Nas ruas de Lisboa faz-se música com o coração nas mãos e pedem-se mais regras  

REPORTAGEM
Pedro Arede

Texto &
Fotografia

CULTURA

VIDA NA CIDADE

Cidade de Lisboa

25 Outubro, 2017

Ao andar pela capital, é fácil ouvir a música que paira no ar. Mas está longe de ser uma doce melodia. Apesar do incontornável burburinho turístico, muitos músicos de rua afirmam não estar a beneficiar em nada com a situação. Muito pelo contrário. O aumento da concorrência arbitrária é o resultado do crescimento da afluência de artistas aos locais mais visitados da cidade. Há músicos “vindos de todo o lado e a tocar todos ao mesmo tempo”, queixam-se alguns. Muitos defendem, por isso, a necessidade de se alterar a regulamentação. E pedem também uma maior consideração pela profissão, em particular das autoridades. Há quem trema só de pensar que o seu amplificador pode ser apreendido pela Polícia Municipal. O Corvo fez um périplo pelas zonas onde os músicos se concentram.

À frente do café A Brasileira, o olhos pétridos de Fernando Pessoa atravessam a Rua Garrett em busca do sossego que lhe escapa no espaço a que está confinado. No ar, vento, só. Junto ao acesso do metro, um homem vai acendendo cigarro atrás de cigarro, num vaivém constante e típico de quem está prestes a esgotar a sua paciência. Ao seu lado, está uma mala, mas não uma qualquer. Pára. Observa. Recomeça a andar. Leva o cigarro à boca, uma vez mais.

Como sempre, Remam Giza é o primeiro a chegar ao local, para garantir que não há surpresas. O polaco gosta de chegar cedo e de fazer a reperage ao espaço, antes dos colegas que vão tocar com ele darem cor de si. Esquivo, o músico de rua que vive em Lisboa há cerca de sete anos, olha uma vez mais em redor, antes de falar: “O problema aqui é a polícia, estás a ver? Se for preciso, andam por aí à paisana e, depois, chegam aqui e tiram-nos tudo”, conta a O Corvo o músico de 50 anos.

Nas ruas de Lisboa faz-se música com o coração nas mãos e pedem-se mais regras   

Antes de vir tocar para Portugal, já Remam Giza oferecia música em Barcelona a todos aqueles que paravam para o ouvir. Um dia, de visita a Lisboa, apaixonou-se pela cidade e resolveu ficar. Desde então, o músico, que toca uma espécie de cítara, adaptada para ser ligada a um amplificador, já viu o seu ganha-pão ser-lhe confiscado por duas vezes em apreensões da Polícia Municipal. “É dramático. Da segunda vez que me que tiraram o instrumento, queria suicidar-me. Tiram-me o instrumento e fico sem ter que comer”.

No centro da questão, conta, está o facto de tocar sempre com recurso a um amplificador: “Não compreendo, dizem que incomoda. Há uma paranóia com os amplificadores aqui que não faz sentido”, critica o músico. “Acho que, se me tirarem tudo outra vez, não vou aguentar mais”, desabafa.

Nas ruas de Lisboa faz-se música com o coração nas mãos e pedem-se mais regras   

Remam Giza tem pesadelos ao pensar que a Polícia Municipal lhe pode confiscar o equipamento.

Para o músico, a solução passaria pela atribuição de um título que conferisse aos músicos mais direitos, mas, sobretudo, um “que lhe oferecesse estabilidade”. Recorde-se que, no início de 2015, a Câmara Municipal de Lisboa eliminou a chamada “taxa administrativa para o licenciamento dos artistas de rua”, sendo que, alguns meses antes, já eram visíveis sinais de mudança em relação a esta matéria, quando alguns músicos foram forçados a deixar o espaço que ocupavam há largos anos no Castelo de São Jorge, por decisão da EGEAC. Na altura, a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural optou pela criação de um programa de capacitação e acompanhamento para estes artistas de rua.



A cítara, vai aos poucos, deixando de se ouvir, agora já acompanhada por uma guitarra clássica e pela percussão. Ao descer a Rua Garrett, em direcção aos Armazéns do Chiado, o vento traz agora outra melodia. No ar, o ecoar cerimonioso e solitário de um violino que parece tocar como se mais ninguém o estivesse a ouvir.

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Alex, o violinista de Moscovo que costuma vir para Lisboa no verão.

No seguimento da Calçada do Sacramento, protegido pela passagem que dá acesso ao um espaço comercial da zona, Alex não abre os olhos enquanto toca e mal dá um descanso si próprio no intervalo entre músicas, deixando-nos quase a adivinhar onde termina uma e começa outra.

Natural da Rússia, Alex tem 29 anos, é violinista profissional e, à parte o facto de integrar uma orquestra da sua terra natal, em Moscovo, é também professor. Todos os anos, durante o Verão, vem a Lisboa, só para tocar violino e trocar as salas de aulas e os auditórios pela acústica da rua. “Quando toco aqui, faço muito dinheiro. Desde que vim a primeira vez, agora passo aqui as minhas férias”, conta ao Corvo. “Nunca tive problemas com a polícia, acho que eles gostam de mim”, conclui.

No caminho até Alfama, é difícil não fazer um medley dentro da nossa cabeça, tal a variedade da oferta musical com que nos cruzamos. Por fim, um pouco de acalmia acústica, ao mesmo tempo que o Tejo começa a surgir na linha do horizonte. Uns acordes suaves parecem agora perfeitamente coordenados com o ambiente.

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João Manuel Neves: dêem-lhe uma guitarra e espaço.

João Manuel Neves tem 53 anos e há 45 que mora em Alfama. Para o encontrar, basta passar no Miradouro de Santa Luzia, onde normalmente está sozinho com a sua guitarra clássica e o seu casaco de cabedal, muito possivelmente a aproveitar o sol da manhã. Conta o músico que aquela é a única hora em que é possível estar ali a fazer o seu trabalho dignamente e a disfrutar daquele momento. “Qualquer dia, ainda vão começar a cobrar para entrar aqui, como fizeram no Castelo e quem se trama somos nós, claro”, comenta a O Corvo.

Os turistas começam a aparecer e um outro músico prepara-se para tocar também. Se é verdade que a maior afluência de visitantes à cidade corresponde a mais trabalho, e logo a mais rendimentos, para João Manuel Neves mostra-se, contudo, bastante incomodado quando o tema da conversa passa para a quantidade de novos músicos que começam a aparecer, “vindos de todo o lado e a tocar todos ao mesmo tempo”.

Nas ruas de Lisboa faz-se música com o coração nas mãos e pedem-se mais regras   

“O facto de não existir uma licença que vá de encontro aos nossos interesses faz com que qualquer um possa vir para aqui dizer que é músico e começar a tocar. Isso é mau para todos, até para os turistas”, aponta. O músico acusa mesmo os dirigentes municipais de se terem esquecido, há largos anos, de quem ali mora e de só olharem “para os seus próprios interesses”. “Desde miúdo que venho aqui, porque moro já ali para cima, está a ver? Muitas vezes confesso que já não me sinto bem quando venho. Se não fosse pela vista e pelas minhas memórias, acho que dificilmente vinha para aqui tocar”, conclui.

“Quer que toque fado? Eu toco. Talvez blues? Eu toco. Estou aqui para ajudar a apreciar a paisagem e porque amo tocar. Gostava de ser reconhecido por isso mesmo. Por isso é que só venho cá de manhã, quando não está quase ninguém”, explica João Manuel Neves.

Enquanto isso, a brisa interrompe um suspiro e, de alguma forma, abranda também a irritação que transparece na forma como João Manuel Neves se expressa. O músico volta a pegar na guitarra e, conformado, atira-se aos acordes da próxima melodia, como se nada tivesse acontecido.

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