Paulo Gonçalves, um “herói do mar” que não quer Lisboa devorada pelo turismo
REPORTAGEM
Samuel Alemão
Texto
Paula Ferreira
Fotografia
VIDA NA CIDADE
Cidade de Lisboa
21 Junho, 2016
De visita à sua cidade, para um concerto onde apresentará canções de um novo álbum (23 de junho, 22h30, no MusicBox), o antigo guitarrista dos Heróis do Mar faz um diagnóstico arrasador dos efeitos da avalanche turística na capital portuguesa. “Estamos a criar aqui um Portugal dos Pequeninos”, critica o músico que, em 1984, gravou “Rapazes de Lisboa”. A viver em Londres, Paulo Gonçalves diz que “temos bom coração e bom fundo”, mas denotamos “fraqueza moral”. “Vende-se tudo ao turismo”, diz.
“É um país invadido pelo turismo, anda toda a gente a vender o mesmo. Há alguém que se lembra de um negócio qualquer para o turista, os outros vão logo atrás copiar. Parece que anda tudo ao mesmo. Isso é típico de nós, somos fracos”. O que está a acontecer é demasiado evidente para não reparar. Sempre que vêm a Lisboa, os olhos de Paulo Pedro Gonçalves são invadidos pelas evidências do que o seu dono vê como um certo tipo de doença nacional.
“Estamos a criar aqui um Portugal dos Pequeninos, um parque de atracções para os turistas. Vendemo-nos por pouco, somos bimbos”, diz ao Corvo o antigo guitarrista dos Heróis do Mar, enquanto ataca um bife de porco acompanhado por um galão, num pequeno-almoço tardio, numa pastelaria da zona central de Campolide. As lojas de recordações, os tuk tuk e estabelecimentos novos a fingir que são antigos ou genuínos estão por todo o lado. E tal não o deixa indiferente.
De visita para um espectáculo (quinta-feira, 23 de junho, 22h30, no MusicBox), onde reunirá vários amigos e cúmplices musicais, o artista de 60 anos não se coíbe de dizer o que pensa sobre a cidade que, há três décadas, era a casa de um dos mais inovadores grupos pop nacionais. O facto de viver em Londres desde 2005 – já depois de lá ter estado entre 1993 e 2000 – poderia levar a pensar que temeria expressar-se sem peias, receando uma eventual reação negativa dos concidadãos ao seu duro escrutínio. Nada disso. Medo foi coisa que Paulo nunca teve.
Afinal, ele sempre foi um “furioso”, expressão que usa para qualificar as pessoas mais criativas e inconformadas – as quais, felizmente, continuam a existir por cá, diz. “Sempre houve carolas, que são uns furiosos e querem fazer coisas diferentes”, afirma o também fundador de Os Faíscas, uma das seminais bandas punk nacionais. Foi também da sua cabeça que, há mais de duas décadas, saiu o projecto de “neo-fado” Ovelha Negra, antecipando, de certa forma, a regeneração de um género que estava nas ruas da amargura. “Hoje, dás um pontapé numa pedra e aparece um fadista”, ironiza.
O problema é que os “furiosos” são uma minoria. A generalidade dos portugueses tem dificuldade em sair da sua letargia intelectual e de um certo torpor existencial, considera. “A ditadura do Salazar deixou marcas, cortou-nos as pernas, continuamos a ser tipos subservientes”, afirma o artista, que está a trabalhar num novo conjunto de canções, formando um álbum que sairá em data ainda a definir – mas cujo resultado, até ao momento, poderá ser ouvido no concerto desta semana.
O disco ainda não tem nome e os assuntos que aborda “são os de sempre”. Embora Pedro Paulo Gonçalves não goste de se ver catalogado como músico pop – “é uma expressão muito abrangente” -, sabe-se que o registo contará com nomes tão relevantes quanto Sarah Nelson, vocalista nos dois primeiros álbuns dos Massive Attack, ou Roisin Murphy, que se afirmou individualmente após o fim dos Moloko. O antigo músico dos dançáveis LX-90 tanto canta em português, como em inglês, mas o perfil mais internacional do disco que está a fazer dita que todos os temas sejam nesta língua.
O facto de estar a viver na capital britânica, uma cidade onde o turismo é também uma grande indústria, permite-lhe fazer comparações. Uma das coisas que mais salta à vista do músico – que em 1984 gravou em nome próprio um máxi-single intitulado Rapazes de Lisboa -, para além da voracidade da mudança, é a aparente forma acrítica como, entre nós, a generalidade da comunidade da nossa cidade estará a lidar com a recente explosão turística. Há vozes dissonantes, é verdade, mas a maioria das pessoas parece conviver bem com a fulminante mutação sócio-económica.
Uma espécie de “feira low cost” tomou conta de uma parte da cidade. E o facto de trazer dinheiro para uma economia depauperada parece justificar que se desvalorize quem critica. “Os estrangeiros não são estúpidos. Ao fim de cinco anos desta aldeia turística, deixam de cá vir”, diz, lamentando que, para além dessa hiperespecialização económica, para quem chega a Lisboa, o que mais chama a atenção é a “quantidade de pobres e de pessoas velhas”. “É uma cidade muito envelhecida”, observa.
“Temos uma fraqueza moral, deixamo-nos vender, tal como acontece com esta estória do Acordo Ortográfico. Parece que não temos orgulho em sermos portugueses. Uma fraqueza espiritual todos temos enquanto indivíduos, faz parte da nossa condição. Mas a fraqueza moral é algo muito característico de nós”, lamenta, criticando o facto de, em Portugal, as pessoas terem “uma memória muito curta”. “A Amália andou muito anos a ser ignorada”, diz.
Mas, então, aqui é tudo mau? Longe disso. “Faço estas críticas, porque as sinto. É a minha terra. Claro que temos coisas muito boas. Somos carinhosos, temos bom coração, temos bom fundo”, afirma, após fazer notar que, apesar das melhorias das derradeiras décadas, “precisamos de ter melhor educação”.