Dar o nome de José Saramago a praça renovada no Campo das Cebolas divide opiniões dos comerciantes da zona

REPORTAGEM
Sofia Cristino

Texto

URBANISMO
VIDA NA CIDADE

Santa Maria Maior

10 Dezembro, 2018

A atribuição do nome Largo José Saramago à área em frente à Casa dos Bicos, requalificada recentemente, não agrada a todos. O sítio é conhecido por Campo das Cebolas e há quem receie que a designação original seja esquecida. Uma vez que até já existe um equipamento cultural com o nome do escritor português na zona, a Fundação José Saramago, há quem considere que a homenagem poderia ser feita noutra parte da cidade. “O Saramago já tem aqui a sua fundação e uma árvore, não faz sentido ter ainda um largo”, considera uma lojista. Mas também há quem elogie a decisão da autarquia e considere que esta é uma forma de chamar mais turistas, atraídos pelo Nobel da Literatura. “O que tem dado mais nome à zona, e ajudado até nos nossos negócios, é o José Saramago”, diz um comerciante.

A praça em frente à Casa dos Bicos vai chamar-se Largo José Saramago. Os moradores e comerciantes da zona, popularmente conhecida como Campo das Cebolas, não sabiam da novidade e temem que a nova toponímia leve as pessoas a confundirem as duas designações. “Que grande disparate, este sítio é conhecido como Campo das Cebolas há muito tempo, não faz sentido nenhum. Qualquer dia, chegamos cá e mudaram as placas das ruas”, critica Fátima Mariano, 60 anos, ali trabalhadora há várias décadas. Há três anos a trabalhar numa loja de recordações, Maria Louro, 28 anos, concorda com a homenagem ao escritor, mas noutra parte da cidade. “É estranho, receio que Lisboa comece a perder a identidade. Toda a gente sabe o que é o Campo das Cebolas, faz parte da história da cidade. O Saramago já tem aqui a sua fundação e uma árvore, não faz sentido ter ainda um largo”, considera a lojista.

Paulo Santos, 39 anos, nasceu e cresceu em Alfama, e, desde cedo, conviveu com o nome Campo das Cebolas. Em 1999, abriu um café, “dos poucos que sobrevive à especulação imobiliária”, diz. A familiaridade com a designação conhecida de todos não o demove, contudo, de afirmar que não nos encontramos no Campo das Cebolas. “As notícias que saíram, no final do mês passado, não estão correctas. Não há mudança de nome. Há um largo que vai passar a ter uma nomenclatura, é muito diferente”, explica. O esclarecimento é dado enquanto percorre aquela zona e mostra as placas identificativas dos arruamentos. O largo renovado com nova designação fica na confluência entre a Rua dos Bacalhoeiros e a Avenida Infante Henrique e é atravessado pela Rua de Alfândega. O Campo das Cebolas, conta, começa no final da Rua dos Bacalhoeiros e vai até ao Cais de Santarém. João Monteiro, 54 anos, a trabalhar há 32 anos na zona, tem a mesma convicção. “Nunca soubemos o nome do largo. Quando o eléctrico parava aqui, chamavam-lhe Largo da Alfândega, depois voltaram a chamar-lhe Campo das Cebolas. Se tiver um nome, pelo menos, fica baptizado”, diz.

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Há quem ache que a existência da Fundação José Saramago no local não chega para justificar a mudança de toponímia

Nos anos 90, quando o futuro Largo José Saramago era uma zona de paragem de autocarros vindos de várias partes do país, as pessoas habituaram-se a dizer que as viagens terminavam no Campo das Cebolas. Após a construção da Gare do Oriente, incluindo um novo terminal rodoviário para viagens de longo curso, aquela zona ribeirinha degradou-se. O espaço permaneceu naquele estado de abandono até ser requalificado, em Abril deste ano. Neste intervalo de tempo, alguns comerciantes dizem que aquela parte até deixou de ser chamada pela designação popular. “Desde que os autocarros saíram daqui, em 1998, deixou de ser tão conhecido por Campo das Cebolas. O que tem dado mais nome à zona, e ajudado até nos nossos negócios, é o José Saramago. Acho que faz sentido a mudança”, diz Filipe Marcalo, 49 anos, à porta do restaurante onde trabalha.


 

Os lojistas chegados recentemente à zona acreditam que a nomenclatura Largo José Saramago poderá atrair mais turistas. “Para os visitantes da cidade, vai ser indiferente, o novo nome até pode chamar mais pessoas a visitarem-nos. Os que vêm cá nem sabem como se chama”, diz Susana Rosa, 40 anos. A funcionária de uma galeria de quadros acredita que os moradores não se vão esquecer da denominação original. Ao lado, Paulo Cardina, 54 anos, apenas há uma semana a trabalhar junto à Casa dos Bicos, numa loja de artigos vintage, tece considerações semelhantes. “Há sempre quem discorde, é difícil chegar-se a um consenso, até me parece uma boa ideia”, diz.

 

A proposta de atribuição do nome do escritor português em frente à Casa dos Bicos, aprovada em reunião camarária, a 28 de Novembro, dividiu a vereação e as maiores críticas ouviram-se à direita. A localização do Campo das Cebolas não terá gerado consenso entre os vereadores, mas o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Fernando Medina (PS), prontificou-se a esclarecer as dúvidas. O autarca garante que o espaço agora conhecido como Largo José Saramago não tinha placa toponímica, nem estava formalmente registado como Campo das Cebolas. Esta designação, esclarece, aplica-se apenas a uma parte do terreno que foi intervencionado, no ano passado. O chefe do executivo camarário explicou que a distinção tinha vindo a ser trabalhada há muito tempo com os familiares do escritor e com a Fundação José Saramago, tendo sido deles que partiu a iniciativa da escolha do local de homenagem. “Dignifica de forma muito justa o contributo de José Saramago, que será secular”, afirmou o autarca. Medina argumentou ainda que vários locais da cidade têm uma duplicidade de nomes e que esta “não o choca”.

 

 

Momentos anos, a vereadora do PCP, Ana Jara, havia corroborado a tese de Medina. “O Campo das Cebolas não é neste lugar, é preciso desfazer este equívoco. É na confluência entre a Rua dos Bacalhoeiros e a Avenida Infante Henrique, e é atravessado pela Rua de Alfândega. Costumo dizer que moro no Campo de Santana, mas oficialmente é o Campo Mártires da Pátria”, explicava, durante essa reunião pública de vereação. Ana Jara, que votou favoravelmente a proposta, elogiou ainda a nova designação. “É uma forma positiva de nomear um largo que não tem nome e de homenagear José Saramago no sítio onde se encontra a oliveira que veio da sua terra natal”, disse.

 

Já o vereador do PSD, João Pedro Costa, defendeu que o local escolhido para homenagear Saramago “não faz justiça ao homenageado” e “manifesta um substancial desrespeito pela história e memória da cidade”. Nessa reunião, o vereador considerou ainda que o documento com a proposta de baptismo daquela parcela do espaço público tinha “erros de fundamentação e de imprecisão quanto à circuncisão exacta da área”. A proposta, considerou, violaria o artigo 1º da Postura Municipal sobre Toponímia e Numeração de Polícia, que diz expressamente que não deve ser alterada a toponímia existente. O eleito pelo PSD até reconheceu que o escritor português merece uma “grande distinção na cidade” e a “atribuição do seu nome a uma rua, praça ou jardim em Lisboa”, mas não no sítio sugerido pelo município. Além disso, argumentava, o espaço “não tem ligação nenhuma com a vida de José Saramago em Lisboa”.

 

Referindo-se ao Campo das Cebolas, o vereador dizia existirem “referências que associam a origem do topónimo ao comércio local e produtos hortícolas, desde o final do século XV, quando o mercado de viveres do Terreiro do Paço foi transferido para a Ribeira Velha”. “A figura de Saramago merece que o seu nome seja atribuído a um espaço que não fique escondido ou subjugado a um nome mais forte, com grande peso na história, que o releve para um segundo plano”, disse. O eleito pelo PSD explicou que o topónimo Campo das Cebolas remonta a tempos imemoriais e tem vários séculos de existência, estando referenciado em documentos anteriores ao Terramoto de 1755, bem como nas cartas da remodelação paroquial do pós-Terramoto (1770) e de Filipe Folque (1858). Para o vereador, não fará sentido mudar o nome do Campo das Cebolas, da mesma forma que não faria sentido alterar nomes como Rua do Ouro, Rua da Prata, Rua dos Fanqueiros ou do Largo do Chafariz del Rei.

 

 

Naquele momento, João Pedro Costa lembrou ainda que há várias situações desta natureza em que a opção de alteração da designação de topónimos tradicionais “correu menos bem”, acabando por desvalorizar as personalidades homenageadas. E deu vários exemplos: a Praça Sá Carneiro, popularmente conhecida como Rotunda do Areeiro; a Praça D Pedro IV, que continua a ser chamada por Praça do Rossio; o Largo Adelino Amaro da Costa é conhecido por Largo do Caldas, e o Terreiro do Paço, “apesar de já terem passado centenas de anos da alteração do nome pelo Marquês de Pombal”. O vereador do PSD disse que não tem sido uma prática da Câmara de Lisboa dar o nome de personalidades importantes às ruas, praças ou largos junto a instituições com o mesmo nome. A Casa Fernando Pessoa está localizada na Rua Coelho da Rocha, mas a rua homónima é em Alvalade. A Fundação Mário Soares está na Rua de São Bento, mas o jardim com o mesmo nome está no Campo Grande, exemplificou.

 

João Gonçalves Pereira, vereador do CDS-PP, também considerou que “não faz sentido” alterar a nomenclatura do largo e sugere que o nome do escritor, vencedor do Prémio Nobel da Literatura há 20 anos, seja antes associado a “um equipamento cultural ou educativo”. A proposta de homenagem ao escritor, assinada pela vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto (PS), foi aprovada com os votos favoráveis do PS, BE e PCP e a oposição do CDS-PP e PSD. O documento já tinha recebido um parecer favorável da Comissão Municipal de Toponímia, a 9 de Novembro, e a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior também terá manifestado a sua total concordância.

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