Assembleia Municipal pede celebração do Santo António aberta a “outras religiões”

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Samuel Alemão

Texto

Líbia Florentino

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CULTURA

VIDA NA CIDADE

Cidade de Lisboa

São Vicente

29 Junho, 2017

A Assembleia Municipal de Lisboa (AML) aprovou, esta semana, uma recomendação em que pede à Câmara Municipal de Lisboa (CML) que, a partir de 2018, passe a organizar os festejos da cidade baseados numa “sã convivência e no reconhecimento da diferença” e, a propósito dos Casamentos de Santo António, “promova uma maior pluralidade cultural e religiosa, que espelhe as diferenças de quem vive em Lisboa”. Ou seja, que a religião católica deixe de ser o referencial da celebração popular. Os apelos à autarquia, nascidos de uma iniciativa do Bloco de Esquerda (BE), motivaram forte debate na assembleia e uma clara divisão dos deputados municipais no momento da votação. Tanto que foi chumbado o ponto da recomendação em que se pedia o fim da imposição de música e de outras formas de celebração conotados com “qualquer sentido de nacionalismo ou religiosidade” da celebração.

Uma pretensão dos bloquistas que vem dar seguimento à polémica surgida a propósito da imposição, pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, de emissão exclusiva de música portuguesa nos festejos populares deste ano em Alfama. O sistema de som único controlado pela autarquia motivou então protestos do BE. E voltou a pôr em confronto, na sessão desta terça-feira (27 de junho) da assembleia municipal, as posições dissonantes nesta matéria do presidente da junta, Miguel Coelho(PS), e dos bloquistas. “Não devemos nunca rejeitar aquilo que é parte da nossa cultura. Não podemos, para querer parecer modernos, diminuir aquilo que é nosso e dizer que o que é bom é o que vem lá de fora. Também estou farto de ouvir música pimba dos outros”, afirmou o autarca, negando qualquer pulsão censório. O menu estrito de música de produção nacional foi um pedido da comissão de festas do arraial de Alfama, afiançou.




 

Mas se nessa questão Miguel Coelho até teve a maioria dos deputados municipais do seu lado – uma vez que foi chumbado o derradeiro ponto da recomendação, que recomendava à CML a tomada de “medidas no sentido de que não sejam feitas restrições nas comemorações populares ao uso de músicas ou de formas de celebração em nome de uma genuinidade ou qualquer sentido de nacionalismo ou religiosidade das mesmas” – o mesmo não aconteceu nos outros dois pontos. Nesses, prevaleceu a crença do Bloco de que a influência da Igreja Católica Apostólica Romana “não pode, nem deve ser equivalente a hegemonia ou silenciamento de diferentes crenças religiosas e filosóficas, considerando o carácter laico e não confessional do Estado”. Uma convicção expressa nos considerandos do documento.

 

E se dúvida houvessem sobre as intenções da proposta, elas são dissipadas por uma explicação, logo de seguida: “Apesar deste cunho originariamente religioso, as comemorações populares são hoje (e de resto há já muitos anos) de âmbito essencialmente profano, facto aliás evidenciado pela diferença de afluência entre as comemorações religiosas – cuja dignidade e importância para os crentes merecem a maior consideração – e a afluência às comemorações populares”.

 

Os bloquistas fazem notar que “Lisboa sempre foi uma Cidade multicultural, apesar de páginas negras de intolerância vividas no passado”, pelo que “importa sublinhar a diversidade, multiculturalidade e cosmopolitismo da cidade nas suas Festas”. Algo que, entendem, se deve manifestar não apenas pela diversidade de escolhas na playlist dos arraiais dos santos populares, como também na celebração dos Casamentos de Santo António – os quais, dizem, têm sido apenas de cariz católico e civil, “excluindo diversas outras religiões praticadas na cidade”.

 

A recomendação do BE foi alvo de um forte ataque por parte do CDS-PP. “Os santos populares e os Casamentos de Santo António, quer se queira ou não, são tradições de origem cristã, que estão enraizadas na cultura alfacinha. A sua origem não é outra senão a matriz cristã da nossa sociedade. Por isso, a tentativa de laicizar ou transformar noutros carnavais esta forte tradição popular será sempre um atentado à nossa cultura e um apagar artificial do que de mais genuíno se festeja em Lisboa”, disse o deputado municipal centrista Gabriel Fernandes. Para o eleito do CDS, a recomendação do Bloco “é, no mínimo, estranha”, porque, alega, nunca lhe terá chegado aos ouvidos qualquer queixa sobre o modelo em vigor.

 

“A diversidade social de Lisboa manifesta-se em todos os domínios, sem que haja perturbação da ordem social, nem conflitos. A sã e fraterna convivência é uma realidade e ainda bem que assim é”, considerou Gabriel Fernandes. Por isso, o seu partido rejeitou todos os pontos da recomendação em apreciação. Uma interpretação da realidade e um sentido de voto contestados, momentos depois, pela deputada municipal bloquista Isabel Pires, que se disse empenhada em que, em 2018, “possa ser promovida a diversidade cultural nos Casamentos de Santo António”. Comentando a posição assumida pelo CDS-PP neste debate, Isabel Pires afirmou que por parte daquele partido “não existe o respeito necessário por outras culturas”.

 

O ponto da recomendação em que se apela à CML que tome medidas para promover uma maior pluralidade cultural e religiosa nos Casamentos de Santo António – embora “não estorvando a celebração religiosa tradicional” – passou graças aos votos favoráveis de BE, PCP, PEV e alguns independentes, como a presidente da assembleia, Helena Roseta – que, todavia, se opôs ao fim das restrições ao “uso de músicas ou de formas de celebração” nas comemorações populares. Mas também contou com a ajuda das abstenções do PSD, do PS, do Parque das Nações Por Nós e de um independente. Contra as medidas de promoção de um maior ecletismo religioso e cultural nos Casamentos de Santo António votaram o CDS-PP, MPT, dois independentes e ainda o socialista Miguel Coelho.

  • Catarina de Macedo
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    É por estas e por outras que há tanta gente ainda relutante em aderir ao Bloco de Esquerda. Nunca percebi porquê é que ter orgulho no que é nosso, como todos os outros países e culturas (e minorias) o fazem, é mau. Não percebo que nojo é este que eles têm à cultura e tradições portuguesa, ao mesmo tempo que acham lindo ver outras culturas defenderem as suas próprias tradições.

    “não pode, nem deve ser equivalente a hegemonia ou silenciamento de diferentes crenças religiosas e filosóficas, considerando o carácter laico e não confessional do Estado”

    > Como lisboeta que participa frequentemente em eventos de outras culturas em Lisboa, suponho que os bloquistas defendam também que as festas da comunidade hindu, chinesa, brasileira, africana, muçulmana, etc. percam o seu carácter religioso e tradicional, que toquem fado e músicas em inglês, e que sejam proibidos de tocar apenas as músicas dos seus países e culturas, porque Lisboa é uma cidade multi-cultural. Ou afinal o multi-culturalismo só se aplica aos lisboetas portugueses? É que eu não professo as religiões deles, nem falo as línguas deles mas vou aos eventos, portanto de acordo com a lógica do Bloco de Esquerda, eu devia estar ofendida. Mas aposto que se exigisse a alguma destas comunidades que não mantivessem a sua tradição, religião e língua em função da diversidade existente, já estava a ser considerada racista. Ahh! Então afinal só posso retirar autenticidade à minha própria cultura! Tenham vergonha! É por ideologias pobres como essa que a extrema direita está a erguer-se a olhos vistos em todo o lado! Ou se vai a 8 ou a 80!

    Compreendam de uma vez por todas: o multi-culturalismo não é a mistura de culturas. É a coexistência delas num mesmo espaço, onde cada uma tem a sua vez para celebrar as suas tradições. Assim, que os hindus celebrem quando e como a sua tradição manda, os chineses o mesmo, os brasileiros do candomblé também, os africanos, os muçulmanos, e todos os outros e por sua vez os próprios portugueses, já que estamos em Portugal. Ninguém espera que eles deixem de celebrar a sua cultura, portanto parem de esperar que os portugueses cristãos deixem de celebrar a sua. Os Santos Populares é isso mesmo. Um conjunto de festas em homenagem aos santos mais venerados em Portugal, independentemente da sua origem. Se não toleram as festas cristãs, então simplesmente não compareçam para fazer parte delas. Todos os outros que mesmo não sendo cristãos participam nas festas dos santos populares, não se queixam, por isso não se queixem por eles.

    Aconselho o Bloco, com o qual eu costumava concordar em muita coisa mas por estas razões já deixei, que deixe para lá a ideologia radical. Numa Europa que avança para extremos, são esses discursos de ódio e desdém ao próprio país e cultura em detrimento de outros que alimenta a extrema-direita e empurra as pessoas na direcção da intolerância.
    As pessoas que querem manter a sua tradição e cultura do seu próprio país, estando nesse pleno direito, ao ouvirem coisas como “o multi-culturalismo implica que vocês percam a vossa autenticidade” leva a que em vez de continuarem a tolerar diferentes culturas, passem a vê-las como uma ameaça e a repudiá-las. Nem todos os que amam o seu país, têm o bom senso para perceber que o multi-culturalismo não deve ser uma ameaça, mas graças a estes discursos da esquerda, para eles passou a ser.

    Parabéns, sem vocês a extrema-direita nunca tinha conseguido chegar tão longe.

    • NM
      Responder

      Muito bem colocado. Identifico-me em boa parte com os argumentos invocados.

    • Miguel Keßler
      Responder

      Tem toda a razão! É a diarreia da demencialidade politicamente correcta! Ora então, um santantoninho aberto a outras religiões e mais não-sei.o-quê inclusivo, patati-patatá… De facto, já enjoa. Não sou católico-romano mas subscrevo inteiramente a afirmação de que “Os santos populares e os Casamentos de Santo António, quer se queira ou não, são tradições de origem cristã, que estão enraizadas na cultura alfacinha. A sua origem não é outra senão a matriz cristã da nossa sociedade. Por isso, a tentativa de laicizar ou transformar noutros carnavais esta forte tradição popular será sempre um atentado à nossa cultura e um apagar artificial do que de mais genuíno se festeja em Lisboa”.
      O BE acha que “importa sublinhar a diversidade, multiculturalidade e cosmopolitismo da cidade nas suas Festas”? E entendem que “se deve manifestar não apenas pela diversidade de escolhas na playlist dos arraiais dos santos populares, como também na celebração dos Casamentos de Santo António – os quais, dizem, têm sido apenas de cariz católico e civil, “excluindo diversas outras religiões praticadas na cidade”? BRAAAVO!!! Casamentos de Santo António islâmicos, por exemplo. Ou protestantes… Pergunto-me o que dirão a isso o s muçulmanos ou os protestantes pentecostais ou baptistas, por exemplo… Ou os adventistas e as Testemunhas de Jeová; ou os Judeus. Chegamos ao ponto, claro, do completo disparate e da contradição dos próprios termos da “recomendação”, ou lá o que é. E quanto a “casamentos de Santo António LGBT”, podem tirar o cavalinho da chuva: quando lá chegarmos, é o Santo António que sai de cena que, esse, tem “direitos de autor”, e o “Autor” já deixou claro que isso não acontecerá. Mas sabe?, a chatice é que, pelo seu discurso e a sua crítica especificamente anticapitalista e a sua apologia do Estado social, às vezes, às vezezinhas, até dava mesmo vontade de votar no Bloco, cuja entrada na Assembleia da República constituiu, na época, uma lufada de ar fresco pela imposição da elevação do nível intelectual do debate que, até então, era cada vez mais uma imensa chatice de becejo e mediocridade. Mas assim é que… NÃO!!!

    • Miguel Keßler
      Responder

      Perdão pela gralha: «era cada vez mais uma imensa chatice de bocejo e mediocridade». Enquanto escrevia, ocorria-me a lembrança do almirante Pinheiro de Azevedo, que chefiou o VI Governo Provisório em 1975-1976, quando, na varanda das Cortes, respondeu aos que lhe gritavam «Fascista! Fascista!»: «Vão bardamerda com o fascista!»

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