Alcântara já tem carreira de bairro e chega a sítios onde não passavam transportes públicos há mais de 50 anos
A 73B, a nova carreira da freguesia de Alcântara, só começou a andar no início da semana passada (25 de Fevereiro), mas rapidamente transformou-se num local de encontro dos moradores do bairro. Muitos só a apanham, admitem, para passar o tempo e fazer amigos. “Nunca saio de casa, já não tenho alegria nenhuma. Se não fossem estes transportes, ainda saía menos”, diz uma habitante. Um discurso repetido por vários utentes, a maioria idosos. Mas o novo transporte não é só utilizado por reformados, garante o motorista. Logo de manhã, uma mulher na casa dos 40 anos, que vive na Quinta do Jacinto, apanhou a carreira até ao hospital, onde trabalha. No bairro social, não passava um transporte público desde que a Ponte 25 de Abril começou a ser construída, há mais de cinquenta anos. E há ruas onde tal oferta só agora surge. Para o presidente da Junta de Freguesia de Alcântara é “uma questão de tempo”, até as pessoas alterarem rotinas e passarem a utilizar de forma generalizada a nova carreira.
Na Quinta do Jacinto, em Alcântara, a nova carreira de bairro 73B circula apenas com uma pessoa. Esta parte da freguesia não via transportes públicos há mais de cinco décadas. E muitos habitantes ainda não estão familiarizados com o autocarro, que iniciou os primeiros percursos na passada segunda-feira (25 de Fevereiro). Alda Carmo, 77 anos, entrou na carreira na Calçada da Boa Hora, perto da Ajuda, que também recebeu uma carreira de bairro no início deste ano. “Já conheço carreiras de bairro, e não estranho o transporte. Vim dar um passeio. O que mais gosto nestes autocarros, além de conhecer pessoas, é que aproveito para ir a sítios novos. Moro na Ajuda há mais de 50 anos, mas nunca tinha vindo para aqui”, diz, apontando para o bairro social, localizado entre a Calçada da Tapada e o Estádio da Tapadinha.
Enquanto Alda vai tirando apontamentos, num bloco de notas, dos horários da carreira e dos lugares por onde passa, a 73B segue o seu trajecto perante os olhares curiosos dos moradores. Vários pedem ao motorista que pare só para esclarecerem dúvidas sobre o novo transporte. Outros entram para passar o tempo. “Quero ver onde isto vai dar”, diz Manuela Borralho, 74 anos, num tom aventureiro. Mora na Travessa do Giestal, onde, em 55 anos, “nunca passou nenhum transporte”. “Quero ver se me dá jeito para alguma coisa”, sussurra, enquanto o motorista fala com outra habitante, através da janela do autocarro. Luís Santos conversa com Piedade Gomes, 75 anos, que hesita em entrar. Já tem dificuldade em andar e receia que, à vinda, o autocarro pare mais longe. Mas acaba por aceder.
A carreira 73B às voltas pelos cantos e recantos da freguesia de Alcântara
“Nunca saio de casa, já não tenho alegria nenhuma. Se não fossem estes transportes, ainda saía menos”, admite. No Verão, planeia, “venho dar mais umas voltas, para não estar em casa”. “E vou trazer amigas”, garante. Sentada à frente, Alda Carmo, mete conversa. “Eu também. Tenho duas amigas muito curiosas e, em vez de estarem em casa, pelo menos saem”, adianta. As conversas no mini-autocarro surgem espontaneamente e, passado pouco mais de meia hora, parece que as utentes do transporte já se conhecem há anos. Falam de tempos que ficaram presos a uma Lisboa que não volta, descobrem pessoas em comum, e conversam sobre o dia-a-dia, sempre igual para muitos.
Na Travessa do Giestal, e na paragem anterior, no Rio Seco, o trajecto é feito com mais cautela. “Há sempre muitos carros e é mais difícil passar, tem de se entrar com cuidado. A parte boa é que quem anda neste género de transporte, normalmente, não está com pressa, e as viagens são muito agradáveis”, explica o motorista ao serviço. Nestes momentos de abrandamento, muitos observam com expectativa o autocarro. “Olhem só como se põe a olhar, mais um senhor de boca aberta”, comentam, entre risos, as ocupantes. Na zona mais central da freguesia de Alcântara, da Rua de Camões ao Hospital Egas Moniz, as utentes da 73B vão antecipando novas viagens. “Talvez passe a vir aqui ao banco, porque na Boa Hora fechou”, diz Piedade Gomes. “E o mercado Rosa Agulhas devia chamar-se Margarida, o nome da minha avó. Era a peixeira mais velha”, conta ainda, arranjando mais um pretexto para uma conversa que se estende pelo mesmo tempo que a carreira percorre o bairro.
A 73B fica mais composta ao chegar ao Calvário, onde entra mais gente. “Já é a terceira vez que ando, viajo desde o primeiro dia. Fazia muita falta. Antes, apanhava um táxi ou ia a pé. Agora, já não preciso, pára mesmo à minha porta”, diz Maria Simões, 63 anos, com sacos de compras. Ao lado, Maria Matos, 70 anos, corrobora a opinião. “Nem que ficasse uma hora à espera, hoje tinha de experimentar. Precisávamos disto há anos”, desabafa. Atrás vem Carlos Baptista, 74 anos, morador na Quinta do Jacinto há mais de quatro décadas. “Vou até ao posto médico. Antes, ia a pé até ao Calvário, agora pára à porta de minha casa”, conta. E Ausenda Mendes, 68 anos, passará também a ir ao centro de saúde, na Calçada da Tapada, e ao Hospital Egas Moniz. “É muito bom para nós, que temos dificuldade em andar”, diz.
Madalena Pereira, 64 anos, entra na carreira quando esta já está praticamente cheia. “Estou a ver que isto é uma reunião do bairro”, comenta, entre risos. Ao final da manhã, já se conhecem e alguns combinam encontrar-se no dia seguinte. “Isto acaba por ter uma componente social, há pessoas que só encontram companhia aqui”, acrescenta. Mora na Travessa do Giestal e apelida o novo autocarro de “miraculoso”. “Isto foi o melhor que me podia ter acontecido. Tenho problemas de mobilidade e asma, e não consigo andar muito. Antes, tinha de ir a pé para a Junqueira, agora não. Além disso, já descobri uma loja onde fazem bainhas de calças e um electricista, que não tinha”, conta.
À saída, muitos já se despedem com dois beijos, dirigem um “adeus vizinho” ao motorista e partilham-se sugestões. “Devia passar na Calçada de Santo Amaro, muita gente tem dificuldade em subi-la. Também podemos fazer queixas, não podemos?”, pergunta Manuela Borralho ao motorista. Luís Santos, que transportou quinze pessoas numa manhã, regista o reparo e diz que poderão haver carreiras com mais regularidade. “Se houver mais adesão, talvez se justifique haver mais autocarros. É preciso ouvir as pessoas também, e perceber o que precisam”, sublinha. Nesta fase inicial, continua, “transportei maioritariamente idosos e reformados”. “Acredito que, com o tempo, poderá mudar. Logo de manhã, uma senhora na casa dos 40 anos, que vive na Quinta do Jacinto, apanhou a carreira até ao hospital, onde trabalha. Antes, tinha de ir apanhar ao Calvário e dar uma grande volta”, conta.
Nos primeiros dias, a carreira ainda circulava vazia. E há vários motivos. “É sempre assim, os moradores ainda desconhecem. E também há muitas pessoas acamadas no bairro”, diz Maria Coelho, 77 anos. Residente em Alcântara, há quase meio século, desloca-se com alguma dificuldade, acrescida pelo peso de dois sacos. “Moro muito perto do supermercado, onde vou mais vezes. Saio pouco de casa. Mas, quando tiver de ir ao hospital, passarei a apanhar a 73B, em vez de ir a pé até ao Calvário. Vai ajudar muitas pessoas idosas certamente”, acredita.
Mais expedita, do outro lado da Rua dos Lusíadas, Filomena Duarte, 76 anos, já experimentou o novo transporte. Apanhou-o na Travessa dos Fornos. Para se deslocar até ao Largo do Calvário, no coração de Alcântara, a moradora tinha de ir a pé até ao Jardim do Alto de Santo Amaro apanhar a carreira 738. Agora, dá meia dúzia de passos. “Pára mesmo à porta de minha casa, era impossível não reparar. Estes mini-autocarros são mesmo muito importantes. De outra forma, há trajectos que faríamos a pé”, explica.
A tipologia do autocarro também é motivo de elogio por vários. “Como são mais baixinhos, os idosos têm menos dificuldade em entrar. Acho uma excelente ideia, numa freguesia onde há muitos idosos e que acabam por não sair de casa por não terem forma de o fazer”, comenta Francisco Rebelo, 72 anos. Há quem considere, porém, que os mais velhos não devem combater a solidão desta forma. “Se o autocarro der dez voltas por dia, só com duas idosas na conversa, não é de estranhar. Acho que não é essencial, foi dinheiro mal gasto”, considera Franquelim Correia, 73 anos. Uma opinião partilhada por poucos. “Se esta for a forma de os idosos estarem mais acompanhados, qual é o problema? A solidão é um problema enorme”, considera Manuel Pereira, 53 anos.
O 73B Alcântara funciona diariamente, entre as 7h00 e as 22h00, com um intervalo de 43 minutos. Parte do Centro de Congressos de Lisboa, na Rua da Junqueira, e segue para o Hospital Egas Moniz, Rua Pinto Ferreira, Travessa Artur Lamas, Rua Giestal, Rua D. João Castro, Travessa dos Fornos/Rua do Cruzeiro, Rua João Barros, Rua Luís de Camões, Rua Lusíadas, Calvário, Alcântara- Avenida de Ceuta e Quinta do Jacinto. Passa ainda, entre outros arruamentos, pela Rua do Alvito, Alto de Santo Amaro e Calçada da Boa Hora. Quem não tiver título de transporte da Carris, válido para este percurso, terá de adquirir o passe Carreiras de Bairro, com o valor de dez euros para 30 dias.
A 73B é a oitava Carreira de Bairro de um total de 21 novas linhas de autocarros prometidas pelo presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, em Novembro de 2016. As primeiras duas começaram a circular, em Julho de 2017, em Marvila. Agora, há mais cinco autocarros nos Olivais, Ajuda, Belém, Santa Clara e Parque das Nações. As Carreiras de Bairro pretendem reforçar a mobilidade local, aproximando os moradores de equipamentos importantes na vida dos bairros, como escolas, centros de saúde, mercados e outros meios de transporte público.
O presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, Davide Amado (PS), salienta o facto desta carreira ligar diversos bairros, “permitindo deslocações a qualquer parte da freguesia”, onde a população é maioritariamente idosa. Além disso, explica, “há zonas onde não havia autocarros”. “Quando se começou a construir a Ponte 25 de Abril, a freguesia foi cortada ao meio e a população da Quinta de São Jacinto ficou mais isolada. Esta foi uma forma de saírem de lá, até porque já não passava um transporte público naquela zona há mais de cinquenta anos. Na Travessa do Giestal nunca tinha passado uma carreira. É uma grande conquista na área da mobilidade”, considera. O autarca acredita que as carreiras de bairro poderão crescer, e que a adesão “é uma questão de tempo”. “As pessoas estão habituadas a determinadas rotinas e mudá-las demora algum tempo. Eu moro na Travessa do Giestal e vou deixar de andar de carro”, confessa.
Davide Amado diz ainda que a carreira 73B vem complementar o Azulinho, uma carrinha da freguesia, que percorre diariamente os bairros do Alvito, Alvito Velho, Cascalheira e Quinta do Jacinto. Tem capacidade para 14 pessoas e é gratuito. Ao contrário do novo autocarro da Carris, o Azulinho não funciona ao fim-de-semana e, durante a semana, funciona entre as 8h00 e as 18h00. “A 73B tem uma frequência muito maior e termina mais tarde. Não valia a pena ir ao Bairro do Alvito, senão demoraria muito mais tempo”, explica.
A Carris quer criar “uma rede global de Carreiras de Bairro”, que cubra todas as freguesia da cidade de Lisboa, e, promete, “essa implementação será possível à medida que vão chegando os novos autocarros”. O objectivo da criação de soluções de mobilidade de proximidade, “num modelo de maior personalização e sentido de pertença, é sempre alcançado com a implementação de cada Carreira de Bairro”, diz a empresa de transportes a O Corvo. As características específicas de cada freguesia levam a que “o ritmo de penetração do serviço e a respectiva dinâmica na procura aconteçam de forma diferente em cada uma das carreiras já implementadas”. Segundo a Carris, “a tipologia de clientes que utiliza estas carreiras revela que, apesar de as carreiras denotarem apetência acrescida por parte de crianças e terceira idade, relativamente à representatividade que têm na restante rede base da Carris, as Carreiras de Bairro também estão a demonstrar ser muito atractivas para os restantes grupos populacionais, o que vem realçar o seu papel complementar na mobilidade global na cidade”.