Guerra de preços da cerveja entre bares leva à degradação do ambiente na Bica
A competição comercial entre dois pequenos estabelecimentos de diversão nocturna, no topo da Rua da Bica de Duarte Belo, tem-se agudizado. Os preços da cerveja, fornecida por marcas rivais, desceram tanto que o local atrai cada vez mais gente. Os residentes e os comerciantes mais antigos dizem que se tem assistido ao agravamento do “mau ambiente” e da insegurança. Há barulho toda a noite, feito de gritos e tambores, lixo, tráfico e consumo de droga, cerveja e urina a escorrer pelo chão e graffiti cada vez mais visível. Os donos dos bares em causa, que vendem a imperial a 50 e a 60 cêntimos, dizem não se sentir responsáveis por tal cenário. A junta da Misericórdia tem outra opinião e fala na aplicação de sanções aos “prevaricadores”. A Polícia Municipal está a acompanhar a situação.
Há mais de quatro décadas à frente dos destinos do restaurante Alto Minho, no 61 da Rua da Bica de Duarte Belo, João Antunes, 68 anos, não se lembra de alguma vez ter passado por tal coisa. “Ando a tomar comprimidos para dormir, pela primeira vez na minha vida. Durmo três a quatro horas e, depois, já não consigo mais”, conta, sentado a uma das mesas, numa pausa a meio da tarde, depois de terminado o reboliço dos almoços.
Residente num dos pisos situados por cima do estabelecimento, conhece como poucos o arruamento que tem no ascensor o seu ex-líbris e, este ano, até já deu que falar por ter ganho uma suposta eleição da “mais bonita rua do mundo”. Mas nunca viu ou ouviu nada como isto. “Está impossível. A partir das dez da noite, começa a chegar gente aos magotes, sentam-se e enchem os degraus, fazem barulho, conversam alto, cantam, batem tambores, há lixo no chão”, queixa-se. “Parece um autêntico Santo António”, sintetiza.
A feroz competição pela captação de clientela, através de uma campanha de promoções no preço das bebidas, sobretudo da cerveja, entre dois bares situados no topo da rua, abertos no último par de anos, tem feito do local um novo chamariz da vida nocturna. Mas tem contribuído também, de forma decisiva, para uma alteração substancial da vivência naquela que, até há não muito tempo, era vista como uma das zonas emblemáticas da movida lisboeta. À imagem do que sucedeu no Bairro Alto, a boémia sofisticada e exigente de outrora terá dado lugar a magotes de gente atraída pelo álcool barato, ouve-se por ali.
Existem reclamações abundantes sobre o ruído excessivo, o consumo desregrado de álcool – também alimentado pelo recrudescimento da venda ambulante ilegal de bebidas -, de drogas leves, de lixo e urina abundantes, bem como a criação de um sentimento generalizado da existência de “mau-ambiente”. Os residentes e os comerciantes de longa data falam já de um “nivelamento por baixo” da ambiência na Bica, o que estará a pôr em causa não apenas a qualidade de vida, mas também a sustentabilidade dos negócios ali existentes.
“Se isto continua, vai haver um dia em que não aguentamos mais”, avisa Hugo Sousa, gerente há três anos do Bicaense, um dos bares mais icónicos da área – e no qual trabalha há 13 anos. O pessimismo é, aliás, a nota dominante entre vários empresários. Uma visão contestada pelos donos dos bares alvo de todas as críticas, que se queixam da incompreensão da vizinhança. Embora, admitam, até tenham algumas razões de queixa.
Elas têm sido em número suficiente para levar a Junta de Freguesia da Misericórdia a pedir a intervenção da Câmara de Lisboa e da Polícia Municipal. Há ali um problema relacionado com o “funcionamento de portas abertas e uso abusivo do espaço público”, diz a presidente da autarquia, Carla Madeira (PS), que se diz empenhada em encontrar soluções para devolver tranquilidade a quem ali vive. O que poderá passara pela aplicação de restrições ao funcionamento dos estabelecimentos em causa. Até que tal aconteça, as queixas vão-se multiplicando.
“O preço baixo das bebidas atraiu um novo tipo de clientela, menos exigente. Assistiu-se a um nivelar por baixo. E isto aconteceu a partir do momento em que abriu um bar novo, há cerca de dois anos. E, depois, veio outro logo ao lado”, queixa-se Sara Pinto, gerente do Baliza, juntamente com Bruno Abreu. O bar, aberto desde 1999, mesmo em frente do Bicaense, formou com este uma referência incontornável para muita gente que tem da Bica uma outra imagem que não a que agora se revela. “Passou a assistir-se aqui a coisas que nunca havíamos visto. Há gente a urinar contra a paredes, sem qualquer problema e aqui dentro nós a vermos tudo”, conta Bruno, que muitas vezes tem de intervir para afastar vendedores de substâncias ilícitas da porta.
O tráfico de drogas leves, até recentemente visto como um fenómeno que apoquentava sobretudo a vizinha Rua Marechal Saldanha e as imediações do Miradouro do Adamastor, em Santa Catarina, passou também a fazer parte do quotidiano da Bica. Algo que é visto por ali como consequência indirecta da actuação de dois polícias gratificados, pagos por um novo estabelecimento hoteleiro junto ao miradouro para afugentar a “má frequência”. “Por causa disso, assistiu-se a uma deslocação dos problemas para aqui”, dizem alguns comerciantes. Os traficantes de estupefacientes continuam, porém, a operar à luz do dia em toda a área da Marechal Saldanha e do Adamastor.
Certo é que, ouve-se por ali em uníssono, a sempre subjectiva qualidade do quotidiano na Rua da Bica de Duarte Belo desceu a uma velocidade mais acelerada que a do ascensor. “Isto deixou de ser uma rua pacífica, que funcionava como alternativa ao Bairro Alto e passou a ser um local inseguro e com mau ambiente. É impossível estar aqui a partir das 23h”, lamenta Sara, apontando o tráfico de droga e o “problema gravíssimo da falta de higiene” como principais razões para a pressentida decadência. Há rios de urina a descerem paralelos ao trilho do ascensor.
Hugo Sousa, do Bicaense, aponta no chão as marcas dessas escorrências, que se mesclam à cerveja derramada para criar um tapete muito pouco sedutor. A recente colocação, pelos serviços de higiene da Câmara de Lisboa, de contentores de lixo fixos em determinados pontos, sobretudo nas ruas perpendiculares à principal, terá levado ao seu aproveitamento como urinóis públicos pelos menos dados ao rigor cívico. “Acções não devidamente ponderadas criam novos problemas”, constata Hugo, apontando ainda a venda desregrada de cerveja como razão adicional para o estado geral de sujidade. Além da bebida derramada, há frequentemente garrafas a rebolar, calçada abaixo. E vidros partidos, claro.
Ana Martins, moradora na rua e dona da conhecida Tabacaria Martins, no Largo do Calhariz, mesmo ali ao lado, confirma esta degradação generalizada da vivência naquela que é uma das áreas do centro de Lisboa mais procuradas pelos turistas. “Isto está a tornar-se de mais, com o barulho e o certos comportamentos das pessoas. Não posso entrar na minha casa, sem ter de alçar a perna, pois há sempre gente e garrafas”, queixa-se, sem deixar de referir o que vê como “abaixamento do nível dos turistas”, muitos dos quais com comportamentos a denotar a falta de educação. Nesta zona, mesmo durante o dia, tornou-se comum ver grupos de indivíduos ruidosos, de copo de cerveja na mão e em tronco nu.
Cenário que piora à noite. Para tal, dizem comerciantes e residentes, muito contribui uma certa sensação de impunidade. “Existe uma clara discrepância entre o policiamento feroz a estabelecimentos que aqui estão há anos, cumprem todos os regulamentos, pagam todos os impostos e taxas e o que não é feito a outros, que surgem agora. Há uma óbvia disparidade de actuação”, afirma Hugo Sousa, gerente do Bicaense.
“E isso tem óbvias consequências financeiras”, conclui Bruno Abreu, do Baliza, lamentando ainda o que observa como uma certa passividade da Junta de Freguesia da Misericórdia no que diz respeito à limpeza do espaço público. A contribuir para essa sensação geral de desleixo está a profusão de graffiti.
Do mesmo se queixa Sílvia Pereira, 46 anos, a gerente do cabeleireiro Wip, revelando que, ao chegar de manhã ao seu estabelecimento, se depara com uma rua “cheia de lixo, urina, vidros partidos e vómito”. “É claro que isto tem um impacto negativo aqui. Há como que uma energia super-má”, considera a espanhola, originária de Toledo e que se assume como uma bicaense, fruto da sua vivência de década e meia no bairro. Muito mudou por ali, nos últimos tempos, e não foi necessariamente para melhor.
O mesmo sente o português João Costa, 45 anos, a viver na Bica há meia-dúzia de anos e que se lamenta de não conseguir dormir bem há já seis meses, devido ao “barulho de batuques”. Uma banda-sonora que acompanha, aliás, muitas das transacções ilícitas feitas nas redondezas. “Isto é um fenómeno que veio do Adamastor para aqui. Chegou ao ponto de haver 40 pessoas na rua, 30 eram traficantes”, garante.
Desiludida com o que vê, e saudosa de uma época em que à Bica se ia com um espírito diferente, Sílvia faz uma constatação: “Deixou de haver meio-termo, com esta onda turística, estamos divididos entre o elitismo e o baixo nível”. É a parte inferior dessa escala imaginária, todavia, a motivadora de quase todos os queixumes da comunidade bicaense.
Algo inevitavelmente relacionado com o baixo preço do álcool, garante-se por ali. “Andam a vender a imperial a metade do preço do que os outros vendem, isso atrai para aí essa gente toda”, diz João Antunes, o proprietário do restaurante Alto Minho.
Os visados pelas acusações assumem a prática concorrencial, mas afastam qualquer responsabilidade pelo tal “mau ambiente” de que todos falam. “Estamos a fazer o nosso papel, não temos a culpa dessa gente vir para aqui arranjar problemas”, diz Carmen Xavier, que com o marido, António Araújo, dirige há pouco mais de ano e meio a Petiscaria do Elevador. Além de algumas iguarias brasileiras, o preço da cerveja é um chamariz. 60 cêntimos a imperial é convidativo, admite.
A empresária concorda ainda que o que se está a viver, por estes dias, no topo da Rua da Bica de Duarte Belo “é uma bagunça”, mas sacode eventuais culpas pelas degradação a que se tem assistido. “Se vemos alguém a consumir drogas, ou com um comportamento indecente, dizemos logo que não queremos nada disso aqui. Estamos aqui para trabalhar, este é o nosso sustento”, diz, queixando-se ainda “preconceito” dos que se queixam em relação à sua nacionalidade.
A empresária lamenta ainda que se tenha espalhado o boato que os seus funcionários teriam intimidado os funcionários da junta para não procederem à limpeza da rua em frente ao estabelecimento. “É mentira, apenas lhes dissemos que não fazia sentido limpar aqui à porta com a mangueira, às 23h, quando a essa hora ainda temos tantos clientes. Isso só os vais afugentar. Por que não o fazem às 2h, como acontece no Bairro Alto?”, questiona.
“Os outros armam confusão e a gente é que fica com a má fama”, lamenta-se Carmen, assumindo ainda ter baixado o preço da cerveja para 50 cêntimos a imperial, fornecida pela Sagres, porque o estabelecimento que fica portas-meias, o Let’s Rock, também o terá descido. A competição é feroz, assume. O marido vai mais longe. “Sim, é uma guerra, sim, se é isso que eles querem”, declara, assumindo a importância do que está em jogo. No caso, sua sobrevivência comercial. Para os que se queixam as bebidas em saldo, avisa: “Não vou mudar o preço”. Uma espécie de grito de guerra do proprietário da Petiscaria do Elevador.
Coisa que Fábio Alexandre, o dono do rival Let’s Rock, garante não existir. “O que se passou foi que, quando abri esta casa, a 15 de outubro de 2015, tinha um acordo com o meu fornecedor de cerveja para que, ao fim de um ano de actividade, baixássemos o preço e conseguíssemos ser mais competitivos”, explica o empresário, que se orgulha de ter ajudado a “dinamizar” aquela parte da rua. “Isto estava completamente vazio, não havia aqui ninguém”, diz, garantindo a O Corvo ter decidido investir na abertura do bar naquele sítio como resultado da experiência acumulada de anos a trabalhar como funcionário de bares do Bairro Alto e ainda na indústria turística.
A ajuda da Super Bock, o fornecedor de cerveja, também terá, porém, contado na equação proveitosa. “Ao longo dos anos em que trabalhei no Bairro Alto, estabeleci contactos com fornecedores”, admite, afastando, todavia, a possibilidade de que vender a imperial também a 60 cêntimos estará a contribuir para o acicatar de um despique comercial com o vizinho. “Não estou aqui para isso, mas apenas para fazer o meu negócio”, responde, embora admita que os preços que pratica sejam concorrenciais. O objectivo é, precisamente, chamar gente.
Mas não daquele tipo que traga problemas, que possa ser vista como desestabilizadora. Tanto que, em dois anos, Fábio não tem registo de nenhum incidente sério com a clientela. O empresário garante fazer tudo como mandam as regras. “Só posso controlar quem entra no meu estabelecimento e aqui não vendo nada em copo de vidro. A minha calçada, aqui à porta, está sempre limpa, até tenho duas esfregonas”, informa. Mas o ruído constitui um problema, reconhece. “As pessoas, cá fora, por vezes, falam demasiado alto. E há um grupo de indivíduos, não sei se são músicos, que vêm para aí com tambores e pandeiretas. Isso é o que incomoda mais”, consente, embora sugira que tal situação não lhe diz respeito.
Questionada por escrito por O Corvo, a presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia admite que “existem no topo da Rua da Bica Duarte Belo alguns estabelecimentos com comportamentos que provocam incómodo junto dos moradores, tais como funcionamento de portas abertas e uso abusivo do espaço público, o que provoca bastante ruído durante a noite”. Situação que, garante Carla Madeira (PS), está já identificada e a ser alvo de fiscalização por parte da Polícia Municipal.
A autarca reconhece que os problemas vividos naquela rua “são fruto de uma utilização indevida do espaço público para consumo de álcool de uma forma massiva”, mas também são a consequência da “falta de civismo que os frequentadores dos referidos espaços demonstram. Não só relativamente à higiene urbana mas, principalmente, relativamente ao ruído que provocam, prejudicando o descanso de quem ali vive”.
Carla Madeira informa que “os funcionários da junta de freguesia, neste momento, não conseguem fazer a lavagem do local durante a noite, tal como o faziam anteriormente, dada a não colaboração por parte dos clientes e dos comerciantes do local”. O que obriga a que tal operação seja feita durante o dia. “A lavagem é efectuada semanalmente, mas tal só é visível no dia da lavagem, dado a enorme produção de sujidade existente no local”, salienta.
Fazendo questão de sublinhar que não é objectivo da junta por si presidida terminar com a diversão nocturna na freguesia, a autarca diz estar apostada em encontrar “o desejado equilíbrio da função residencial com a função comercial”. Motivo pelo qual, diz, tem estado a acompanhar de perto a situação, juntamente com a CML e a Polícia Municipal. Ainda na semana passada, o vereador com o pelouro da Segurança, Carlos Castro, terá estado no local. “Iremos, juntamente com a CML e a PM, continuar a lutar para devolver aquela rua aos moradores da freguesia, defendendo a aplicação de restrições aos estabelecimentos prevaricadores e estando ao lado da nossa população”, afirma.
E acrescenta: “Continuaremos a lutar com todas as nossas forças para que a rua mais bonita do mundo volte a ser um local aprazível para quem aqui vive e circula. Não desistiremos enquanto não devolvermos a qualidade de vida a quem reside nesta rua!”.