Há vida no Lusitano Clube!

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

Hugo David

Fotografia

VIDA NA CIDADE

Santa Maria Maior

4 Maio, 2016


Uma colectividade fundada em 1905, no coração de Alfama, estava a morrer aos poucos. Depois de uma não muito conseguida primeira tentativa de um grupo de activistas urbanos para lhe conferir novo fôlego, os resultados só agora começam a aparecer. E isto devido à ajuda de um outro colectivo de jovens. Desde Setembro de 2015, o Lusitano Clube ganhou vida. Os dias de marasmo ficaram para trás. Agora, há concertos, aulas de dança, tertúlias, workshops, yoga, entre outras coisas. “Não vamos desistir do bairro, não vamos desistir da vizinhança”, avisam, em jeito de desafio à monocultura do turismo.

“Se não estiverem a sentir os líderes a guiar-vos, então não façam de conta que eles o estão a fazer! Não queremos aqui nada a fingir. Nem aqui, nem em nada na vida!”, atira, a rir e num inglês de inatacável sotaque norte-americano, Solange Santos, 36 anos, aos pares femininos das duplas que enchem o salão onde decorre a aula de lindy hop – dança nascida no contexto da efervescência jazzística da Nova Iorque das décadas de 1920 e 30.

A pasmaceira do início de noite de segunda-feira na Rua de São João da Praça, em Alfama, onde os turistas vão hesitando entre as propostas gastronómicas que lhes são feitas, porta sim porta não, é rasgada pela certeza das instruções de Solange e do colega Miguel Fonseca – ambos parte de um colectivo de professores desta dança que responde pelo nome Little Big Apple -, lançadas por entre a elegância swingada da música. Há vida no prédio com o número 81.

No rés-do-chão deste gracioso edifício, onde está sediado o Lusitano Clube, colectividade fundada a 1 de Dezembro de 1905, sente-se a energia das coisas novas. A vitalidade a crescer no corpo de uma instituição centenária. Até há pouco tempo, o clube lutava pela sobrevivência, pode mesmo dizer-se que estava quase moribundo. E agora, no entanto, ele move-se. E dança. Tanto que atrai gente de diferentes quadrantes a uma zona ameaçada pela cristalização numa imagem de bairro-museu “típico”, cuja função primeira é ser consumido por incessantes hordas turísticas.

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“Acho isto bem fixe. Não conheço muito bem Lisboa, mas, para mim, vir para aqui, para este bairro e para este clube, é como estar num ambiente alternativo”, diz ao Corvo Alice Torres, 18 anos, chegada da Costa da Caparica para ter esta aula juntamente com o irmão mais velho, Frederico Torres, de 27. Para ela, que goza o gap year – ano de intervalo antes da entrada no ensino superior -, estar ali naquele salão com cinco grandes ventoinhas pendentes do tecto de madeira é já uma experiência.

Como diz o irmão, que, como quase todos os 13 alunos que participam na aula, se integrou na comunidade lindy hoper através das redes sociais, entrar naquele espaço, franqueando as portas de um clube onde se respiram as camadas do tempo, não é algo a que se possa ficar indiferente. “Tem um toque mais pessoal”, afirma. “É quase como se estivéssemos num ambiente burlesco”, acrescenta Filipa Sebastião, uma bancária de 42 anos, quem vem da Parede (Cascais) para aprender a dança que a seduziu desde que assistiu a um workshop da mesma no Festival Andanças.

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Um sentimento partilhado também por Christian Printz, austríaco de 27 anos a cumprir uma temporada de trabalho voluntário na Casa Pia. “Estar aqui, neste bairro e neste ambiente em particular, confere um sentimento de autenticidade, de estar rodeado de história”, diz o natural de Viena. Algo com que concorda a polaca Maria Kolmer, 23, a tirar um mestrado em engenharia ambiental no Instituto Superior Técnico. “Típico” é o que lhe ocorre para qualificar o cenário onde, desde o início de Fevereiro, decorrem as lições dadas pela Little Big Apple. “Gosto do espírito”, acrescenta.

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E o espírito da casa é algo que tem vindo a mudar substancialmente nos últimos tempos. Sobretudo desde que a Associação Parafernália assumiu os destinos do Lusitano, no final do verão passado. Constituída em 2009 por um grupo de jovens activistas urbanos em início de vida profissional, a Parafernália tem na recuperação e revitalização de clubes e outras colectividades de Lisboa a sua principal razão de existir. “A verdadeira missão é recuperar as relações de proximidade e a vida de bairro”, diz João Campos, 37 anos, um dos dirigentes.

“Quando criámos a associação, pensámos ‘As pessoas estão a viver uma vida completamente descaracterizada, metem-se no carro e vão ao supermercado. Temos que fazer qualquer coisa para mudar isso’”, rememora, antes de notar que uma das coisas que, na altura, comentara com os amigos era o facto de “as colectividades estarem todas a morrer”. O Lisboa Clube Rio de Janeiro, no Bairro Alto, atravessava momentos difíceis e aquele grupo informal de agitadores citadinos sentiu o ímpeto de “demonstrar que estes espaços são úteis”. Nascia a Associação Parafernália, que logo em Novembro de 2009 realizou uma série de actividades para ajudar o clube. Depois disso, em Março do ano seguinte, já estava envolvida na dinamização do Sociedade Boa União, em Alfama.

Mas foi a animação do Largo de São Paulo, durante os santos populares, em Junho de 2011, que fortaleceu o espírito de grupo, conferindo-lhe a experiência de que carecia. O arraial dinamizado pela associação, a poucos meses de ser inaugurada a conversão da Rua Nova do Carvalho na Rua Côr-de-Rosa – que daria início à transformação do Cais do Sodré numa zona de movida nocturna -, veio provar a capacidade mobilizadora deste grupo. E, mais importante, que era possível insuflar vida nova em sítios marcados por um certo embotamento. “Já havia um movimento que era um misto de pessoas da velha guarda e de jovens”, lembra João Campos, para quem “as pessoas não estão habituadas a trabalhar juntas”.

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João Campos, Pedro Aboim e David Costa: ao leme dos novos rumos do Lusitano.

Depois de um período de dois a três anos que João e o amigo Pedro Aboim, 34, qualificam como de “hibernação”, no ano passado as coisas mudaram. “Decidimos que estava na hora de pegar nos clubes de bairro e dar-lhes vida”, diz João. “Conhecia esta zona, passava aqui à porta e vi isto fechado”, lembra, ao explicar o interesse pelo Lusitano Clube. “Quisemos logo saber o que se passava. E achámos que podia ser uma boa aposta. Pedimos então, através de terceiros, o contacto de uma pessoa da direcção. Reunimos com uma comissão administrativa e explicámos que gostaríamos de ajudar a dar um novo impulso ao clube”, lembra.

Na altura, a colectividade vivia entre os efeitos de uma letargia antiga e os esforços regenerativos de um grupo de jovens idealistas que ali chegou, em Dezembro de 2014, porque queria ver esta colectividade cheia de vida outra vez. Entre eles estava David Costa, 37 anos, o novo presidente do Lusitano Clube desde meados de Abril e que trabalha como director de um hotel junto ao Marquês de Pombal. “Esta geração tem gosto pelo trabalho social. Temos vontade de complementar a vida profissional com a vida social. Não somos indiferentes à vida de bairro”, diz, antes de qualificar a sua chegada e a dos restantes membros da nova equipa dirigente como algo que não podia ser desperdiçado. “Não é todos os dias que nos cai no colo uma oportunidade destas”, afirma.

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O Lusitano Clube, que surgiu com o hoje datado lema “estimular todas as iniciativas de manifesto interesse nacional que tendam a promover o desenvolvimento das virtudes morais da raça”, conciliava desde a primeira hora a diversão, o lazer e a ocupação dos tempos livres com a instrução e o conhecimento. Por isso, além das aulas de música, dança, ginástica e esgrima, possuía colecções científicas, organizava exposições de arte, publicava um jornal, organizava excursões no país e ao estrangeiro e mantinha uma biblioteca e um gabinete de leitura. Sempre ao serviço da comunidade.

O que está em jogo é, por isso, muito. “Quem vive em zonas como estas sente o bairro. Mas o clube foi perdendo força, talvez porque a fórmula era sempre a mesma. Temos que adaptar o clube aos tempos modernos. Queremos mostrar que há coisas antigas que se conseguem actualizar”, diz David Costa. Esses propósitos eram os mesmos que ele e os amigos traziam consigo quando entraram no Lusitano Clube no último mês de 2014. Mas as coisas estavam a demorar a arrancar, apesar das actividades desenvolvidas – das quais os concertos se assumiram logo como uma das mais importantes -, pelo que foi vista com bons olhos a ajuda trazida pela Parafernália, em Setembro de 2015.

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Nessa noite, tal como noutras, foi assumido o “risco” de pagamento de cachet aos artistas, o que acabou por se revelar acertado. “Não estávamos a ganhar dinheiro, mas conseguimos chamar cada vez mais pessoas. Amigo fala a amigo, a palavra foi passando. Depois, vieram as festas de aniversário. Por estes dias, o Lusitano é uma casa cheia de vida. Para além das aulas de lindy hop, há espaço para as aulas de yoga, muitos concertos (pop-rock, jazz e fado), a popular roda de choro, diversas reuniões de movimentos cívicos, ensaios de espectáculo, workshops variados, teatro amador, espectáculos de stand-up comedy ou feiras de artigos usados, entre de outras actividades, numa lista sempre crescente.

Em pouco tempo, os efeitos começaram a fazer-se sentir. O Lusitano “estava em vias de encerrar por falta de meios e pessoas, e após seis meses conseguimos garantir a sustentabilidade presente e futura desta instituição”, diz João Campos, denotando satisfação. Mas o início esteve longe de poder ser considerado fácil. “Entrámos aqui sem um plano. Setembro foi um mês muito difícil, não tínhamos dinheiro para pagar as despesas do clube e as pessoas não vinham cá. Então, decidimos fazer aqui uma festa de arromba para chamar a atenção”, recorda.

Esta variedade é uma clara mais-valia em relação aos tradicionais bilhar, snooker e matraquilhos, que se mantêm, como é evidente. Afinal, são parte da identidade do clube, tal como a sala de convívio onde as pessoas se encontram ao final do dia. “Os turistas gostam é disto, deste espírito. Muitos reparam que há aqui movimento, espreitam e entram, e depois ficam aqui várias horas, mesmo depois da porta fechar”, conta David Costa, para quem a expectativa “é a de fazer do Lusitano – clube com 410 associados, embora a maioria esteja longe de serem membros “activos” – uma entidade que consiga subsistir e tenha vida”. “É possível as colectividades históricas terem vida”, reitera.

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Ainda assim, João Campos admite que o clube está a subsistir, sobretudo, com as actividades que tem à noite. E com pessoas vindas de fora de Alfama. “O que pessoal que podemos considerar o típico morador do bairro, ainda não está a vir, ainda não está a aderir tanto quanto desejaríamos. 80% a 90% dos que aqui têm vindo não são de cá. Mas esperamos ir mudando isso”, afirma, antes de confessar: “Já me dava por contente se conseguisse mobilizar as pessoas durante o dia e que, durante a noite, isto seja um espaço cultural frequentado”.

Essa motivação está também no topo das preocupações de Solange Santos e Miguel Fonseca, os professores da aula de lindy hop a que O Corvo assistiu. O interesse dos membros do colectivo Little Big Apple vai mais além do dar aulas de dança. Há uma crença na revitalização do Lusitano e de bairros populares como Alfama. Tanto que eles até ajudaram nas obras do salão onde decorrem as aulas. “Uma das coisas que nos seduzem aqui é o facto de a porta estar sempre aberta e as pessoas poderem entrar”, afirma Miguel.

“Dá gosto vir para aqui e sentir isto como uma coisa nossa, estarmos aqui como se fosse a nossa casa. As pessoas do clube fazem coisas para quem cá está, quem vive no bairro e não para quem está apenas de passagem”, diz Solange Santos, referindo-se aos muitos turistas que vão enchendo as ruas do bairro.

A professora de dança e actriz manifesta-se preocupada com as consequências para a cidade de uma tão intensa imersão de Alfama, mas também de outros bairros, numa única actividade económica. E fala no “perigo da gentrificação”, aludindo ao processo através do qual os habitantes de um núcleo urbano são obrigados a abandoná-lo em virtude da sua hipervalorização imobiliária.

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No fundo, essa é a razão essencial que levou este conjunto de activistas urbanos a decidir tomar os destinos de um clube que estava moribundo. “Se isto, esta vida de bairro, desaparece, os muitos hotéis que estão a surgir um pouco por todo o lado vão ficar sem clientes, porque os turistas querem ver esta Lisboa autêntica, não normalizada”, explica David Costa, o novo presidente. “Não vamos desistir do bairro, não vamos desistir da vizinhança”, avisa.

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COMENTÁRIOS

Comentários
  • Rui Martins
    Responder

    porque a Cidadania Local é talvez a principal frente na recuperação deste país entorpecido e anómico:
    Muito Bem:… https://t.co/HwPIqLTRJO

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