Rua de São José: uma comunidade por trás dos holofotes da Avenida da Liberdade
O preço do metro quadrado da Avenida da Liberdade disparou nos últimos dois anos, com valores que vão dos 6 mil aos 10 mil euros. Uma realidade que se estende a toda a freguesia de Santo António. A Rua de São José, paralela à principal artéria da cidade, tem, por isso, perdido moradores e conhecido novos rostos, o que não agrada a muitos que lá vivem e trabalham. No final deste mês, uma mercearia fechará portas e os inquilinos temem pelo futuro do negócio onde trabalham desde 1974. Outras lojas reinventaram-se, mas não estão optimistas quanto ao rumo que a freguesia poderá tomar quando o boom turístico acabar. O presidente da Junta de Freguesia de Santo António apoia a reabilitação dos imóveis, mas queixa-se da inacção de quem regula o mercado imobiliário. Vasco Morgado defende que as freguesias têm de viver das suas gentes e considera que nada está a ser feito para as proteger.
“Hoje tenho bolo de abóbora e amanhã tenho bolo de pêra. Isto nunca é igual”, informa Elisabete Lima, proprietária da mercearia Festival dos Sabores do Lima, na Rua de São José, enquanto prepara as suas iguarias caseiras. Trabalha desde os 11 anos e, após o falecimento dos pais, assumiu as rédeas do negócio familiar sozinha. Para além de fruta e vegetais frescos e dos artigos típicos de uma mercearia tradicional, vende bolos feitos pela própria e sumos naturais, muito requisitados por moradores e trabalhadores da rua.
Atenta às transformações do mercado imobiliário, que traz novas caras para o centro histórico de Lisboa, tem vindo a reinventar-se. Admite, no entanto, que os clientes mais antigos fazem falta. “O que me custa mais é terem corrido com os velhotes todos. Há pessoas com 80 e 90 anos a saírem daqui, não faz sentido. E, daqui a uns anos, quando o turismo acabar? Como vai ser?”, questiona. Os turistas vão comprando um pão ou um queijo, mas é uma vez ou outra. “Vê? Eram quatro e só levaram uma carcaça. Vão dividi-la pelas quatro, se calhar”, ironiza, referindo-se a quatro mulheres francesas que acabaram de sair.
Elisabete Lima nasceu na freguesia de Santo António, onde também casou e teve dois filhos. Com 38 anos, já testemunhou muitas pessoas abandonarem o bairro onde sempre viveu, mas nada como agora. Diz que já não vê ninguém familiar e não se identifica com as imediações da rua onde cresceu. Os rostos que por ali passam mudam todas as semanas, mas não páram. A Avenida da Liberdade, paralela à Rua de São José, é ponto de visita obrigatório para quem visita Lisboa. No último ano, tem sido palco de alguns dos maiores investimentos do sector imobiliário.
Elisabete Lima atende sozinha a clientela que lhe aparece.
E há uma explicação. Em 2015, depois da empresa imobiliária Avenue ter comprado e requalificado grande parte da principal artéria da cidade de Lisboa, o preço por metro quadrado disparou, com valores que vão dos 6 mil aos 10 mil euros por metro quadrado. A icónica sede da redacção do Diário de Notícias foi vendida por 20 milhões de euros para ser convertida em 32 apartamentos. Os poucos prédios e andares abandonados, que ainda ali existiam, começaram a ser recuperados. Muitos para dar lugar a escritórios e novas lojas, outros para serem transformados em habitação de luxo.
Maria José, de 71 anos, é das poucas clientes habituais da mercearia Festival dos Sabores do Lima. Viu Elisabete nascer e crescer. Natural de Mirandela, veio para Lisboa há 54 anos, e lembra-se muito bem da cidade quando chegou. “A Avenida da Liberdade tinha prédios muito bonitos, não era nada disto. Agora, é a avenida dos ricos, qualquer dia não nos deixam passar lá. Estamos entregues à bicharada. A vida é barata para os estrangeiros, mas fica mais cara para nós”, comenta, enquanto paga as compras, fruta e vegetais.
Enquanto confecciona bolos e alguns salgados para o dia seguinte, Elisabete Lima diz que não se opõe ao turismo, mas que o que está a acontecer na freguesia mais cara do centro de Lisboa não faz sentido. “Hoje, a Avenida da Liberdade é glamour e lojas finas com rendas de aluguer de 30 mil euros. Não é para nós. Alugam as lojas e o dinheiro não fica aqui. A nossa rua e a Avenida são duas realidades muito diferentes”, considera. “Não tenho nada contra os turistas, mas se, além deles, ainda viessem aqui os velhinhos comprar fruta e legumes, como antigamente, era melhor para o negócio”, explica.
Lina, de 42 anos, também faz parte dos clientes fiéis da mercearia e sempre viveu na Rua de São José. Os andares acima do seu já foram convertidos em alojamento local. O dela será o próximo, informou-a a senhoria no mês passado. “Mais dia, menos dia, vamos sair todos daqui”, afirma. Maria José concorda. “Isto é a morte dos idosos. Não paramos de perder pessoas. Querem que eles morram para construírem hotéis e não pagarem às finanças”, diz.
A freguesia de Santo António é, neste momento, a freguesia mais cara do centro de Lisboa, afastando moradores antigos para as periferias. A subida de preço por metro quadrado, registada nos últimos dois anos de forma mais acentuada, não agrada a quem viveu e trabalhou uma vida inteira mesmo ali ao lado. Como é o caso de Caciano Garcia. Com 90 anos, o dono da sapataria Caciano já assistiu às principais mudanças da cidade de Lisboa em meados do século XX e princípios do século XXI.
Lembra-se de quando ainda haviam lojas portuguesas na Avenida da Liberdade, marcas que já não existem hoje, e das marés de gente que rumavam a espectáculos no Teatro Tivoli. Vê as transformações da cidade com tristeza. “A Avenida da Liberdade já não é de Portugal, é dos estrangeiros. Haviam muitos estabelecimentos nacionais que fecharam. O país está morto, nunca vi nada assim”, diz a O Corvo. “Portugal foi reconhecido como um país independente em 1143 e, agora, não temos país, estamos todos sediados em Bruxelas. As multinacionais deviam ser corridas, são um veneno que prejudicam o sistema económico”, reforça o comerciante, que vende sapatos há 70 naquela rua. O espaço, que não deixa perceber bem a sua dimensão total, tal é a quantidade de caixas de sapatos que se amontoam umas por cima das outras, já foi uma fábrica de sapatos. Em 1958, passou a ser a sapataria Caciano.
Caciano guarda imensas memórias de uma Lisboa que já não vê como sua.
O proprietário confessa ter saudades dos tempos em que tinha cinco sapateiros e lhes podia pagar bons ordenados. Agora está sozinho na sapataria que viu nascer e crescer. Abre a loja às 9h e fecha-a às 19h e, muitos dias, não recebe ninguém. Diz que só vende sapatos de pele e couro, mas que os clientes habituais já não têm o poder de compra que tinham e os que têm não passam por ali. Nas vésperas de Natal era quando se vendia mais. “Chegava a vender 30 pares de sapatos. Nos últimos anos, nem um par de sapatos vendo, às vezes”, lastima. Uma altura achou que a situação poderia melhorar. “O IVA tinha subido e eu mandei vir mais sapatos, mas arrependi-me. Foi um erro porque não há emprego e não há boas reformas”, lamenta.
José Santos e Maria da Conceição Santos têm 60 anos e três dias a separar as suas datas de aniversário. Natural de Braga, José Santos veio trabalhar para Lisboa em 1974, na mesma mercearia onde está agora, mas como empregado. Agora, é o dono, juntamente com a mulher e o filho. Um papel na entrada, no qual se pode ler “liquidação total”, deixa adivinhar que o negócio já teve dias melhores. José Santos confirma-o a O Corvo. “Vamos fechar no final do mês. Venderam o nosso prédio, o senhorio já correu com quase todos. Ainda há uma senhora no segundo andar e nós. Já vivemos no prédio à frente, mas também foi vendido. Agora, vivemos em São João da Talha”, explica. Vão dar-lhe uma indemnização, mas não chegaram a acordo relativamente ao valor. “Deram-nos a opção de pagarmos 600 euros de renda, mas não conseguimos pagar esse valor. Pagamos 50 euros de renda e, mesmo assim, a loja dá muito prejuízo. Nunca esteve tão mal. Vai dando para comer”, acrescenta.
A mercearia de José e Maria da Conceição fecha no final do mês.
A mulher, Maria da Conceição, não concorda com as proporções que o boom imobiliário está a assumir, mas acredita que o fenómeno não vai durar para sempre. “É uma vergonha a nossa rua, quem a viu e quem a vê. Isto é uma doidice, deviam recuperar as casas para as pessoas. Há ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, mas acredito que, mais dia, menos dia, isto vai acabar”, refere.
O casal está à procura de outro espaço para continuar o negócio, mas duvida que o consiga, dado o elevado preço das rendas. “E se não encontrarem um sítio?”, questiona O Corvo. “Ou vamos para a porta do primeiro-ministro pedir dinheiro ou voltamos para a terra, que temos lá uma casa. Mas, vamos viver de quê? Da horta? Tínhamos umas poupanças, mas, com o prejuízo, também acabaram”, lamenta o senhor Zé, como é conhecido por todos.
Entre os negócios que ainda vão subsistindo, no arruamento que desagua na Rua de Portas de Santo Antão, o mais antigo é o da Leitaria e Manteigaria Minhota. Aberta em 1903, hoje está sob alçada de Fernanda Santos, com 80 anos. Trabalha ali há meio século e não poupa nas críticas às desigualdades que diz sentir na forma de tratamento das duas artérias, situadas lado a lado. “A Avenida da Liberdade é luxo e a Rua de São José é lixo. Tudo o que é lixo das obras ou dos hotéis vem parar aqui e tem aumentado. Os que estão aí alojados não põem o lixo no caixote, fica na rua. Quando chego, de manhã, cheira muito mal. Tramaram os comerciantes, sentimos uma revolta muito grande”, afirma a octogenária, que vive no Bairro Alto.
As coisas já não são como eram, queixa-se Fernanda Santos.
“Deviam pôr cá fiscais para verem como a rua está”, comenta a vizinha Conceição, de 71 anos, que foi até ali saber das novidades do bairro. Já António Castelo, de 76 anos, nascido e criado na freguesia de Santo António, vê a reabilitação dos prédios como “um progresso natural e necessário de uma cidade em crescimento”. Os hóspedes dos Alojamentos Locais e hotéis das redondezas vêm cá?, questiona o Corvo à funcionária da leitaria centenária. “Vêm aqui só para tirar fotografias. Até ao chão tiram fotografias. Põe-se aqui de joelhos a fotografar tudo e não levam nada. É um abuso, mas eu também não os consigo mandar embora”, confessa.
Esta realidade não é, ainda assim, transversal a todos os comerciantes. Filomena Cardoso, proprietária de uma papelaria na Rua de São José há 20 anos, admite sentir quebras no negócio, mas continua a ser muito procurada, principalmente desde a subida do turismo na cidade. “O turismo vai trazendo alguma gente, que vem aqui carregar os bilhetes para as viagens. Eu só tinha uma forma de pagamento, com cartão Multibanco e, agora, já tenho pagamento por Visa, porque era muito solicitado”, explica. Acredita, todavia, que não será sempre assim. “Isto tem um período de validade, não vai durar para sempre. Acho péssimo estarem a vender os prédios e retirarem as pessoas do seu local de conforto”, conclui.
Segundo dados da Confidencial Imobiliário, entre Janeiro de 2016 e Junho de 2017, foram compradas 1.300 casas por cidadãos estrangeiros em 11 freguesias de Lisboa, onde se localizam os principais bairros históricos, tendo sido investidos 446 milhões de euros. Entre os compradores estão cidadãos e empresas provenientes de 84 países, mas são os chineses e os franceses quem compra mais imóveis para habitação. As freguesias da Ajuda, Alcântara, Arroios, Avenidas Novas, Belém, Campo de Ourique, Estrela, Misericórdia, Santa Maria Maior, Santo António e São Vicente são apontadas como as mais dinâmicas em termos de investimento em reabilitação urbana.
Questionado sobre se concorda com o rumo que a reabilitação imobiliária está a tomar no centro histórico de Lisboa, Vasco Morgado (PSD), presidente da Junta de Freguesia de Santo António, é peremptório na resposta. “Não, de todo. As freguesias vivem das suas gentes e nada está a ser feito para proteger os interesses dos moradores. A requalificação dos prédios é boa para a renovação das fachadas e a valorização do espaço público, mas, daqui a uns tempos, muitas destas novas habitações estarão vazias. Quem compra dificilmente vem para cá morar”, explica. “Isto está a acontecer porque Lisboa está na moda, mas esquecem-se que não somos consistentes no turismo. Estamos a assobiar para o lado e a nivelar o turismo por baixo, só pode correr mal”, assegura, ainda.
Para o presidente da Junta de Freguesia de Santo António, Lisboa tem de ser pensada para além do turismo. “Lisboa tinha mais a ganhar em expandir o Alojamento Local e não a concentrar tudo em quatro freguesias (Misericórdia, São Vicente, Santa Maria Maior e Santo António). A Câmara Municipal de Lisboa (CML) devia fazer um regulamento municipal por quotas. Outra das alternativas seria o prolongamento do arrendamento permanente, a descida dos impostos de longa duração e definir limites de preços das rendas. Existem milhentas hipóteses, mediante a legislação existente, de travar isto”, propõe.
A higiene urbana é uma das questões que mais preocupa Vasco Morgado. “Um dos grandes problemas, neste momento, é que temos 12 mil habitantes, mas trabalhamos para 100 mil, o fluxo de pessoas que passa aqui. A junta tem um milhão de euros para gastar na limpeza, mas devia ter um milhão e meio, só para correr bem, já nem digo correr muito bem”, explica. “Não consigo pedir a 50 trabalhadores que façam o mesmo trabalho de há quatro anos. Temos cinco vezes mais lixo que há quatro anos. Além do lixo proveniente dos hotéis, temos novos residentes que têm o hábito de não colocar o lixo nos contentores e deixá-lo na rua”, acusa, ainda.
A grande prioridade da Junta de Freguesia de Santo António, agora, é não perder mais moradores. “Se perdermos mais habitantes, as marchas passam a ser na Trafaria, para onde estão a ir todos”, ironiza. O AL surgiu para uns sobreviverem e outros fazerem negócio, mas não tem havido uma visão estratégica. Os turistas vêm ver o que faz a história da cidade. Quando já só houverem turistas, não têm nada para ver. Já devíamos ter aprendido com os erros dos outros, como Veneza, um grande exemplo de como o turismo estraga as cidades”, considera.