Estação de Santa Apolónia foi inaugurada há 151 anos na “Praia dos Algarves”

REPORTAGEM
Isabel Braga

Texto

MOBILIDADE

São Vicente

29 Abril, 2016


A estação de comboios de Santa Apolónia completa 151 anos de existência a 1 de Maio. Lambido pelas águas do Tejo no ano longínquo da sua construção, em 1865, o edifício situa-se na antiga Praia dos Algarves ou Cais dos Soldados, no lugar de um velho convento dedicado à santa que curava as dores de dentes. O Corvo recorda aqui o século e meio de história desta infra-estrutura emblemática, cuja transformação num hotel ou num jardim chegou a ser sugerida pelo presente executivo camarário.

A estação de Santa Apolónia foi inaugurada a 1 de Maio de 1865, sem direito a grandes festejos. Faz domingo, portanto, 151 anos. Reza a história que a abertura ao público da primeira estação de caminhos-de-ferro do país, então chamada Estação Principal dos Caminhos de Ferro do Norte e do Leste, deixou a cidade de Lisboa indiferente: a família real não se deslocou ao local, o Parlamento não interrompeu os seus trabalhos e nem sequer foram lançados foguetes ou salvas de artilharia.

Quanto ao povo, segundo o “Diário de Notícias”, estaria concentrado na Praça Popular do Salitre, junto à Avenida da Liberdade, onde podia disfrutar de teatro de variedades, circo, comida e bebida.

Na época, a Estação de Santa Apolónia ficava bastante afastada do centro da cidade. Não existia o aterro que hoje separa o edifício do Tejo, cuja água, na maré cheia, lambia as suas paredes, erguidas num lugar antes chamado Praia dos Algarves ou Cais dos Soldados – onde, em tempos, existira o Convento de Santa Apolónia, dedicado à santa padroeira das dores de dentes, daí o nome dado à estação.

A primeira proposta para uma estação em Lisboa foi apresentada pelo engenheiro inglês Thomas Rumball, que a colocou na zona do Intendente. A proposta não foi aceite, tendo a opção recaído no Cais dos Soldados, privilegiando-se a ligação ferroviária ao rio Tejo e ao futuro porto de Lisboa.

O afastamento de Santa Apolónia relativamente ao centro da cidade levou, em 1890, à construção da estação do Rossio, que, até 1955, foi o principal cais lisboeta de chegadas e partida dos passageiros do caminho-de-ferro.

Estação de Santa Apolónia foi inaugurada há 151 anos na “Praia dos Algarves”

Mas, regressando a 1865 e à inauguração da estação de Santa Apolónia: logo nesse ano, o caminho-de-ferro estendeu-se centenas de quilómetros para norte, sul e sudeste, chegando a Vila Nova de Gaia, a Vendas Novas e Badajoz. Passos de gigante relativamente ao ano de 1856, aquele em que o primeiro comboio circulou entre Lisboa e a vila do Carregado, partindo de um edifício provisório, muito próximo do local onde veio a ser erguida a estação de Santa Apolónia.

Acontecimento que, esse sim, teve honras de festas nacionais, com direito à presença da corte. Mas que não deixou boas memórias, graças a um incidente infeliz: uma das locomotivas avariou e só parte das carruagens conseguiu chegar a Lisboa, deixando nobreza e corpo diplomático a “secar” durante três horas em Sacavém, enquanto outra locomotiva não aparecia para os transportar de regresso à capital.

Quando a estação do Rossio é inaugurada, em 1890, Santa Apolónia passa a concentrar o transporte de mercadorias, só vindo a recuperar o seu papel de principal estação de passageiros quando, em 1955, o Rossio encerra para electrificação. E enquanto esta estação – servida apenas por duas linhas – sofre a pressão das populações suburbanas, ficando praticamente reservada ao seu transporte, o longo curso concentra-se em Santa Apolónia.

A autoria do projeto original da Estação do Caes dos Soldados, como então se lhe chamou, é do Engenheiro Angel Arribas Ugarte, Engenheiro Diretor João Evangelista Abreu e Engenheiro Chefe Lecrenier. A construção coube à empresa do engenheiro francês C.A. Oppermann, diretor da publicação de engenharia “Nouvelles Annales de la Construction”, e foi dirigida pelo engenheiro Agnés, tendo as diferentes partes que compõem o edifício sido subcontratadas a diversos construtores. Custou, na altura, 255.164$000 réis, o equivalente a pouco mais de 255 escudos (1,27 euros).

O “Archivo Pittoresco Semanario Illustrado” descreve o edifício – encomendado pela Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses e construído em apenas três anos -, como tendo “cocheira para 22 carruagens”, salas de espera de 1.ª, 2.ª e 3.ª classes, e salas do chefe de estação, “dos botequins e casa de pasto”, além de ser iluminado por 143 candeeiros a gás. Havia uma sala de telégrafo, uma alfândega – uma vez que a estação era ponto de chegadas e partidas internacionais – e a casa do chefe da estação.

No século XX, foi acrescentado um andar superior e, simultaneamente, construída a Avenida Infante Dom Henrique. Foram criados parques de estacionamento para automóveis particulares, táxis e paragens de eléctricos. Os cais de embarque foram prolongados e alargados, a gare foi toda iluminada e o edifício equipado com o serviço de bar, salas de espera, depósitos de volumes, vendas de jornais e um sistema de informação ao público.

Estação de Santa Apolónia foi inaugurada há 151 anos na “Praia dos Algarves”

A partir de 1998, Santa Apolónia sofre com a concorrência da nova Estação do Oriente, construída por ocasião da Expo’98. A inauguração da estação de metro que a liga ao centro da cidade, alguns anos depois, trouxe novo afluxo de passageiros que, a seguir, com a crise económica e consequente aumento do desemprego, diminuíram outra vez. Em 2013, o fluxo médio mensal de passageiros em Santa Apolónia era de 236.449, enquanto, em 2007, recebia, em média, 374.873 passageiros por mês, afirma José Santos Lopes, da Infraestruturas de Portugal Património.

Actualmente, Santa Apolónia vê partir e chegar 150 comboios da CP (Alfa Pendular, Intercidades, Interregional, regional e urbano) por dia. A estação é também o ponto de partida e chegada dos comboios internacionais: o Sud-Expresso, que vem de Paris com ligação através do TGV, e o Lusitânia Comboio Hotel, que liga Lisboa a Madrid.

Muitos acontecimentos históricos tiveram a estação de Santa Apolónia como cenário. Foi ali que, em 1886, chegou a princesa Maria Amélia de Orleães para casar com Dom Carlos; que Humberto Delgado, em 1956, partiu para o Porto, numa viagem atribulada que acabou em triunfo; e que Mário Soares chegou, em 1974, vindo do exílio, acontecimento que atraiu a Santa Apolónia a maior enchente de que há memória. Pelos seus cais de embarque passou ainda a vaga de emigrantes que, nos anos 60, abandonou Portugal em busca de melhor sorte na Europa.

Uma estação ferroviária de uma grande cidade, lugar de partidas e chegadas, de reencontros e separações, romântico por excelência, incendeia a imaginação dos escritores. Tolstoi situa em cais ferroviários algumas cenas-chave da sua “Anna Karenina” e Italo Calvino inspirou-se no ambiente peculiar de uma gare do caminho-de-ferro para escrever “Se numa noite de inverno um viajante”. Santa Apolónia também está presente na literatura portuguesa, tendo servido como cenário melancólico da despedida de Lisboa de uma Maria Eduarda desgostosa, depois de abandonada por Carlos da Maia, nas páginas finais de “Os Maias”.

Converter a estação de Santa Apolónia num jardim ou num espaço hoteleiro são ideias já equacionadas pela Câmara Municipal de Lisboa. Mas, até agora, não passam disso mesmo, de ideias, é a convicção dos responsáveis da Infraestruturas de Portugal (IP), que gere os edifícios ferroviários do país, com quem o Corvo contactou. Até lá, a velha estação continuará a ver chegar e partir comboios, como faz há 151 anos.

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