Requalificação da Sé de Lisboa abre porta em muralha medieval e causa polémica
As obras de reabilitação do claustro da Sé de Lisboa estão a indignar alguns defensores do património, temendo que se ponha em risco a integridade do monumento nacional. As intervenções mais polémicas são a criação de um percurso subterrâneo, onde se poderá visitar as ruínas, e a abertura de um novo acesso pela muralha. “É gravíssimo partirem uma muralha que é património nacional. É uma aberração contra o património. Estamos a falar da igreja mais importante de Portugal, não é uma paróquia qualquer”, afirma Paulo Ferrero, do Fórum de Cidadania de Lisboa. O grupo de activistas lançou uma petição pública contra a intervenção e está a tentar obter respostas junto da Santa Sé. O Patriarcado diz, contudo, que “o estado em que a igreja está agora é que põe em risco a sua integridade física”. Estas obras eram ansiadas há muitos anos, alega.
As obras de recuperação do claustro da Sé de Lisboa começaram há poucas semanas, mas já estão a causar polémica junto dos defensores do património nacional. O movimento cívico Fórum Cidadania Lisboa acredita que a requalificação da igreja coloca em risco a integridade do monumento nacional, construído no século XII, e constitui “um atentado ao património”. O projecto de valorização da Sé resulta de um protocolo entre a Direcção Geral do Património e Cultura (DGPC), o Cabido da Sé Metropolitana Patriarcal de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa (CML), assinado em 2012. A obra foi adjudicada por um valor superior a quatro milhões de euros, prevendo-se o restauro e a conservação do claustro inferior e das capelas, que deverá estar concluído no próximo ano.
A reposição do pátio do claustro, que vai passar a ser a cobertura definitiva das ruínas achadas no jardim do claustro, obriga à construção de um acesso à catacumba, onde será criado um núcleo museológico que poderá ser visitado. Este acesso far-se-á por escadas, o que não está a agradar ao movimento cívico.
“Ao fim de 30 anos, encontraram vestígios arqueológicos e queriam pôr aquilo à vista. Decidiram que a melhor forma seria colocar um bunker (abrigo subterrâneo) de betão armado, ou seja, uma espécie de invólucro de metal, à volta desses achados. Uma vez que a Sé se localiza numa colina, este bunker não é demasiado pesado para estar ali? E se acontecer um terramoto de maior intensidade, esta cobertura não põe em causa a estrutura do edifício?”, questiona Paulo Ferrero, membro do Fórum Cidadania de Lisboa.
Quando se iniciaram as escavações arqueológicas no claustro, em 1990, a DGCP dizia, num esclarecimento público, que as expectativas relativamente às leituras diacrónicas que o terreno iria permitir eram “grandes”, uma vez que nos entramos na área central das diferentes cidades que se implantaram na colina do Castelo: a cidade romana, a islâmica e a medieval. “O resultado das escavações arqueológicas veio superar as expectativas”, informa agora a mesma entidade.
Em resposta a O Corvo, o Patriarcado de Lisboa remeteu um email de Carlos Bessa, chefe de divisão de Salvaguarda do Património Arquitectónio e Arqueológico da DGCP e um dos arquitectos responsáveis pela obra, no qual são dados esclarecimentos sobre a intervenção. “A complexidade do conjunto das ruínas arqueológicas com longas diacronias só será compreensível estabelecendo um programa museológico entre as ruínas e o espólio. Tentou encontrar-se uma outra solução na área do claustro, mas isso implicaria uma alteração das construções existentes, sendo mais impactante do que a solução encontrada de construção de um edifício enterrado referido pelo Fórum Cidadania como ‘bunker de betão armado’”, lê-se no email.
O único acesso existente entre o claustro superior e inferior faz-se através de uma escada, onde só circula uma pessoa de cada vez. Esta escada, em caracol, foi construída no princípio do século XX, nas últimas obras de restauro ali realizadas. O acesso às ruínas só poderia ser feito em segurança, lê-se no email de esclarecimento, com a construção de uma nova escada. “A nova cripta implica a introdução de uma nova caixa de escadas, designada pelo Fórum Cidadania de Lisboa como ‘torre espelhada’, localizada na mesma zona com uma dimensão que permitirá a circulação em segurança. Esta é assumida como um elemento contemporâneo no monumento sendo proposto o seu revestimento com azulejos artesanais curvos espelhados”, explica a DGPC.
A abertura de uma porta na muralha sul para a Rua das Cruzes da Sé é outra das intervenções previstas no projecto de requalificação da Sé. No esclarecimento da DGPC, é explicado que, por motivos de segurança, houve necessidade de introduzir uma porta de emergência. Mas o Fórum Cidadania de Lisboa diz não entender tal justificação. “Querem abrir uma porta na muralha para facilitar a entrada no museu, quando podiam entrar pela porta principal. É gravíssimo partirem uma muralha que é património nacional. É uma aberração contra o património. Estamos a falar da igreja mais importante de Portugal, não é uma paróquia qualquer”, acusa Ferrero.
A DGPC defende, porém, a localização desta entrada alternativa. “A opção da sua localização deriva do facto de, embora saibamos que a muralha está relacionada com a construção do claustro, esta foi, ao longo dos séculos, afectada, pelo menos pelo grande terramoto do século XVIII, não se sabendo qual o real impacto, embora as gravuras representem a sua total destruição. Nos restauros do século XX também se regista a sua desmontagem parcial, a sua remontagem, a abertura e fecho de janelas respondendo às tendências de cada época. A intervenção arqueológica talvez venha a trazer novos dados sobre estas alterações”, explica o departamento estatal.
“Foi acordado que a porta seria dissimulada com a recolocação da leitura do aparelho da muralha utilizando as pedras da própria estrutura. Acresce que a existência desta porta permitirá o acesso a pessoas com mobilidade reduzida que poderão, através do elevador aceder ao claustro e a toda a igreja”, salienta a mesma entidade, frisando que toda a área arqueológica “será dos poucos projectos de musealização com acessibilidade total a pessoas de mobilidade reduzida”.
O Patriarcado de Lisboa, questionado pelo O Corvo sobre se estas intervenções atentam contra o património nacional, não responde directamente à pergunta. “Uma obra desta natureza não se faz de ânimo leve, muito pelo contrário. Como está agora é que desvirtua o monumento e põe em risco a integridade física do mesmo. A muralha sul é frágil porque assenta sobre um aterro, uma fragilidade acrescida pelas escavações e as inevitáveis infiltrações das chuvas, que vêm sempre tornar menos resistente o solo onde assenta a muralha”, diz o Patriarcado em depoimento escrito.
O Patriarcado salienta, ainda, que a Sé tem sido objecto de sucessivas intervenções desde o século XX, quando foi aberta uma grande parte da janela na muralha sul. “No final do século XX, a Sé de Lisboa foi alvo de escavações arqueológicas por parte dos organismos competentes do Estado e desde há 30 anos que se aguardam estas obras. O estado actual é deprimente, com a cobertura do local das escavações degradada e as estruturas de suporte enferrujadas. Enfim, uma ruína no único claustro gótico de Lisboa. A muralha sul necessita de obras de consolidação urgentes e todo o claustro reclama obras de conservação”, explica.
Já Paulo Ferrero diz que o edifício histórico precisa de outro tipo de obras de requalificação e que esta resposta “não faz sentido”. “Parece que nem sabem do que estão a falar. O torreão norte está inclinado há muito tempo e precisa de uma intervenção mais urgente, já caíram uns bocadinhos do tecto e pode cair mesmo inteiro. Um dos pianos mais valiosos da cidade de Lisboa está calado, é muito antigo e também precisava de uma recuperação. O claustro está uma desgraça, precisa de outro tipo de intervenção”, propõe.
O fórum assegura que, agora, vai protestar junto da Santa Sé. E lançou uma petição pública contra a intervenção. “Com quatro milhões de euros, reparavam a igreja toda por fora e por dentro. Andavam sempre a dizer que não tinham dinheiro e agora, que o têm, fazem isto. Em 2012, começaram a pensar no projecto de requalificação, mas não houve sequer discussão pública. Vamos continuar a debater-nos contra estas obras, claro”, garante.
Entretanto, o Fórum Cidadania de Lisboa contactou o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) para saber se lhe foi solicitado um parecer técnico por parte do Patriarcado de Lisboa. O LNEC informou o Fórum que não recebeu nenhum pedido nesse sentido.