Habitantes do antigo Bairro da Curraleira querem mostrar que ali “também há coisas boas”
Ainda antes de chegar ao chafariz do Alto do Pina, no final da primeira etapa do roteiro pelos vestígios dos antigos bairros da Curraleira e do Casal do Pinto, na fronteira entre as freguesias da Penha de França e do Beato, Mário Maia, 52 anos, recorda uma das conquistas recentes dos percursos por si guiados. “Aqui ao lado, na Rua António Luís Inácio, situada paredes-meias com a antiga Curraleira, tivemos um casal de meia-idade a inscrever-se na visita e que acabou por nos confessar que, apesar de morar a vida toda nesta rua, não conhecia o bairro”, recorda. Afinal, vieram a descobrir, quem ali antes vivia nas suas costas “eram pessoas como as outras”, diz, sem esconder um certo orgulho – o mesmo com que se apresenta no início da visita: “sou cigano”. É para desvelar um pouco do quotidiano de quem foi realojado, no início deste século, em prédios naquela zona, que acontece, na sexta-feira e no sábado (6 e 7 de Julho), o Festival As Costas da Cidade, na Quinta do Lavrado. Apesar do estigma de pobreza e de marginalidade, há vida nas encostas do Vale de Chelas.
A designação do festival – que, além de música e de teatro, inclui uma feira de produtos lisboetas, exposição de esculturas cénicas da Escola António Arroio, mostra de projectos feitos no bairro, com workshops sobre compostagem, nutrição, detergentes feitos a partir de produtos naturais e estampagens de tecidos – é em si mesma um programa, reconhece Cátia Máximo, 35, animadora social do Projecto Sementes a Crescer, integrado na sexta geração do Programa Escolhas. “O nome foi pensado em conjunto com as pessoas aqui do bairro e tenta reflectir um pouco daquilo que é o sentir desta comunidade, que se encontra encostada às traseiras do cemitério do Alto de São João, à central de alta tensão eléctrica e ainda à estação de tratamento de águas residuais de Chelas. Mas, apesar disso, há aqui vida, também se fazem coisas boas. Este é o momento em que a comunidade as mostra ao exterior”, afirma a técnica, reflectindo sobre a importância simbólica do festival, organizado pelo Fórum Urbano (da associação Locals Approach) e pela Transformar Talentos (numa parceria da Fundação Aga Khan com o Teatro Ibérico), com o apoio dos projectos BIP/ZIP, da Câmara de Lisboa.
As pessoas do antigo bairro da Curraleira, bem como do Casal do Pinto, herdaram uma história de esquecimento e de segregação em relação ao resto da cidade, mais que não seja pela sua própria delimitação territorial. Isso mesmo se percebe agora, durante a visita guiada por Mário Maia, junto à cruz metálica no alto de um montículo, a meio do Vale de Chelas, evocando a memória do grande incêndio de 31 de Março de 1975, no qual morreram duas pessoas e foram reduzidas a cinzas muitas da construções precárias ali existentes. As traseiras do cemitério do Alto de São João sempre marcaram essa ideia de reverso da urbe relativamente bem planeada. Algo adensado pela construção da ETAR, primeiro, e da central de alta tensão, mais recentemente. E é, de facto, difícil pensar numa pior localização para se morar, apesar de ao fundo se divisar uma nesga de Tejo. O cenário não é aprazível e o espaço público denota desleixo e insalubridade. Tal como as fachadas dos edifícios, a revelar desgaste e vandalismo.
Uma realidade a reflectir o que Carla Brito, 32, antiga assistente social no bairro, durante quase uma década, considera ser consequência directa da forma pouco estruturada como se fizeram as transferências para casas novas dos moradores provenientes de barracas e de outras habitações precárias – mudanças realizadas no âmbito do Programa Especial de Realojamento (PER) e ocorridas na transição entre a década de 90 e a seguinte. “As coisas não foram bem pensadas, enfiaram-se as pessoas nos prédios e esqueceu-se tudo o resto”, lamenta a técnica da organização não governamental Médicos do Mundo, repetindo uma crítica tantas vezes ouvida em processos semelhantes. Para além da constatação dessas carências, e apesar delas, sobra toda uma rede de vivências e de afectividade tecida por cumplicidades múltiplas – e isso nota-se pela forma carinhosa com que Carla e as restantes trabalhadoras sociais tratam muitos dos residentes que se lhes acercam -, nas quais se tem revelado muito importante o trabalho feito por diversos parceiros da sociedade civil.
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A forma como os realojamentos foram realizados na Curraleira continua a suscitar críticas
Entre eles conta-se o Clube Intercultural Europeu. A entidade, responsável pelo Projecto Sementes a Crescer, criou também o projecto PA-REDES, o qual permitiu aos moradores verem reflectidas as suas narrativas, através de arte urbana inscrita nas paredes de alguns dos prédios do Vale de Chelas. Uma ideia concretizada com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, através do financiamento do programa Partis. Foi numa visita guiada a esses murais – pintados também em parceria com a Gebalis, as associações de moradores, a associação de antigos alunos da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e Fundação Aga Khan – que Mário Maia conheceu os tais residentes da Rua António Luís Inácio, aquela que marcava a fronteira entre dois mundos que, até então, se ignoravam. Com os realojamento, muito mudou. O Corvo pergunta-lhe se, ainda assim, o nome Curraleira não continuará a evocar, agora através dos bairros que se lhe sucederam, uma sensação de marginalidade e de ligação ao tráfico de droga. “Isso há em todo o lado. Os barões, aqueles que mandam, não moram aqui, moram fora do bairro”, diz.
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