Moradores de Alfama, Mouraria e Castelo acham que restrições ao Alojamento Local já vêm tarde
“Como é que vão limitar o Alojamento Local (AL), se não há espaço para mais? Só neste quarteirão, é tudo AL. Essa medida não faz sentido, até é anedótica”, diz Meggi, comerciante num minimercado há dez anos, em Alfama, em frente ao miradouro de Santa Luzia. O lojista reage, assim, à intenção da Câmara Municipal de Lisboa (CML), conhecida esta semana, de não aceitar mais unidades de Alojamento Local em Alfama, na Mouraria e no Castelo, a partir do momento em que a nova lei do alojamento local entrar em vigor. Os bairros inserem-se na freguesia de Santa Maria Maior, aquela que perdeu mais moradores nos últimos cinco anos, muitos deles pressionados a sair das casas onde viveram toda a vida.
Pelas ruas e escadinhas de Alfama é difícil encontrar moradores, mas é muito fácil ver grupos de turistas a visitar o bairro. Nos cafés e restaurantes, com esplanadas cheias, não se consegue chegar à fala com os funcionários tal é a azáfama. Até chegar ao coração do bairro, é preciso passar por dezenas de tuk-tuks, que abrandam a marcha para mostrar o Largo das Portas do Sol ou o Miradouro de Santa Luzia aos estrangeiros. “É bonito, não é? Os portugueses são lindos”, diz o motorista de um tuk-tuk aos turistas que transporta, quando é interpelado por um taxista para avançar porque o trânsito está parado. Ouvem-se buzinadelas e misturam-se várias línguas, e as visitas guiadas prosseguem. É aqui, no centro histórico da cidade, onde se concentra a maioria dos alojamentos. A autarquia vai, por isso, passar a impor limites à abertura de novos apartamentos em prédios de habitação ou hostels. Uma “excelente ideia”, dizem os moradores destes bairros, mas que “já vem tarde”.
“Agora? Agora?”, repete incrédulo Paulo Sousa, 42 anos, um dos poucos comerciantes que resiste na Rua dos Cavaleiros, na Mouraria, onde já há pelo menos sete prédios transformados em Alojamento Local. E responde à própria pergunta: “Já é tarde para limitar o AL, já destruíram tudo. Há sete anos ainda não se falava de alojamento local, agora está presente na rua toda. As construções são fracas, querem construir rápido e não usam os melhores materiais. Se, um dia, há uma catástrofe natural, cai logo tudo. Quero ver quem vai votar nas eleições, já não há ninguém”, diz. A trabalhar neste arruamento há 24 anos, Paulo Sousa conta que nunca viu tantos turistas como agora. “De manhã à noite, só se vê malas para cima e para baixo, falam alto e, como as casas não têm muito isolamento, ouve-se tudo, já mete nojo isto. Se cobrasse um euro por cada fotografia que me pedem para tirar às máquinas de costura, ganhava 50 euros por dia”, diz, referindo-se à loja de máquinas de costura domésticas e industriais, a primeira loja do país neste ramo de actividade, onde chegam clientes de várias partes de Lisboa para reparar estes aparelhos.
Paulo Sousa acha que agora "já é tarde" para limitar o Alojamento Local
António Maio, 84 anos, trabalha há 71 anos numa ourivesaria, e há uma semana recebeu uma carta a informá-lo de que o seu contrato só vai ser renovado por mais cinco anos. “Há dois anos, o senhorio comprou o prédio e já disse que é para fazer um hostel, mas posso ficar mais cinco anos. O bairro perdeu muita população, só nesta rua há seis hostels e vão fazer mais. A medida é uma excelente ideia, mas já vem tarde”, diz. Maria Henriques, 76 anos, mora na Mouraria há 66 anos e também lamenta a perda dos moradores e da identidade do bairro. “Não sou nada apologista do AL, há tanta gente nossa que precisa de casa e alugam a estes estrangeiros, que fazem barulho com os saltos altos e os tróleis”, conta. “Não temos ninguém aqui, só chineses”, acrescenta a vizinha, que não quis ser identificada. Marta Braz, 30 anos, espera no passeio pela mãe, enquanto se desvia dos turistas que passam a ritmo acelerado com as malas. “O AL devia acabar. Há muitas pessoas a sair, a minha mãe ainda é uma privilegiada, mas também não sei por quanto tempo”, comenta.
Na Rua da Mouraria, Carlos Santos, comerciante numa das lojas da Casa Seta, de revenda de lençóis e toalhas, recebe a novidade com entusiasmo. “A nova lei poderá resolver muita coisa. Gastámos muito dinheiro a reabilitar apartamentos e agora levamos com isto. Há dezenas de pessoas na rua”, conta. Natália Encarnação, há dez anos a trabalhar como sapateira nesta artéria da cidade, diz que está cansada do ruído das obras. “Há muitos prédios a serem reabilitados, como se pode ver, e já se sabe que é para se construir hotéis. Há um edifício enorme onde já só há dois moradores. Qualquer dia, não temos clientes, porque não vivemos dos turistas. Sente-se muito a falta dos moradores”, lamenta, enquanto observa o avançar das empreitadas nos apartamentos vizinhos.
No bairro do Castelo, as queixas fazem-se num tom de voz mais alto. Há moradores que estão a ser despejados do prédio onde vivem, precisamente para ali ser construído alojamento local. E há quem não acredite na promessa da autarquia. “Acabaram com a cidade e agora vêm falar em medidas. Querem atirar-nos areia para os olhos. Estou cansado, só nos consultam quando precisam de nós”, critica, já sem esperança, Daniel Lopes, 71 anos, dono de um café em frente ao Castelo de São Jorge. “Há muitas pessoas a entrarem e a saírem, mas não sabemos quem são. Acho que não devia haver mais alojamento local, mas, por outro lado, aos preços que estão a alugar, também não conseguimos pagar. Há casas boas da Câmara de Lisboa vazias aqui no Castelo. Estão há espera de quê para as entregarem?”, questiona a mulher de Daniel Lopes, Ludovina Lopes, 70 anos. “Há muito alojamento local, mas nem o conseguimos contar, porque muito não está legalizado”, acrescenta Daniel.
Conceição Sousa, 40 anos, acabou de ser mãe e tem de sair do T0 onde vive, no Castelo, com o marido e a filha de dois meses. Já não é a primeira vez que passa por esta situação. Há pouco mais de um ano, teve de sair do prédio onde morava, pois ali nasceria o Museu Judaico, uma construção entretanto suspensa pelo tribunal. “Duvido que acabem com o Alojamento Local, agora que já construíram tudo. Mas, se o fizerem, tentem travar a construção do hostel prevista para o meu prédio”, apela, já sem esperança. “Durante muitas noites, não dormi com o barulho das obras e tive uma grande depressão pós-parto. A Câmara de Lisboa não me ajudou a encontrar casa e ando a ver o que há, mas aqui perto os preços são um absurdo”, diz enquanto balança a filha no colo. Conceição trabalha como ajudante de cozinha, a poucos metros do Castelo, e o marido trabalhava em Beja, como electromecânico, mas já voltou devido à situação de instabilidade psicológica que a família vive.
Quando Conceição e os restantes moradores do prédio receberam uma carta a informá-los de que o imóvel ia ser vendido, mas que poderiam comprá-lo por 500 mil euros, ainda pensou reunir-se com os vizinhos e tentar adquiri-lo. “Recebemos a carta e o prédio foi logo vendido em Dezembro. Até nos queríamos juntar e comprá-lo, mas só nos deram cinco dias para exercer o direito de preferência. Inicialmente, o senhorio disse-nos que o prédio só podia ser vendido às fracções, depois já podia ser todo vendido, sentimo-nos enganados”, diz. Os vizinhos com mais de 60 anos, explica, “em princípio não vão sair, por causa do congelamento dos despejos”, assim como a vizinha com um cancro, com 80% de incapacidade.
Albano Gomes, morador no Castelo desde 1976, também está em situação de despejo. “O meu prédio foi comprado por estrangeiros, não sei o que vão fazer. Esta situação é um desespero, só quero estar no meu sossego e tenho de levar com esta porcaria toda. Espero mesmo que melhore, mas eu já vou ter de sair”, diz cabisbaixo. Ludovina Lopes acredita que o bairro vai mesmo tornar-se num condomínio fechado. “Vai-se pagar para entrar, não deve faltar muito. A Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) já ocupa metade do bairro e a outra é ocupada pelos turistas, só falta fecharem”, prevê.
Cristina Botelho nasceu e viveu 24 anos na mesma casa que, no passado dia 17 de Julho, foi entregue a Maria Francisco, pela Câmara de Lisboa no âmbito do programa “Habitar o Centro Histórico”. Saiu quando casou, por opção, e voltou há um ano para trabalhar numa loja de roupa e acessórios, a Lx Trendy. “A nova legislação é boa, porque no Castelo já há mais AL do que moradores. Já não me revejo aqui. Todas as ruas têm alojamento ou hostels, os senhorios só vêem dinheiro à frente. Naquele prédio de azulejos, só há três moradores”, diz ainda apontando para o edifício em frente à sua loja.