Fidelidade começou a vender prédios e no Areeiro duas famílias já têm data para sair

REPORTAGEM
Sofia Cristino

Texto

VIDA NA CIDADE

Areeiro
Cidade de Lisboa

24 Setembro, 2018

Na Avenida João XXI, há pelo menos duas famílias em risco de abandonar a casa onde vivem há mais de uma década. Mas poderão vir a ser mais sete. O imóvel pertenceu à Fidelidade até ao passado mês de Agosto, quando a companhia de seguros o vendeu à sociedade Neptunecategory, representada pela imobiliária Square. Poucas semanas antes, os inquilinos já tinham sido notificados pela Fidelidade da não renovação de contrato, mas tiveram pouco tempo para negociar novas condições com a seguradora, uma vez que o prédio foi logo vendido. Uma das famílias terá de sair até Dezembro e critica a atitude do antigo senhorio. “Sou a terceira geração do prédio, já viveram cá os meus avós e os meus pais. A Fidelidade agiu muito mal”, queixa-se o inquilino. A situação não é única em Lisboa e prevê-se que centenas de famílias a viverem em prédios da companhia de seguros conheçam, em breve, o fim do contrato de arrendamento.

“Dois dias depois de pagar o meu seguro anual à Fidelidade, a 26 de Julho, recebi uma carta de não renovação do contrato de arrendamento, e tenho de sair até Dezembro”, conta Maria (nome fictício), 45 anos. Vive na Avenida João XXI, no Areeiro, com o marido e a filha, de 15 anos, num imóvel que pertenceu à Fidelidade até Agosto passado, quando foi vendido à sociedade Neptunecategory, representada pela imobiliária Square. A situação não é única em Lisboa e prevê-se que centenas de famílias, a viverem em prédios pertencentes à companhia de seguros, sejam notificadas da não renovação do seu contrato. A Fidelidade colocou à venda a maior parte do seu património imobiliário em finais de 2017, incluindo a parte habitacional e a não residencial, e, no final de Junho de 2018, segundo o jornal Público, já tinha vendido em bloco cerca de 2000 fracções correspondentes a 277 imóveis, sobretudo em Lisboa e no Porto.

 

O prédio, situado a meio da Avenida João XXI, tem doze habitações. O rés-do-chão é um centro de explicações, há um apartamento desabitado há um ano e, nas restantes habitações, vivem as nove famílias que poderão vir a abandonar as suas casas. A poucos meses de sair do T3, onde vive há 16 anos, e pelo qual paga 463 euros de renda, Maria diz já ter perdido a esperança de continuar a morar lá. “Não nos disseram o que vão fazer, apesar das nossas tentativas de contacto, mas a ideia é, certamente, esvaziar o prédio, dos anos 50, remodelá-lo e gerar lucro, como todas as imobiliárias estão a fazer pela cidade. Talvez o vendam outra vez”, conjectura.

Numa das doze habitações do imóvel já viveram os avós e os pais do marido da ex-inquilina da Fidelidade e, por isso, a ligação afectiva à casa é ainda maior. “Sou a terceira geração do prédio, a Fidelidade é uma seguradora que sempre se preocupou com as famílias e, como senhoria, não temos razões de queixa. Agora, não teve um comportamento coerente com o que defendeu ao longo dos anos, agiu muito mal”, critica o marido de Maria. A falta de opções de habitações para arrendar a preços acessíveis, no centro da cidade, está a deixar o casal preocupado. “Andamos a ver casas em Benfica e em Telheiras, são zonas que nos são familiares, mas são todas muito caras”, diz Maria.

 

Os inquilinos em risco de despejo tentaram entrar em contacto com a Fidelidade, através de carta e email. Mais tarde, Maria e o marido chegaram mesmo a dirigir-se a uma das instalações da companhia de seguros para falarem com a funcionária que lhes redigiu o contrato. Foi-lhes sempre dito para aguardarem por uma resposta, por escrito, mas esta nunca chegou. Entretanto, souberam da venda do prédio e tentaram contactar o novo senhorio, mas também este não respondeu. O casal procurou o apoio dos vizinhos, porém, estes não se mostraram disponíveis. “Entrei logo em parafuso assim que soube, comecei a colocar panfletos nas caixas de correio da vizinhança toda, mas parece que sou só eu e mais um casal nesta situação. Quem respondeu disse-nos que ainda não recebeu nenhuma carta, talvez estejam mais descansados porque os contratos acabam mais tarde”, observa.

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A recepção das cartas de denúncia de contrato tem causado apreensão entre os inquilinos

No final de Agosto, António, nome fictício, 48 anos, a residir no mesmo prédio, também recebeu uma carta de não renovação do contrato da Fidelidade. Ainda tem, porém, um ano para abandonar o T2, onde mora com a mulher e a filha, de 9 anos. O contrato de arrendamento é mais recente e o inquilino diz estar, por isso, mais esperançoso. “Como já pago uma renda elevada, de 720 euros, tenho alguma esperança de que o senhorio queira renegociar este valor. Como posso sair até Setembro de 2019, não estou com uma preocupação imediata de ficar sem casa, embora esteja angustiado com a situação”, diz.


António vive no Areeiro há 13 anos, o local de trabalho da mulher é nas proximidades e a filha vai a pé para a escola, “uma qualidade de vida” que teme perder. “Já nos conhecemos, ganhamos afinidade com os vizinhos e o local. Neste momento, até na periferia as casas estão inflacionadas, não sei para onde vamos”, receia. Tal como os vizinhos, António diz não ter ficado surpreendido com a não renovação do contrato, mas, ainda assim, esperava mais “humanismo” da seguradora. “Quando fiquei desempregado, em 2009, durante um ano, a Fidelidade baixou-me a renda. O valor era perto dos 800 euros e baixaram para 700 euros.  Na altura, sentia que a seguradora tinha uma certa preocupação com a família, mas esse lado humano perdeu-se”, lamenta.

 

Depois de ser conhecida a intenção da Fidelidade em não renovar os contratos dos inquilinos de três torres de prédios, em Santo António dos Cavaleiros, no concelho de Loures, Maria e António começaram a estar mais atentos. “Já tínhamos desconfiado quando, no verão do ano passado, um apartamento no primeiro andar do prédio vagou. Fizeram obras e nunca mais foi para lá ninguém viver. Depois, conhecemos a situação de Loures e percebemos que nos podia acontecer o mesmo”, explica António. Assim que a Fidelidade foi comprada pelo grupo chinês Fosun, há três anos, Maria também começou a estar mais atenta. Não está surpreendida, mas esperava outra disponibilidade por parte da ex-senhoria. “O que mais nos aborrece é que não houve qualquer tentativa de diálogo da parte deles connosco. Durante anos, ninguém se preocupou em remodelar os edifícios e, agora, deu-lhes a pressa”, diz.

 

Em Loures, a seguradora acabou por recuar na decisão final, renovando os contratos dos inquilinos até 2020. Os moradores do Areeiro já não poderão resolver o problema da mesma forma, uma vez que a Fidelidade já vendeu estes prédios. “Este problema já não tem a ver com a Fidelidade. Todos os imóveis da seguradora já foram vendidos, menos as três torres de Santo António dos Cavaleiros. Lisboa podia ter saído do pacote de venda, mas, na altura, os inquilinos de Lisboa não quiseram juntar-se a nós. Foi pena, só juntos é que ganharíamos algo”, explica, em declarações a O Corvo, Ana Oliveira, representante dos inquilinos de Loures.

 

 

O processo de não renovação de contratos em curso pela companhia Fidelidade pode afetar “quase 1.500 frações, a maior parte delas de habitação”, afirmava a deputada independente e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, Helena Roseta, a 3 de Abril, na Comissão de Ambiente, Ordenamento do Território, Descentralização, Poder Local e Habitação da Assembleia da República. A lei prevê que na venda de prédios arrendados seja dada preferência aos inquilinos, mas no caso de os imóveis não serem propriedade horizontal perdem esse direito.

 

Com a venda em bloco de um prédio, e de acordo com a lei actualmente em vigor, um morador que pretenda garantir o seu apartamento terá de exercer o direito de preferência sobre todo o prédio. “Por muito boa vontade que tivéssemos para comprar o prédio, não conseguíamos, porque não está dividido em fracções. Esperamos conseguir prolongar o contrato de arrendamento, pelo menos. As cartas vão aparecendo à medida que os prazos de não renovação dos contratos chegam ao fim, por isso ainda vai haver muita gente a sofrer”, conclui Maria.

 

 

Na terça-feira da semana passada (18 de Setembro), o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda anunciou que quer ouvir, com carácter de urgência, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Fernando Medina, e a secretária de Estado da Habitação, Ana Pinho, sobre a venda de imóveis da Fidelidade a empresas offshore, com o consequente despejo dos moradores. Em Abril, havia sido também aprovada uma moção na CML, da autoria do ex-vereador Ricardo Robles (Bloco de Esquerda), que recomendava à autarquia exercer o direito de preferência em imóveis cuja venda pusesse em causa o direito à habitação dos moradores.

 

Na mesma semana, sexta-feira (21 de Setembro), o Parlamento aprovou o diploma que reforça o direito de preferência dos inquilinos nas situações de venda das casas onde habitam. Foi introduzida uma nova regra, que não constava do decreto antes vetado pelo Presidente da República, segundo a qual o direito de preferência só poderá ser exercido por inquilinos que estejam nas habitações arrendadas há mais de dois anos. O PS não viu, contudo, aprovada a sua proposta, de acordo com a qual não haveria lugar à invocação do direito de preferência, se um proprietário alegasse que a obrigatoriedade de vender uma única fracção à parte causaria prejuízo. Nesta proposta, que valeria para casos como o da da Fidelidade, que está a vender em bloco um conjunto de imóveis, o PS teve apoio apenas do PAN. A deputada independente Helena Roseta absteve-se na votação deste artigo.

 

O Corvo tentou contactar a companhia de seguros Fidelidade, confrontando-a com as acusações dos ex-inquilinos e tentando ainda saber quantos inquilinos ainda vão receber cartas de não renovação de contrato, mas a seguradora não respondeu, até ao momento da publicação deste artigo. O Corvo enviou ainda questões à imobiliária Square, para saber se está disponível para negociar com os inquilinos e quais os planos que tem para o imóvel da Avenida João XXI, mas também não obteve resposta.

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