Entre a Bica, o Bairro Alto e Santa Catarina, é grande a revolta contra a insegurança e o tráfico de droga

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

VIDA NA CIDADE

Misericórdia

22 Novembro, 2018

A persistência da insegurança e do mau ambiente associados ao tráfico de droga na zona compreendida entre o Bairro Alto, a Bica e Santa Catarina está a deixar muitos moradores e comerciantes daquela zona da cidade à beira do desespero. “Isto está mau, mau. Está horrível, cada vez pior”, queixava-se uma comerciante, ao início da tarde desta quarta-feira (21 de Novembro), durante a visita da vereadora e presidente do CDS-PP, Assunção Cristas, organizada para denunciar tal quadro. Perante a manutenção de um problema que está longe de ser novo, e até se tem agravado nos últimos três anos, multiplicam-se por ali os relatos de gente que diz já não conseguir viver e trabalhar descansada. Consequência disso, bem como da aparente crónica falta de meios da Polícia de Segurança Pública (PSP) para acorrer às inúmeras solicitações da comunidade, começa a ouvir-se falar na necessidade de se organizarem milícias populares. Tema que deixou Cristas e a sua comitiva atrapalhados, evitando a líder centrista abordá-lo nas declarações finais aos jornalistas.

O assunto havia sido lançado junto aos microfones da comunicação social, quando Francisco Salgado de Kessler, gerente da garrafeira Galeria, situada no Largo do Calhariz, informou a vereadora das infrutíferas tentativas de se manter, a si e ao negócio, em segurança. A meio da tarde de 16 de Outubro, depois de uma troca de palavras com um traficante de estupefacientes que persistia em exercer a actividade de angariação de potenciais compradores junto à porta da sua loja, o empresário foi agredido com uma cabeçada. Do que resultou o nariz e dentes partidos. “Há quatro anos que, todos os dias, temos aqui à volta gente a vender droga, sem que as autoridades façam alguma coisa. Estamos no centro de Lisboa e todas as pessoas são assediadas para comprar. Os turistas acham estranho tudo isto e perguntam por que é que tal acontece”, relatou Francisco Kessler, queixando-se que “ninguém faz nada para resolver a situação, todos assobiam para o lado”.

Após ser agredido, apresentou queixa na polícia. Mas sente que tê-lo feito de nada lhe servirá. “Há aqui uma sensação de total impunidade. Os polícias queixam-se que estão de mãos atadas, que não têm meios, que só dispõem de um carro patrulha para esta zona. Fazem relatórios, enviam-nos para as chefias, mas dizem que estas não fazem nada. A mim, disseram-me que, se calhar, o melhor seria as pessoas começarem a formar milícias”, afirmou, causando um evidente embaraço junto da comitiva do CDS-PP. “Isso não é aceitável num estado de direito. Não concordamos com isso”, prontificaram-se a dizer tanto Assunções Cristas como o deputado Telmo Correia, que acompanhou a visita. O gerente da garrafeira, que assegurou ter sido recentemente espancado um morador da zona “à porta de casa”, criticou ainda o que considera ser a falta de fiscalização do ruído, do lixo e do trânsito. “Vai haver consequências disto. As pessoas estão cansadas”, avisou.

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A insalubridade tem sido uma constante da zona, a par da insegurança

A alegada falta de resposta das autoridades policiais às solicitações, de residentes e empresários da zona, para lidar com a insegurança é assunto já antigo. Tem sido amplamente debatido em reuniões públicas da Junta de Freguesia da Misericórdia e da Câmara Municipal de Lisboa. O que tem levado a que haja quem sugira a criação de milícias populares para pôr cobro ao problema. “Alguns moradores falam disso, têm-se ouvido sugestões dessas, embora não haja nada em termos formais. Os mais velhos, muitos dos quais são meus clientes, sentem-se ameaçados e inseguros. Há situações em que as pessoas vêm à janela pedir para baixarem o volume da música e têm como resposta ‘Qualquer dia matamo-vos todos!’”, relata a O Corvo um dos gerentes do café-pastelaria Orion, Sérgio Sambento. O estabelecimento comercial fica na esquina poente do cruzamento entre a Calçada do Combro e a Rua Marechal Saldanha, aquela que liga ao Miradouro de Santa Catarina e onde os traficantes se fazem sentir de forma visível. Tanto que, é sabido, se revela altamente improvável alguém atravessar a centena de metros daquele arruamento sem ser abordado por um vendedor pelo menos uma vez.


 

Dentro do café, Sérgio assiste às movimentações dos dealers e até os conhece a quase todos. Não é de admirar, pois aquela é a porta de entrada no que muita gente vê como um dos maiores supermercados de drogas do coração da capital e tem sempre, pelo menos, um “porteiro” encostado em cada uma das esquinas. “Nos últimos três anos, sobretudo, tráfico de droga tornou-se aqui uma coisa normal, banalizou-se totalmente a venda e o consumo de drogas aqui nesta rua. Neste momento, segundo as minhas contas, já devem ser, sem exagero, mais de uma centena pessoas as que aqui traficam, divididos em diferentes grupos que competem entre si. Estamos a falar de um negócio organizado e que rende muito dinheiro”, afirma o empresário, que se confessa desgastado psicologicamente por ter de lidar quotidianamente com os problema decorrentes de tal cenário. Até porque, não poucas vezes, as consequências lhe entram porta adentro. “Já tive várias discussões com os traficantes, por estarem a fumar droga à porta e o cheiro vir cá para dentro. Os clientes estranham e perguntam”, relata.

 

Apesar do cansaço, Sérgio não se tem furtado em confrontar os indivíduos que por ali orbitam, até porque, nota, muitos atrapalham a passagem dos clientes para a pastelaria. “Chamo-lhes à atenção, várias vezes. Mas ainda gozam comigo. Chego a fazer mais de cinquenta chamadas para a polícia, por mês. Eles já não vêm, não respondem. Mas vou continuar a fazê-lo de cada vez que fumarem droga à minha porta, porque isto não pode ser encarado como uma situação normal. Estão a degradar a imagem de uma zona central de Lisboa e com isso estamos a perder dinheiro”, afirma a O Corvo o empresário, sem deixar fazer reparos à actuação da Junta da Misericórdia, sobretudo ao nível da limpeza. Isto apesar de reconhecer a “pressão” a que está sujeita a presidente da autarquia, Carla Madeira (PS). “A junta deveria ser mais enérgica. Se tem conhecimento dos problemas, há tanto tempo, porque não faz nada para os resolver?”, questiona.

 

 

Problemas dos quais já teve tempo de se aperceber Carlos Branco, que há cerca de um mês abriu uma gelataria, na esquina em frente. “Isto é incomodativo, não apenas para os lojistas, mas também para os turistas e as outras pessoas que frequentam esta área. Estes indivíduos passam a vida a incomodar as pessoas. Isto dá uma imagem péssima da cidade”, considera o comerciante, confessando que, por ter aberto portas há muito pouco tempo, ainda não se apercebeu da magnitude da influência do problema na sua facturação. Mas admite preocupação com o que tem à porta. “Isto tem que ter um fim. E para isso, terá de haver vontade política”, afirma. Até porque há um crescente sentimento de cansaço daquela comunidade situado no coração da capital. “Não temos qualidade de vida. Mal saímos à rua, começam logo a oferecer-nos droga. Massacram as pessoas”, queixava-se Ana Martins, dona da histórica Tabacaria Martins, situada no Largo do Calhariz, e residente na Bica.

 

Ouvindo as queixas, Assunção Cristas considerou que aquelas eram provas suficientes de se estar perante “um clima de medo e insegurança, com um mercado de venda droga a céu aberto”. Referindo o constante assédio a que são sujeitos os que frequentam a área, a vereadora disse que “os moradores se sentem absolutamente inseguros”. O que, avalia, “tem que ver com a degradação da nossa cidade” e, sobretudo, com a falta de meios da polícia, sejam humanos como materiais. A líder do CDS-PP destacou o facto de, neste momento, a esquadra do Bairro Alto da PSP dispor apenas de uma viatura operacional e ter visto o seu efectivo “reduzido de 100 elementos para 30” – dinâmica que incluiu num quadro mais lato, da Área Metropolitana de Lisboa, na qual a corporação policial terá um défice de 1.100 elementos. “É impossível viver nesta zona da cidade e andar aqui com tranquilidade. Isso não é admissível”, considerou, antes de pedir um reforço dos meios ao dispor da polícia e a entrada em vigor de um sistema de videovigilância naquela área da cidade.

 

Cristas, que fazia as declarações aos jornalistas, junto ao vedado Miradouro de Santa Catarina – ante o olhar expectante, a pouco mais de dez metros, de uma série de indivíduos, alguns dos quais fumavam erva – criticou ainda o que considera o alheamento de Fernando Medina (PS) para com o cenário que acabara de expor. “O presidente da câmara diz que estas questões de segurança são matéria nacional e não local e olha para o lado”, afirmou, pedindo uma maior articulação da autarquia com a PSP. Questionada por O Corvo sobre a aparente impunidade dos vendedores de pretensa droga, que há anos importunam os transeuntes no centro da cidade, Cristas disse perceber que a Polícia Municipal nada possa fazer nessa matéria. Mas confessou não encontrar outras razões, para além da “clara falta de recursos”, para a inacção da PSP nesta matéria.

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