Por que é tão difícil criar uma rede de bicicletas partilhadas em Lisboa?

ACTUALIDADE
Samuel Alemão

Texto

MOBILIDADE

Cidade de Lisboa

2 Fevereiro, 2016

A EMEL prepara-se para relançar o concurso para a criação e exploração do sistema municipal, por um período de nove anos. É a consequência da recente exclusão dos 11 concorrentes na primeira tentativa de escolha de quem vai gerir a rede com 1400 bicicletas e 140 estações, por quase 29 milhões de euros. Um atraso mais num processo iniciado em 2007 e cujo custo tem merecido duras críticas. O CDS-PP tem-se destacado nessa contestação. O Corvo foi ouvir dois observadores da comunidade ciclista da capital sobre os riscos e desafios associados à criação, em Lisboa, de um sistema que, afinal, é já utilizado um pouco por todo o mundo. Cá, andamos há quase uma década para o instalar.

Os primeiros dias do ano trouxeram a notícia de que a Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) havia decidido excluir todos os onze concorrentes à exploração do sistema de bicicletas partilhadas que a cidade quer criar, por um valor próximo dos 28,9 milhões de euros. De acordo com a empresa, detida pelo município da capital, nenhuma das empresas que apresentaram candidaturas para a prestação de serviços na exploração do sistema, que deverá disponibilizar 1400 bicicletas e 140 estações de recolha, durante nove anos, terá cumprido com os requisitos do concurso lançado em Novembro de 2015. As razões eram várias, sobretudo relacionadas com questões processuais, mas também por falta de cumprimento de diversos requisitos técnicos.

Por isso, a EMEL decidiu lançar um novo concurso “nas próximas semanas”, sem alterar as características do mesmo. À agência Lusa, a empresa anunciou que esperava, apesar dos atrasos motivados com a anulação, poder realizar “um teste piloto no final deste ano”. E reforçou a convicção de que este seria o modelo adequado para a exploração do sistema de bicicletas partilhadas, uma vez que, além das propostas apresentadas, houve ainda duas empresas a manifestarem interesse sobre o processo, embora não tenham avançado. Uma afirmação de confiança surgida num contexto de forte contestação do vereador João Gonçalves Pereira (CDS-PP) à opção do município pela prestação de serviços pelo valor estipulado. O autarca diz que é muito caro, não tem um plano de negócios definido e, por isso, o melhor seria fazer uma concessão do sistema a privados – na semana passada, chegou mesmo a pedir a suspensão do novo concurso.

Esta não é a primeira vez que um concurso lançado pela EMEL com este fim é anulado. O mesmo já havia sucedido em Maio de 2009. Neste momento, a cidade continua à espera de uma solução para cumprir uma promessa da Câmara Municipal de Lisboa que já vem de 2007. Ou seja, há praticamente uma década que a capital portuguesa tenta, sem sucesso, instalar um sistema de bicicletas partilhadas. Se as coisas, desta vez, correrem bem, Lisboa parte já com um significativo atraso face ao que se passa em muitos países. De acordo a informação disponível na internet, em Junho de 2014, existiam 712 cidades de 50 países com sistemas de “bike sharing”. Então, porquê esta dificuldade em montar e pôr a funcionar uma simples rede de bicicletas? Bom, para começar, talvez não seja simples.

Essa é a opinião de Mário Alves, reconhecido especialista em mobilidade e ele mesmo utilizador da bicicleta como meio de transporte em Lisboa. “É um sistema muito complexo e difícil de instalar, ao contrário do que possa parecer. Além disso, revela-se um sistema muito caro e difícil de justificar do ponto de vista político, porque, por regra, obriga a gastos de 1500 a 2000 euros, por ano, com cada bicicleta”, diz o consultor de transportes que O Corvo decidiu ouvir para tentar encontrar possíveis razões para tal delonga na implementação da rede. Mas tal faz parte das regras do jogo e não podia ser de outra forma, avisa. Além de que, muito importante, “não é verdade que o sistema vá custar 29 milhões à cidade”.

Mário Alves lembra que a contestação aos valores anunciados peca por ser pouco rigorosa. “Quando se fala desse valor, está-se a falar do valor-base do concurso, isto é, do montante máximo que poderá custar a rede a ser instalada e explorada. Mas os concorrentes poderão apresentar propostas mais baixas, para tentar ganhar e, tendo em conta que existe uma limitação legal de propostas inferiores a metade do valor-base, podemos dizer que o custo até poderá vir a ser entre 50% e 99,9% do que foi anunciado”, enuncia o especialista. Uma explicação que serve assim para rebater um dos principais argumentos utilizados pelos críticos do sistema contra a solução adoptada pela autarquia lisboeta.

Tais críticas fizeram-se ouvir de forma veemente por parte do vereador centrista João Gonçalves Pereira, a 16 de Dezembro passado, quando o assunto foi a discussão em reunião de executivo municipal. “Se a CML avançar com isto, poderá lançar uma candidatura ao Guiness Book, porque este será, certamente, o sistema de bicicletas mais caro da história. Não reconheço à EMEL a capacidade de gestão para isto”, disse, na altura o autarca do CDS-PP, criticando ainda a alegada inexistência de um plano de negócios, incluindo o valor dos tarifários a aplicar. “O município está a pagar tudo e a assumir todos os riscos”, acrescentou, afirmando que a concessão a privados seria muito melhor que a escolhida prestação de serviços.


Tais críticas mereceram, na referida reunião de Dezembro, uma vigorosa réplica do presidente da câmara, para quem as receitas com bilhetes e publicidade ajudarão a pagar o funcionamento. “Assumo que este sistema que vamos implementar em Lisboa não vai ser lucrativo. Mas tenho a certeza de que o custo líquido não vai ser de 29 milhões de euros, pois teremos que contar ainda com a obtenção de receitas de bilhética e de exploração de publicidade no sistema, mas também com o custo social deste projecto”, afirmou, na altura, Fernando Medina.

O autarca disse que esta solução “protege significativamente o município, pois é um modelo em que, ao contrário dos outros, ganhamos o controlo sobre a gestão do sistema e assumimos o risco relativo à procura que ele venha a ter”. Uma assunção fundamentada pelo que se passa noutras cidades. A exploração de receitas publicitárias nas bicicletas, em mupis e nas estações de recolha é também solução utilizada em muitas cidades europeias e a sua reprodução em Lisboa é apontada como importante por Mário Alves. “O sistema pode ter receitas importantes, que ajudarão a pagá-lo”, diz o especialista em transportes, antes de admitir que, a grande maioria destes sistemas a nível internacional, “precisa de ser subsidiado”. “A diferença entre os custos e as receitas não é coberta”, reconhece.

Vicenza_Bike_Sharing_Scheme_station.jpg

Mas, e apesar disso, Mário Alves vê com bons olhos a decisão da CML avançar com o sistema de bicicletas partilhadas e nos moldes escolhidos. “O número de bicicletas e de estações parece-me bem”, afirma. “Há um crescimento exponencial das redes de bicicletas partilhadas no mundo. Só em Espanha, existem cerca de 200. E a maioria está a funcionar relativamente bem, embora haja exemplos de outras que não estarão a operar tão bem. Madrid, por exemplo, tem relatos de sentido contrário”, informa. Na Austrália, a obrigatoriedade de uso de capacete estará a ser decisiva no aparente falhanço dos sistemas montados em diversas cidades, como Melbourne. O seu uso parece pouco atraente para os ciclistas urbanos.

O facto de parte das bicicletas a disponibilizar em Lisboa ser eléctricas levará a que os seus utilizadores tenham de usar capacete. “Aí poderemos vir a ter um problema”, admite Mário Alves, para quem as razões para que a rede ainda não tenha saído do papel, ao fim de tantos anos de tentativas, terá, afinal, muito que ver com a nossa ainda reduzida cultura ciclista. “Em Lisboa, apenas 0,5% das pessoas que fazem deslocações diárias para o trabalho ou a escola o fazem de bicicleta”, diz. Outra razão, não despicienda, terá que ver com a proverbial ineficiência de parte da administração pública. As duas, em conjunto, terão confluído nesta década perdida a tentar implementar o sistema.

Mas será que esta é mesmo uma aposta correcta? Há muitas vozes bastante cépticas, já se referiu. Uma delas é a de Laura Alves (sem relação, apesar do apelido coincidente), ciclista experiente e autora do livro A Gloriosa Bicicleta – escrito em parceria com Pedro Carvalho -, uma espécie de bíblia para os que estão a começar a dar as primeiras pedaladas. “Quando foi anunciado o concurso, fiquei espantada com o valor envolvido. Acho um montante demasiado elevado, tendo em conta que o uso da bicicleta ainda não está bem assimilado entre nós. É claro que a rede terá as suas vantagens, mas ainda há tanto por fazer”, considera.

E entre o muito que se poderia fazer, e até com montantes não tão elevados, estaria o investimento em parques de bicicletas ou até melhorias na rede de ciclovias existente – “muitas estão muito mal construídas. Vejo imensas coisas que não fazem sentido”. Por causa disso, Laura considera que também faz sentido continuar a expansão da rede, “mas com ciclovias bem feitas”. Isto embora afirme que as ciclovias nem são a prioridade, mas sim o fomento de uma mudança de mentalidade numa sociedade, como a nossa, em que, apesar dos recentes sinais de mudança, pedalar a duas rodas na cidade ainda continua a ser visto como exótico.

“Julgo que seria muito mais interessante investir na formação e na educação das pessoas. Muita gente ainda tem aquele discurso de que a cidade é demasiado acidentada para pedalar, o que não corresponde à verdade. E a formação teria como destinatários não apenas os potenciais ciclistas como os automobilistas, por parte dos quais Laura Alves sente haver ainda uma grande incompreensão face a quem anda de bicicleta. Outro dos investimentos que a ciclista e autora veria como muito benéfico para a comunidade de duas rodas lisboeta seria o da criação de oficinas de manutenção espalhadas pela cidade.

No final de contas, diz Laura, se a rede de bicicletas partilhadas não é algo que entusiasme por aí além quem já anda de bicicleta – “antes de se investir nisto, ainda há muito por fazer”, repete – “se calhar, vai ser algo que se assumirá como interessante para os turistas, mais do que para os locais”.

MAIS ACTUALIDADE

COMENTÁRIOS

O Corvo nasce da constatação de que cada vez se produz menos noticiário local. A crise da imprensa tem a ver com esse afastamento dos media relativamente às questões da cidadania quotidiana.

O Corvo pratica jornalismo independente e desvinculado de interesses particulares, sejam eles políticos, religiosos, comerciais ou de qualquer outro género.

Em paralelo, se as tecnologias cada vez mais o permitem, cada vez menos os cidadãos são chamados a pronunciar-se e a intervir na resolução dos problemas que enfrentam.

Gostaríamos de contar com a participação, o apoio e a crítica dos lisboetas que não se sentem indiferentes ao destino da sua cidade.

Samuel Alemão
s.alemao@ocorvo.pt
Director editorial e redacção

Daniel Toledo Monsonís
d.toledo@ocorvo.pt
Director executivo

Sofia Cristino
Redacção

Mário Cameira
Infografias & Fotografia

Paula Ferreira
Fotografía

Catarina Lente
Dep. gráfico & website

Lucas Muller
Redes e análises

ERC: 126586
(Entidade Reguladora Para a Comunicação Social)

O Corvinho do Sítio de Lisboa, Lda
NIF: 514555475
Rua do Loreto, 13, 1º Dto. Lisboa
infocorvo@gmail.com

Fala conosco!

Faça aqui a sua pesquisa

Send this to a friend