA

Cidade de Lisboa

24 Maio, 2019

Cristãos, judeus, muçulmanos, africanos e europeus, todos eles contribuíram muito para a construção da imagem da cidade. O Palácio Pimenta, sede do Museu de Lisboa, acolhe a exposição “Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910”, para mostrar o papel destas comunidades, disseminado ao longo da história, que viveram em Lisboa entre a Idade Média e a I República. Nela poderemos ver exposto o único vestígio da sinagoga da Judiaria Grande de Lisboa, uma lápide com várias centenas de anos, mas também estatísticas da escravatura “que incomodam”. “Portugal e o Brasil foram, de longe, o núcleo civilizacional europeu que mais traficou africanos, muito mais que Inglaterra e os Estados Unidos da América”, explica um dos comissários da mostra. É uma exposição sobre a construção da cidade, “tão complexa e multifacetada como ainda é hoje”.

O rei D. Manuel I (1469-1521) tentou esconder a presença judaica e muçulmana, em Lisboa. Muitos outros ocultaram o papel dos africanos na história portuguesa, reduzindo-os apenas à função de escravos. Para desconstruir alguns preconceitos e mitos e compreender melhor as nossas origens e a história da cidade que habitamos, o Palácio Pimenta, sede do Museu de Lisboa, acolhe a exposição “Convivência(s). Lisboa Plural. 1147-1910”, até ao final deste ano (22 de Dezembro). Não houve, até hoje, “praticamente dimensão da existência de Lisboa, da qual as comunidades religiosas minoritárias e estrangeiras estivessem ausentes”, explica Joana Sousa Monteiro, directora do Museu de Lisboa, numa visita guiada aos jornalistas, na tarde desta quinta-feira (23 de Maio), poucas horas antes da exposição inaugurar.

 

A mostra fala-nos, por isso, “do papel de uma imensa população estrangeira que habitou Lisboa, entre a Idade Média e a I República, e contribui muito para a construção da imagem da cidade, mas que recebeu o rótulo histórico de minoritária”. “Quisemos esconder-nos atrás do olhar dos estrangeiros que cá viviam, para vermos como é que eles nos viam a nós. É uma exposição de pistas, em contextos históricos muito diferentes, de quem foi construindo a nossa cidade, fazendo-a tão complexa e multifacetada como ainda é hoje, e cada vez mais. A diversidade é uma riqueza de Lisboa há vários séculos”, explica a directora do museu.

Há mais de oito centenas de anos, a cidade foi habitada por cristãos, muçulmanos e judeus, que deixaram uma forte presença em Lisboa não só através dos seus templos, mas também de práticas e costumes. Entre os séculos XV e XIX, só conseguimos perceber a história da cidade compreendendo os meandros da escravatura africana. Várias comunidades estrangeiras residiram, em Lisboa, e também tiveram “um papel essencial na construção da cidade e até da própria evolução urbanística” da capital. “A exposição mostra a diversidade que foi convivendo de modo pacifico, e menos pacífico, dentro da mesma cidade ao longo do princípio da Idade Média até à I República, apontando algumas linhas de continuidade e disrupções. A mostra situa-se num ponto completamente oposto do maniqueísmo, dos bons e dos maus, situa-se na diversidade de olhares sobre o mesmo contexto ao longo dos séculos”, esclarece.

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Uma exposição para descobrir os contributos de diferentes culturas naquilo que é hoje Lisboa

Nos próximos dias, de terça-feira a domingo, entre as 10h e as 18h, ao entrar no átrio do Pavilhão Preto, vai-se ouvir crioulo da Guiné-Bissau, bengali, gujarati, nepalês, mandarim, japonês e português do Brasil. É o resultado da compilação de várias entrevistas, feitas por uma das comissárias da exposição, Ana Paula Antunes, em conjunto com outros colegas, a alguns moradores do Martim Moniz, na freguesia de Santa Maria Maior. “Entrevistámos várias pessoas para nos ajudarem a traduzir alguns idiomas e compreendermos melhor as suas ligações às origens”, explica.

 

Ao ultrapassar o átrio, a primeira parte da exposição é dedicada aos cristãos, muçulmanos e judeus na Lisboa medieval. Aqui, encontram-se duas peças moçárabes anteriores à conquista de Lisboa aos muçulmanos, em 1147. Uma lápide, de 1307, é o único vestígio da sinagoga da Judiaria Grande de Lisboa. Por ordem de D. Manuel I, este monumento funerário, assim como outros, foram utilizados para a construção da Igreja da Conceição dos Freires da Ordem de Cristo e do Hospital Real de Todos-os-Santos, tendo só sido descobertos depois do terramoto de 1755. A outra peça moçárabe fez parte de uma mesquita que existiu na Mouraria entre os séculos XIV e XV. O primeiro foral, escrito sobre pergaminho em latim, de 1217, também é um dos elementos presentes nesta sala da Idade Média. “Quando a cidade era muçulmana, houve uma tolerância e convivência com outras religiões, que muitos desconhecem”, acrescenta.


 

Na segunda parte da exposição, encontramos “A Lisboa dos Africanos”, a revelar “números que incomodam”, diz Ana Paula Antunes. Entre os séculos XVI e XIX, foram traficados mais de cinco milhões de escravos em território português. Em todo o mundo, foram escravizados 13 milhões, sendo que quase metade destes provinham de África e iam para o Brasil. “Portugal e o Brasil foram, de longe, o núcleo civilizacional europeu que mais traficou africanos, muito mais que Inglaterra e os Estados Unidos da América, ao contrário do que muitas vezes se diz. Os reis D. Manuel e D. José tiveram o monopólio de escravos no território português”, frisa Paulo Fernandes. A escravatura só terminaria em 1869, mas, noves anos depois, explica Ana Paula Antunes, “ainda tinham de servir ‘o senhor’ em condições ligeiramente diferentes”. “Claro que muitos fugiram”, acrescenta. A dimensão da escravatura em Lisboa está plasmada num mapa da cidade, anterior ao terramoto de 1755, onde estão assinalados os lugares mais povoados pelos africanos.

 

Tabaqueira (Real Fábrica de Louça do Rato, século XIX, Museu de Lisboa)

 

Durante séculos, foram utilizados como força de trabalho em várias funções domésticas e públicas, representadas em quadros de autores desconhecidos, “provavelmente flamengos”, nesta exposição. Até ao século XIX, “os homens negros iam buscar a água e as mulheres negras, chamadas de calhandeiras, os dejectos humanos, mas também havia mulheres negras que eram damas de companhia”, explica Ana Paula Antunes. “A distribuição das tarefas não mostra só diferenças entre etnias, mas também desigualdades de género e a vida dificílima que estas mulheres tinham”, frisa ainda a comissária. Os africanos não trabalhavam só em actividades que exigiam mais esforço físico, mas também criaram obras de arte. “Fala-se muito da escravatura, mas é importante revelar que também houve uma integração de africanos escravizados e não escravizados, através da arte”, conta Paulo Antunes.

 

Entre estes, encontra-se “Pae Paulino”, representado na exposição através de uma estátua, “um homem muito respeitado em Lisboa”. Recebeu uma condecoração por se ter destacado no exército liberal e liderou várias irmandades de negros no apoio à libertação de escravos, “mas também trabalhou como caiador no Rossio”, explica o comissário. Na Igreja de Santa Catarina, na Baixa de Lisboa, há uma peça do século XVII, onde estão dois negros amoladores, “mas provavelmente nunca ninguém reparou nela”, diz a directora do Museu. “É muito importante e mostra-nos que havia alguma tolerância, em pleno período de escravatura e inquisição”, explica.

 

 

O último núcleo da mostra é dedicado aos “Europeus de Lisboa”, os espanhóis, franceses, ingleses, alemães, holandeses e italianos. Aqui, várias peças e mapas revelam a importância da sua presença em vários momentos da história. Entre 1580 e 1640, os arquitectos ao serviço da dinastia filipina eram espanhóis. Há quadros de pintores espanhóis, que se erradicaram na capital neste período, como Fernão Gomes, e outras peças, como um arco imponente em madeira, de 1619, para receber o rei D. Filipe II à entrada da cidade.  O Pátio das Arcas foi o teatro mais importante de Lisboa antes do terramoto, e também chegou a Portugal por intermédio de actrizes espanholas. Há ainda vestígios do cemitério dos ingleses, de 1717, a comprovar a sua vivência na cidade durante séculos, e do seu congénere dos holandeses.

 

Nas últimas salas da exposição, encontram-se ainda vários quadros de vistas da cidade do pintor holandês Dirk Stoop, uma peça francesa (uma custódia) e um contentor de recolha de voto secreto, encontrado na Igreja do Loreto – restaurada por italianos. Esta caixa em madeira era utilizada para a eleição de membros da Junta, que aprovava os estatutos da confraria do Santíssimo Sacramento da Igreja do Loreto. As duas entradas da caixa eram abertas por baixo e procedia-se à contagem dos votos aí colocados por 12 votantes escolhidos entre os mercadores de maior reconhecimento da comunidade italiana.

 

Cemitério Inglês, na Rua da Estrela (fotografia de Joshua Benoliel)

 

“A nossa intenção foi dar voz aos que cá residiam. Existem muitos relatos de viagens de estrangeiros que vieram a Lisboa, e até disseram muito mal da cidade, mas isso não se passa com as comunidades estrangeiras que cá residiam. Essas sim, tiveram um papel essencial na construção da cidade e até na própria evolução urbanística”, explica Paulo Fernandes.

 

A exposição termina com um exemplar do primeiro jornal português, a Gazeta, nascido a 1 de Dezembro de 1640, e cópias da Constituição da República Portuguesa de 1911 e de 1933, que vigorou no regime do Estado Novo (1933-1974). “Aqui acaba um período da história e começa outro. Já não há necessidade de se construir sinagogas invisíveis”, termina Paulo Almeida Fernandes. Os curadores da exposição e a directora do Museu de Lisboa esperam conseguir, brevemente, dar continuidade à mostra. “Abriu-nos pistas para um melhor conhecimento da história cultural de Lisboa e das vivências da sociedade, ao longo do tempo. Por isso, parte da exposição poderá dar origem a outras mais aprofundadas sobre cada período ou comunidade. Uma cidade que, à época, era tão deles, como dos lisboetas”, conclui Joana Sousa Monteiro.

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