Mina: “uma festa de libertação sexual e de género da cidade de Lisboa”
REPORTAGEM
Andreia Friaças
Texto
João Viegas
Fotografia
VIDA NA CIDADE
Cidade de Lisboa
24 Outubro, 2018
Existe uma festa que pretende ser inclusiva e confortável para as várias entidades de género. Onde não há fotografias ou casas de banho para homens ou para mulheres. Dança-se ao som repetitivo e intenso do techno, descarrega-se o peso do dia-a-dia e celebra-se a diversidade de expressões. As festas Mina nasceram em Lisboa, em 2017, na dianteira de duas lutas: ser um espaço “queer” e trazer uma nova vida do techno à cidade. É, também, um momento para lembrar problemas que se mantêm depois de a música acabar: desde uma comunidade que se recusa a ser invisível, até ao novo mapa da cidade que Eric e Rivva têm de delimitar. Mas as grandes mudanças ocorridas na capital portuguesa, fruto das pressões do mercado imobiliário, têm tornado a realização das festas Mina um desafio cada vez maior. “Os espaços e projetos comunitários e underground estão a desaparecer. Há cada vez menos espaços onde fazer festas auto-organizadas, que não têm muito dinheiro para o aluguer”, diz um dos dinamizadores.
“Esta é uma festa ‘queer’, onde não se tolera qualquer tipo de assédio ou discriminação. Se te sentires desconfortável com algo, fala connosco”. Foi esta apresentação que Daniela ouviu antes de entrar pela primeira vez na Mina, há dois anos, no bar Fontória, na Avenida da Liberdade. “Dança muito mas não te esqueças de beber muita água”, o conselho que dava as boas vindas e que se revelava cada vez mais pertinente à medida que a noite amadurecia.
Na 13ª Mina, festejada no passado mês de setembro, a morada exata da festa é anunciada apenas 24 horas antes, desaparecendo dos registos informáticos nos dias seguintes – uma medida que tem vindo a ser adotada para “garantir a segurança da festa”, conta Pedro Marum, co-fundador da Mina.
Perto do Aeroporto de Lisboa, a entrada para a festa é feita através de um conjunto de caixas que funcionam como obstáculos. Na fenda deixada entre elas, a simular uma porta, estão Marta e Viegas, que apresentam a festa aos novatos e abraçam os que já são conhecidos. Para Daniela, que aguarda na fila na companhia do seu grupo de amigos, as apresentações já são conversa antiga.
À entrada já se ouve o som instrumental, repetitivo e intenso do techno, que soa tão alto que nos faz sentir os batimentos cardíacos. As paredes aborrecidas, de tinta velha, deste armazém ganham vida com a projeção rápida e circular de tons roxo, rosa, verde, vermelho e azul.
Se atentarmos à fila, começa-se a levantar um pouco o véu da diversidade que vai preencher a festa. Ainda assim, só quando se ultrapassa a entrada é que os casacos, as camisas com função de cobrir, ficam para trás. Há pessoas com acessórios característicos de BDSM (Bondage, Disciplina, Dominação, Submissão, Sadismo e Masoquismo), com roupas escuras de látex, ou até jovens que estão simplesmente de fato de treino. Vislumbram-se rostos, com ou sem barba, maquilhados de cores vistosas, principalmente de verde e azul, em corpetes, e com tacões de todos os tamanhos – bem como pessoas que estão praticamente seminuas.
Eric, 21 anos, ex-aluno de Artes Performativas na Escola Superior de Tecnologias e Artes de Lisboa, diz a O Corvo que encara a Mina como uma performance. “Eu uso muitas coisas na Mina, jockstrap, levo rendas na cara, maquilho-me. Sou influenciado pelo teatro obscuro, gosto de vestir roupas dramáticas. Eu gosto de me vestir o melhor possível, porque gosto de mostrar o que eu valho. Estas coisas permitem-me estar num universo que eu sempre quis criar para mim e que nunca tive noutro sítio em Lisboa”.
A criatividade na indumentária é uma das imagens de marca destas festas
Ao se apresentar como uma festa “queer”, a Mina é um espaço partilhado por pessoas que denotam uma identidade sexual ou de género que não corresponde a ideias estabelecidas ou normas de sexualidade e de género. Se, por um lado, no século XVI, a palavra “Queer”, com origem alemã, foi introduzida na língua inglesa para caracterizar aquilo que era “estranho”, em Lisboa, nesta noite quente de setembro, dança-se ao som e em celebração dessa “estranheza”.
Esta festa é erguida com uma ambição clara e explícita no seu manifesto: “reunir ravers e DJ’s numa experiência de techno e clubbing underground” que torna a Mina numa “festa de libertação sexual e de género da cidade de Lisboa”, complementa Pedro Marum. Contudo, para o DJ, conhecido como Marum, é necessário esta reunião ser feita em segurança.
“É necessário garantir a segurança destas pessoas que estão muitas vezes em situações mais vulneráveis, por exemplo, despidas. Para isso, existe uma seleção à porta, estrita e informativa, feita por pessoas da nossa equipa, muitas delas “queer”. É necessário apresentar os princípios orientadoras da festa a quem a visita pela primeira vez, e perceber se a pessoa pretende respeitar este espaço”, acrescenta.
Existem duas pistas de dança a dividir a festa – a “mina” e a “village”. A pista “village”, que usa o céu como teto, parece ser a primeira paragem de quem chega. É aqui que perco Daniela de vista, que se junta às dezenas de pessoas que se preparam para dançar ao som de DJ’s como Raw Forest, Yizhaq, Peterr, Marum e Ketia.
Do lado direito da pista “village”, fica a entrada para o armazém. Percorremos um corredor tão escuro que faz parecer a noite clara. Afasta-se uma cortina, pesada, também escura, e entramos para uma sala onde dificilmente se consegue identificar alguém. Há uma luz branca que interrompe a escuridão do espaço, mas que nada evidencia, pelo contrário, ofusca quem dança. Na sala da pista “mina”, além da mesa do DJ, estão apenas uns sofás colados às paredes e uns carrinhos de brincar para crianças, comuns de ver à entrada dos supermercados e que parecem ter sido herdados da anterior vida do armazém.
Na pista “mina” vai tocar Bleid, Kerox, Photonz, Stasya e Viegas. Pedro Marum vive atualmente em Berlim, cidade que celebra intensamente a cultura techno, o que lhe permitiu trazer para Lisboa novos contactos. “Nós temos um coletivo muito plural, tanto nas várias expressões, como nas várias abordagens relativamente à música electrónica como DJs”, garante Marum, que prefere não partilhar a sua idade.
Nesta festa não é possível tirar fotografias nem filmar. Apesar de, no início, ter sido acusada de importar tradições culturais da vida noturna de Berlim, Marum garante que tal medida procura resolver um problema, na realidade, muito prático. “Quando não nos sentimos sobre o olhar de uma máquina fotográfica, quando sabemos que aquilo que acontece fica naquele espaço, naquela experiência e memória das pessoas, acaba por permitir que as pessoas festejem de outra forma, sem a possibilidade de o arquivo fotográfico ser usado como ferramenta de inibição ou de vergonha após a festa”.
Ao abraçar e promover a expressão sexual, existe na Mina um espaço – o “darkroom” – onde as pessoas podem ter alguma privacidade. À entrada, são também disponibilizados gratuitamente preservativos. Há ainda especial sensibilidade relativamente à utilização das casas de banho. Uma das bandeiras da festa é conseguir levar a cabo as chamadas “non-gendered toilets”. Isto é, cada casa de banho pode ser utilizada por toda a gente – esta é uma política que tem marcado a agenda de vários países, apontada como uma solução relativamente aos condicionamentos da utilização das casas de banho por pessoas transgénero e não-binárias .
“As pessoas vivem condicionadas ou oprimidas por normas sociais com as quais se têm de confrontar diariamente e, infelizmente, muitas vezes sair à noite é apenas mais um campo de batalha, onde ainda existe um maior policiamento dos corpos e expressões. Nós, pelo contrário, queremos ser um espaço de libertação destas regras e normas”, acrescenta Marum.
Todas as políticas da festa unem-se em prol de um objetivo comum: criar um espaço inclusivo e confortável a todas as identidades de género. Rivva, rapariga transexual de 22 anos, garante, por exemplo, que a festa tem a capacidade de a fazer sentir confortável com o seu corpo. “Entre a Mina e as outras festas a que eu vá, o nível de conforto é completamente diferente. Nas outras festas, não podia dançar bem da forma como eu queria, não podia vestir aquilo que eu queria, porque me podia acontecer alguma coisa. Na Mina, sempre me senti confortável para fazer aquilo que queria e, por outro lado, ainda me encorajavam a isso. Isso ajuda a alcançar um outro nível de conforto e de expressão”.
Para a jovem, a Mina destaca-se pela forma como aborda problemas que são comuns em ambiente de festa. “Podem existir situações desconfortáveis dentro de qualquer festa, por exemplo, alguém que se atira assim a ti do nada, mas existe uma preocupação acrescida na Mina para que a situação seja resolvida”.
Revitalizar as raízes do techno
Em 2011, um coletivo de jovens, do qual faz parte Pedro Marum, fundou a Rabbit Hole, uma plataforma artística que incluía várias valências, como performances, cinema e instalação. O coletivo começou a realizar festas chamadas Bargain – “uma piada porque eram festas de techno a preços baratos, a entrada custava 2,99 euros, e os posters eram sempre panfletos promocionais de supermercados”, explica Marum – que aconteciam no Fontória, “onde havia a possibilidade de subverter regras, por ser um local pouco controlado, um antigo bordel”, acrescenta.
Com o grande – e inesperado, na opinião do artista – sucesso das Bargain, começou-se um projeto que seria focado, consistente e contínuo no mundo das festas “queer” de techno. “Trouxe da Rabbit Hole membros como a Mariana Marques e o João Viegas e convidei a Violet e o Photonz da Rádio Quântica para se juntarem”. Era uma vez a Mina.
Agora, na sua 13º vez, existe uma equipa de 14 pessoas que pensa e trabalha a festa, ainda que a estrutura seja “meio fluída”, uma vez que muitas pessoas não fazem parte da organização mas ajudam regularmente. “Fazem porta, ajudam a fazer bengaleiro ou na produção e montagens”, exemplifica. Além do coletivo, existe um grupo “de família” no Facebook chamado “mina village”, que conta com mais de 300 pessoas. “É um grupo de pessoas próximas ao coletivo. A Mina só é a Mina por ser em Lisboa, porque Lisboa tem uma comunidade de pessoas incrível, que faz com que tudo isto seja possível”.
O coletivo nasce, assim, para estar na dianteira de uma luta: “A Mina pretende ser um dos escassos espaços ‘queer’ na noite de Lisboa a trazer uma nova abordagem à cultura raver e techno da cidade”. Pedro Marum critica o facto de em Lisboa a maioria dos espaços onde se ouve techno serem “em grande parte despolitizados e mainstream, parecendo uma extensão do local de trabalho”. Além disso, acrescenta, “muitos dos espaços têm equipas de segurança que são altamente sexistas e violentas, que não têm a mínima sensibilidade para receber pessoas ‘queer’. São espaços que se excluem do debate de questões sociais que consideramos importantes, noção do que é o espaço público, e como nos podemos apresentar identitariamente no espaço público”.
O artista reforça ainda que a Mina pretende não só ser um local confortável à comunidade como um espaço “novo” para as pessoas que simplesmente procuram alternativas aos lugares convencionais de Lisboa. Para isso, é necessário revitalizar aquilo que foram as raízes do techno. “ O techno está imbuído numa história politizada, de comunhão, de criação em conjunto, de aprendizagem, de expressão identitária e artística, em movimentos marginais, subalternos. Nós olhamos para o legado das raves, onde todas as pessoas olham umas pelas outras”, diz.
Lisboa: da descaracterização à falta de segurança
As primeiras festas da Mina, em 2017, aconteciam no Fontória, na Avenida da Liberdade. No entanto, tem sido cada vez mais difícil para a organização garantir que as festas acontecem, ainda que só mensalmente, no centro de Lisboa.
Com a Mina a ser cada vez menos regular ou empurrada para a periferia da cidade, o coletivo torna-se vocal relativamente aos problemas que, na sua opinião, avassalam a cidade de Lisboa. “Nós somos um coletivo super envolvido em debates relacionados com planeamento urbano, com problemas graves que existem em Lisboa e que tornam muito difícil a existência da Mina. Recentemente lançamos um comunicado a queixarmo-nos da forma implacável como a gentrificação e o turismo tem alterado o panorama da noite de Lisboa”. Na opinião de Pedro, o fenómeno está a deixar o centro da cidade descaracterizado. “Muitos dos espaços e projetos comunitários e underground estão a desaparecer. Há cada vez menos espaços onde organizar festas que são auto-organizadas, que não têm dinheiro para os avultados valores de aluguer”.
Para além do fenómeno da gentrificação, Eric e Rivva apontam outros problemas à cidade. Eric viveu, até há dois anos, no Luxemburgo, junto dos pais, portugueses imigrantes. Quando veio para Lisboa, percebeu que a cidade era segura para a comunidade ‘queer’, em comparação com Hautcharage, a pequena aldeia onde vivia. Contudo, conta ao Corvo algumas das várias situações que mancham a ideia que guardava da capital.
“Em Agosto, passava muitas vezes pela Mouraria ou Martim Moniz, onde há muitas pessoas que não estão habituadas a ver pessoas como eu. Num dia, estava à espera do Uber no Martim Moniz, e ainda estava vestido com a roupa da festa, tinha um vestido preto mas tapado por um casaco que ia até ao chão. Um senhor que está lá sempre a estacionar os carros começou a dizer-me que eu estava ridículo, a empurrar-me, e eu respondi-lhe. Quando respondi, ele fez o clique na consciência dele de que uma figura não perigosa lhe estava a responder. Ele começou a mandar-me pedras que ia encontrando no chão e depois apontou-me uma faca. Eu comecei a andar, cheio de medo, mas felizmente o meu Uber chegou nesse momento”.
Mesmo ficando caro, Eric tenta sempre apanhar transportes privados para qualquer lado. “Eu só ando de transportes públicos quando não estou maquilhado nem vestido de forma andrógina”, sublinha.
“Já fui insultado, pessoas que param e tiram fotografias ou que me agridem. Por exemplo, na Baixa, um rapaz passou por mim, deu-me um soco e continuou a andar”, conta a O Corvo. Eric relembra uma noite em que foi agredido junto ao bar Trombeta, no Bairro Alto. “Estava com dois amigos e estávamos maquilhados, e passamos pela rua do Trombeta. Cinco homens pegaram em mim e começaram a empurrar-me contra a parede e a perguntar se eu era gay, se queria chupar, e bateram nos meus amigos que tentavam chegar a mim. Felizmente, consegui fugir antes de ser gravemente magoado”.
À medida que estes episódios vão acontecendo, há um novo mapa da cidade de Lisboa que começa a ser definido e cimentado. “Claro que eu sei exatamente quais são as ruas nas quais não devo, não posso passar. Qualquer rua que tenha muitos cafés vai ter muitos homens, não é que os homens sejam todos agressivos, mas é bom evitar porque nessas ruas já recebi muitas reações agressivas nesse contexto”, partilha Eric. “Cada vez que vou para casa, em Alcântara, tenho de ter a certeza de que as pessoas do café não me vêem de uma certa forma. Mentalmente, este exercício é muito exaustivo. Vivo em Alcântara, mas não me sinto confortável em casa, nem me sinto em casa, porque tenho noção de que muitas pessoas gostavam de me ver fora”.
“Há dias em que simplesmente não me sinto capaz de lidar com pessoas a olhar para mim, a comentar. Depois começas a perguntar o objetivo da tua vida. Se serves para mostrar a toda a gente que é possível viver de forma diferente, ou se queres ter uma vida descansada e essa vida é vestir calças de ganga e t-shirt branca”, conclui.
Rivva partilha também as dificuldades que teve, inicialmente, em ocupar o espaço público. “Antes, andava na rua como rapaz cisgénero, e não havia qualquer problema, depois quando comecei a usar outra roupa, as coisas mudaram completamente. Lembro-me de morar no Bairro do Rego e, para ir para a Baixa à noite, sentir-me mais confortável a passar pelas ruas escuras do que pelas ruas principais. Como não havia muita luz, as pessoas não viam muito como eu estava vestida, ou então pensavam que era simplesmente uma rapariga cisgénero e não havia grande problema”.
“Em Lisboa, se eu não tiver vestida de forma normativa, há sempre uma restrição muito maior relativamente aos espaços que vou. Tenho de estar sempre atenta ao meu arredor, ao espaço em que estou, quem é que está a passar por mim naquele momento, se estou num espaço seguro ou junto de pessoas de confiança. Inconscientemente, começas a fazer uma seleção dos espaços em que te sentes confortável, em que vais uma vez e marcas como um sítio confortável, e depois vais a ver e tens apenas dois sítios em Lisboa onde te sentes completamente confortável. Se eu quiser sair à noite numa sexta-feira e tiver de vestido e barba por fazer, não sei para onde é que vou. É uma questão estranha, eu já me habituei, inevitavelmente uma pessoa acaba por fazer isso para estar em paz consigo mesma”.
Rivva confessa já não se “preocupar muito” com a noite de Lisboa: “não é algo que eu me sinta muito incluída, ou que num futuro próximo me vá sentir incluída”, comenta. Além de grande parte dos locais noturnos de Lisboa não ter conhecimento sobre a comunidade ‘queer’, as festas abertas à comunidade são também palco de problemas. “Os sítios que eu considero abertos na cidade de Lisboa – as festas da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, festas da Marcha LGBT – são marcadas por uma fetichização de homens de 30 e 40 anos à minha volta, que não me faz sentir confortável”, conclui Rivva.
Uma festa é uma festa. A vida noturna nunca deixa de ser associada a um momento de escapismo, onde o prazer e a diversão são bens supremos. São experiências específicas e efémeras. Contudo, uma festa nem sempre termina quando se fecham as portas. “A Mina termina, mas a sensação libertadora que proporciona acaba por transbordar para o dia a dia das pessoas, e isso acaba por ter uma função importante junto da comunidade ‘queer’”, conclui Marum.
Eric garante que a Mina acabou por se tornar uma nova força para uma comunidade que se sentia invisibilizada, desdenhada e subjugada. “Eu nunca achei que as comunidades fossem tão importantes, contudo na Mina existe uma sensação de que estás em boas mãos, de que toda a gente olha por toda a gente e se importa com toda a gente. E essa sensação mantém-se depois da festa. Em coletivo, não temos medo, porque sabemos que, se alguma coisa acontecer, estamos lá todos”.