Espaço Júlia já recebeu 63 queixas de violência doméstica de Lisboa este ano e muitas são de adolescentes

REPORTAGEM
Sofia Cristino

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VIDA NA CIDADE

Cidade de Lisboa
Santo António

7 Março, 2019

Não há um dia em que o Espaço Júlia, equipamento social que recebe vítimas de violência doméstica em Lisboa, há quase quatro anos, não atenda pelo menos uma pessoa. Vêm, principalmente, das freguesias de Arroios, Misericórdia, Santa Maria Maior e Santo António, zonas onde opera o centro de apoio. Esta última, que gere o espaço, é a segunda freguesia de onde provêem mais queixas. A primeira oscila entre Arroios e Santa Maria Maior. Também chegam, porém, pessoas de várias partes da cidade, do país e até do estrangeiro. Há cada vez mais casos de adolescentes vítimas de actos de violência e muitos encontram ali uma resposta. Tais dados, explica quem acompanha os casos de agressão, mostram que o projecto devia ser extensível a toda a cidade. O presidente da Junta de Freguesia de Santo António garante estar a pressionar nesse sentido a Câmara de Lisboa. A vereadora do CDS, Assunção Cristas, que visitou esta quarta-feira o espaço, pediu mais lugares de apoio à vítima por toda a cidade.

O Espaço Júlia, situado na Alameda de Santo António dos Capuchos, a poucos metros do Campo Mártires da Pátria, não passa despercebido. A letras grandes, lê-se o nome do centro de apoio às vítimas de violência doméstica, em homenagem a uma mulher assassinada pelo marido numa rua abaixo. Lá dentro, um espaço com pouco mais de meia dúzia de metros quadrados, pode-se entrar pela alameda, mas também pelas traseiras, através do Hospital dos Capuchos, de uma forma mais discreta. Desde o início deste ano, já ali foram 63 vítimas de violência doméstica e, desde que abriu, em Julho de 2015, mais de mil bateram à porta. Por dia, recebe, em média, duas vítimas. O Espaço Júlia tem um protocolo com a 1ª Divisão da PSP, que engloba as freguesias de Santa Maria Maior, Arroios, Misericórdia e Santo António. Esta última, que gere o espaço, é a segunda freguesia de onde provêem mais queixas e a primeira oscila entre Arroios e Santa Maria Maior.

Por ali, já passaram pessoas vindas de todas as partes do país e até do estrangeiro. “Vêem dos sítios mais improváveis, dos Açores, Alentejo, do Porto e até do Brasil. Conseguimos enviar uma pessoa para o Brasil de volta, porque não estava em segurança aqui, a situação era de risco elevado. Já recebemos, também, turistas, a passar férias”, relata João Dias, que coordena a equipa de agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP) no Espaço Júlia. “Entram aqui pessoas em estado de choque absoluto, vítimas de agressões, de abusos sexuais e de violência extrema. Há pessoas que chegam aqui com uma necessidade enorme de libertar tudo, já recebemos vítimas mais de três horas, precisavam de conversar”, conta, num dos gabinetes onde recebe as vítimas.

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Eles são os guardiões das vítimas no Espaço Júlia: Flávio Peralta, João Dias e Inês Carrolo.

Ao longo destes três anos e sete meses, já receberam mulheres alvo de tentativa de assassinato pelos maridos, adolescentes que normalizam comportamentos de violência física e psicológica, idosos agredidos pelos filhos e homens que sofrem violência psicológica das companheiras. Provêem de todas as classes sociais, “de magistrados a professores e trabalhadores de fábricas”. E até aparecem crianças, que dão entrada no Hospital Dona Estefânia, com quem o Espaço Júlia tem um protocolo. “No início, isto era uma loucura, quase que dormia aqui. Em meio ano, logo depois de abrirmos, recebemos mais de duzentas vítimas. Estamos sempre de prevenção, podemos ser chamados a qualquer hora. Já me aconteceu ficar aqui até à meia-noite e depois tive de voltar de madrugada”, conta Inês Carrolo, habituada a dormir todos os dias em estado de alerta.

 

A técnica de apoio à vítima no Espaço Júlia, licenciada em psicologia, trabalha com outro técnico, licenciado em assistência social, e mais dez agentes da Polícia de Segurança Pública – em turnos de dois -, com formação específica na área da violência doméstica, 24 horas por dia, durante todo o ano. Há agentes da PSP mulheres, porque muitas vítimas “têm mais facilidade em contar o seu caso perante um agente do sexo feminino”. Inês Carrolo garante, porém, que o número de funcionários é “suficiente”, e que, brevemente, haverá um novo técnico de apoio à vítima, neste momento em formação na Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG). “Felizmente, estamos a conseguir. Acho que somos um exemplo para a cidade e para o país. Senão conseguirmos, também somos os primeiros a dizer”, explica.

 

Quando as vítimas tocam à porta do Espaço Júlia, são sempre recebidas por um agente da PSP e um técnico de apoio à vítima. Elaboram o auto de notícia ou de denúncia e, explica o chefe João Dias, “mesmo que não desejem, elaboramos na mesma a queixa, porque é crime público”. Depois, preenchem uma ficha de avaliação de risco e, dependendo dos casos, um plano de segurança. “Tratamos da componente legal da denúncia e os técnicos fazem o encaminhamento para a instituição mais indicada, ou ajudam a vítima a encontrar a resposta necessária. Já preparámos vítimas para testemunhas. Cada caso é um caso”, explica. No último ano, a quantidade de queixas tem-se mantido, mas Inês Carrolo sente que o número de vítimas adolescentes aumentou.


 

 

“Supostamente, estamos numa época moderna, em que somos todas mulheres independentes, temos telemóveis e estamos sempre contactáveis, mas depois falta-nos muita coisa. Chegam aqui jovens vítimas de violência no namoro que acham perfeitamente normal o(a) namorado(a) ver o telemóvel, as palavras-chaves, um apertãozinho por ‘ciúmes’ ou ‘amor’, e acho que isto reflecte que estamos a perder a humanização. Sinto que há uma grande desvalorização destes casos e preocupa-me imenso”, lamenta. Uma preocupação partilhada pela PSP. “Na adolescência, as relações são mais intensas e a violência também é aceite de parte a parte. E acham normal darem um estalo, insultar, dar um empurrão, proibir o companheiro de falar com alguém, entre outros. Depois do primeiro estalo, há um que está acima do outro e começa a haver uma relação de poder que me preocupa muito”, diz João Dias.

 

Hoje, chegam cada vez mais casos de violência psicológica e estará a evoluir “o nível de perversão” das agressões, diz Inês Carrolo. “Já não é só uma chapada, há homens que batem sem deixarem marcas físicas”, relata. Por medo, muitas vítimas de violência doméstica acabam por desistir da queixa e, no dia-a-dia, “é preciso ter muita tolerância à frustração”, explica a técnica de apoio à vítima. “As coisas não correm como queremos, mas como a vítima quer, e o tempo da vítima também não é o mesmo da justiça”, diz. Há, porém, “muitos casos de sucesso”. “Já assistimos ao renascimento de uma nova mulher. Uma pessoa que entrou aqui, no início, e, quando voltou, já não era a mesma”, conta, referindo-se a uma vítima de uma tentativa de homicídio qualificado.

 

A técnica de apoio à vítima diz que o Espaço Júlia poderia ser replicado noutras partes da cidade, mas que há um trabalho mais importante a fazer, que passará pela prevenção. “Temos de analisar a severidade política nos casos de violência doméstica. Tem de haver, dentro dessa severidade, uma tentativa de reinserção e até de tratamento destes agressores. Não prevenimos nada, em Portugal, e não moldamos comportamentos desde o início. Tentarmos moldar o comportamento de uma pessoa de 30 anos não é a mesma coisa que tentarmos moldar um comportamento de uma criança de cinco anos”, explica.

 

 

Recentemente, receberam uma idosa, vítima de violência do neto, que acabou de sair da prisão e foi viver com esta familiar. “Há várias gerações a viver no mesmo tecto e o único meio de sustento é a reforma do idoso. É muito complexo e difícil resolver este problema. Há muitos anos, as nossas instituições e quem se dedica aos estudos destas matérias andam a tentar encontrar uma solução. Se houvesse, já estava resolvido. Independentemente das alterações na lei, continuam a haver 27 mil casos de denúncias anuais, e 25 a 35 mulheres mortas, todos os anos, neste contexto”, informa.

 

Para o chefe da PSP, a solução só poderá passar pela “mudança de mentalidades”. “Quando falamos com uma criança e perguntamos se conhece o ditado ‘entre marido e mulher não se mete’ e ele ou ela diz ‘a colher’, e ‘quanto mais me bates’, e dizem ‘mais eu gosto de ti’, é grave. Normalizam-se coisas muito graves, e ainda não se podem mudar mentalidades por decreto”, considera. O número de denúncias tem-se mantido ao longo dos últimos três anos, mas João Dias acredita que poderá ser maior. “São as denúncias que formalizam o número, mas existem mais casos de violência que não são denunciados. Já é o segundo crime mais denunciado às forças de segurança no país. Há uma maior consciencialização das vítimas dos seus direitos”, explica.

 

O presidente da Junta de Freguesia de Santo António (PSD), Vasco Morgado, em declarações a O Corvo, diz que os números de vítimas de violência doméstica na freguesia são “assustadores”. “Quase não fizemos 60 dias deste novo ano e já temos dezenas de queixas. Tenho pena que este espaço não seja replicado noutros lados, porque já provou que funciona e infelizmente é necessário. Antes não fosse”, diz. O equipamento, gerido pela Junta de Freguesia de Santo António, funciona num espaço cedido pelo Hospital dos Capuchos, depois do projecto ter sido apresentado por uma técnica de apoio à vítima. “A ideia teve um ‘sim’ directo, sem pestanejar.  As pessoas fazem as queixas e segue para o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) o cardápio completo. A vítima sai daqui munida de muita informação para a sua segurança”, explica o autarca. Vasco Morgado garante que já falou várias vezes com a Câmara Municipal de Lisboa (CML) para estender a ideia ao resto da cidade, mas em vão. “Há falta de vontade de política de mexer no tema a fundo, certamente. Isto é um espaço próximo das pessoas e as pessoas deixam de ser um número e passam a ter uma cara e um nome, talvez isso assuste, não sei”, diz.

 

 

A vereadora do CDS-PP e líder do partido centrista, Assunção Cristas, visitou, na manhã desta quarta-feira, (6 de Março) o espaço Júlia para “sinalizar uma resposta inovadora de proximidade” e anunciar que continuará a insistir junto da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para que esta resposta seja “replicada em toda a cidade”. “O CDS já apresentou uma proposta na câmara. Não é preciso um por freguesia, mas talvez mais quatro ou cinco espaços destes para cobrir toda a cidade, em ligação à estrutura da PSP. Há muitos outros exemplos de entidades de apoio à vítima pela cidade, mas este tem a especificidade de ter a PSP juntamente com os técnicos que apoiam e encaminham”, diz. Esta particularidade também poderá seduzir mais pessoas ao local. “Sabendo as pessoas vítimas de violência doméstica, vítimas de violência conjugal, que aqui podem tratar de toda a sua situação, não precisam de ir a uma esquadra e de ter também esse impacto que não é tão acolhedor, de ir à própria esquadra, mas que aqui podem ver o seu caso resolvido com as várias valências e com um grande acompanhamento”, assinalou.

 

Cristas lembrou o número de mulheres assassinadas desde o início do ano e defendeu uma maior protecção às vítimas de violência doméstica e uma revisão do enquadramento penal. “São números muito grandes, que continuam a escandalizar-nos. E, este ano, de uma forma mais significativa, porque começou com o aumento do número de mulheres assassinadas e de uma criança. Há mais de um ano, temos propostas na área da justiça e uma delas é para se rever o enquadramento penal de um conjunto de crimes. No nosso sistema penal, continuamos a ter penas mais elevadas para os crimes económicos quando comparados com os crimes de sangue”, diz. A líder centrista promete pressionar o Governo e estar atenta à forma como as leis são aplicadas, e salienta que, apesar da maioria dos casos serem de mulheres, a violência sobre os homens começa “a ser mais conhecida”. “Quando se perder a vergonha, vamos conhecer uma realidade que está escondida”, conclui.

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