O Céu sobre Lisboa, um olhar único sobre a cidade de um blogue que passou a livro

CRÓNICA
Margarita Cardoso de Meneses

Texto

Pedro Ornelas

Fotos

CULTURA

VIDA NA CIDADE

Cidade de Lisboa

13 Novembro, 2017

Nos anos em que os blogues eram as estrelas da internet, o jornalista Pedro Ornelas, inspirado numa coleção de postais de nuvens de Alexandre O’Neill, criou “O Céu sobre Lisboa”. Neste blogue, o Pedro ia partilhando o seu olhar particular sobre a cidade e os sítios por onde andava na sua vida boémia. Imagens e textos que cobriam temas diversos, como a história exposta, mas que quase ninguém vê, palavras trocadas ao acaso na rua, um livro, um concerto, o estado do tempo ou a colocação dos sinos da Estrela após a sua restauração. O blogue existiu de 2003 até 2008, ano em que “o Ornelas” morreu subitamente. Para os amigos e leitores, o choque deu lugar a uma dúvida: e agora, o blogue? Perder-se no éter seria um crime. Passados nove anos, o blogue concretizou-se em livro, uma edição de 100 exemplares que esgotou em duas horas. O Corvo teve a sorte de conseguir um. Eis a história e as estórias de um registo etnográfico ímpar sobre Lisboa e não só. E uma belíssima homenagem a quem nos ensinou a olhar para o céu e ver as nuvens. Evocação feita por quem o conheceu – incluindo a autora deste texto.

Estamos no final de 2003, ano em que a Apple lançou o seu serviço de música iTunes, que veio abalar a indústria musical e transformá-la para sempre. O Facebook ainda não existe – nasceu em 2004 – e ainda nem se sonha com uma coisa chamada Twitter – criado em 2006. O Google tem poucos anos de vida e conquista terreno ao Yahoo e a outros motores de busca com o seu poderoso algoritmo. Os PC são os computadores mais usados e o Windows ou o Outlook são os reis do software, porque quase ninguém tem Macs e gmail ainda nada significa (e quando surge, em versão Beta, em 2004, só é acessível por convite).

O que dá que falar na net, nesta altura, são os weblogs, ou “blogs” (mais tarde denominados “blogues” em português), que permitem a qualquer pessoa publicar o que lhe vai na alma e ser lida por milhares de pessoas no mundo inteiro. Uma revolução absoluta em termos de comunicação. Qualquer pessoa pode, agora, escrever e ser lida. Com a chegada da plataforma de publicação automática Blogger, muito intuitiva e fácil de usar, em 1999, os blogues multiplicaram-se e alguns dos seus autores conquistaram uma voz própria na discussão social e contam com legiões de seguidores. Precisamente, “blog” foi a palavra do ano do dicionário Merriam-Webster em 2004.

Vive-se, portanto, o boom dos blogues. Em Portugal, surgem muitos nesta altura e nos anos seguintes, alguns com bastante impacto e seguidores leais, como a Barriga de um Arquitecto de Daniel Carrapa, o 31 da Armada, de Rodrigo Moita de Deus, A Praia de Ivan-Nunes, o Abrupto de Pacheco Pereira, o Fada do Lar de Marta Anjos e, um dos mais antigos, A Ervilha Cor de Rosa da criadora/artesã Rosa Pomar. Entre eles, surge ainda outro, dedicado a Lisboa, que, ao longo do tempo, foi conquistando um grupo de seguidores graças à forma peculiar que o autor tinha de olhar para a cidade, para os objetos e finalmente, para o mundo por onde andava. Chamava-se O Céu sobre Lisboa, o seu autor era Pedro Ornelas, e começava com a fotografia de um céu azul impoluto sobre os telhados da capital.

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Mário Botelho, que há muitos anos vive entre Bruxelas e Lisboa, lembra-se dessa altura. “Em Portugal, os blogues eram uma instituição, com muito rigor e coordenadas de redação. Em Bruxelas, os blogues não tiveram aquele caráter. Eu ficava admirado com a intelectualidade e o espírito de rigor na criação de blogues em Portugal. Portanto, o blogue do Pedro era uma lufada de ar fresco, uma massagem, era saudável e bem-humorado”, lembra.

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Foto do livro: início 2003 / 17.11.2003

Para quem conhecia Pedro Ornelas, este blogue era uma agradável maneira de seguir os pensamentos e o percurso diário de uma das pessoas mais interessantes com quem eu, autora destas linhas, e muitos amigos tivemos a sorte de coincidir nos caminhos da vida.

O Pedro sabia sempre alguma coisa interessante sobre lugares, sobre livros, sobre arquitetura, música, sobre as pessoas comuns, a vida urbana e – por virtude profissional como copy-desk no jornal O Independente –, até dos quês e porquês da gramática portuguesa (quantas dúvidas me esclareceu, paciente, perante a minha frustração com os becos e travessas deste idioma de Camões…).

Mário Botelho conheceu o Pedro em Lisboa, um pouco antes do 25 de Abril, através de um amigo de Beja que vivia numa casa alugada com uns universitários madeirenses. “O Pedro devia ter uns 16 anos e eu tinha 19. E o Pedro tinha uns LPs debaixo do braço que eram todos muito bons: o Uma Guma dos Pink Floid, o Volume Two dos Soft Machine, um do Hendrix, tudo nata. Naquela altura, não era fácil encontrar pessoas com música daquela qualidade debaixo do braço”.

Foi o início de uma enorme amizade. “Houve uma fase, de 75 até 79, em que nos encontrávamos todos os dias na Trindade. Eu, o Pedro, a João – que é bailarina e já não vive em Lisboa – e mais uns quantos amigos. A certa altura, há um boom na Trindade e fica muito cheia de gente. Então começámos a fazer incursões no Bairro Alto, ao que chamávamos de ‘vadiagem qualificada’”.

Nessa altura, o Bairro Alto era o bairro dos jornais e da má vida. “Havia tascas muito más e havia muito pouca gente – os grandes jornalistas e os operários que trabalhavam nos jornais –, mas basicamente eram tascas sebosas que se misturavam com a prostituição. Onde é hoje o Frágil era uma carvoaria”, lembra Mário.



A prática da “vadiagem qualificada” levou-os a conhecer muitos sítios impensáveis e deixou neles o gosto por ir saber dos lugares que não se sabia. “E o Pedro nisso era exímio”, lembra Mário. “Quando íamos a uma tasca, ele sabia de outro sítio que já conhecia, porque tinha estado lá, e sabia que era de um gajo de Freixo-de-Espada-a-Cinta, que tinha um queijinho óptimo… Era sempre único na criação de situações”, conta, sem esconder a admiração.

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Foto do livro: Junho 2005 / 15.6.05

Há também vincos de caráter que ninguém esquece. “Uma das coisas brilhantes que o Pedro tinha era que não bebia por beber, havia sempre um discurso, não havia lugares-comuns, e foi nessas deambulações teóricas que criamos o conceito das ‘vadiagens’”, conta Mário. Um processo e uma clareza de pensamento que, por vezes, nos deixavam a todos atónitos. “Ficava calado, a pensar, e pensava mesmo a sério, e depois, quando respondia, nunca era superficial”, lembra-se Helena, uma das suas amigas mais chegadas, por não dizer a sua alma gémea.

Na net ainda se encontram algumas provas, como este “raspanete sobre ortografia” que deu online ao Francisco José Viegas  por causa das novas palavras aceites no revisto Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa: “Sem querer alongar-me na matéria, o que você diz do Dicionário da Academia, por exemplo, é simplesmente insultuoso. Por muitos defeitos que o DA tenha, vergonhoso era não termos em Portugal um dicionário feito em termos minimamente científicos, quando os ingleses, por exemplo, já o têm há perto de um século. O DA é um esforço meritório, pelo menos, um princípio. Presumo que o Francisco quando fala de ‘linguajar’ refere-se à inclusão no DA de expressões correntes do português moderno, colhidas da linguagem oral. Pergunto-me o que dirá o Francisco dos dicionários ingleses, regularmente actualizados de modo a incluírem toda a espécie de neologismos, ‘palavrões’, etc., que, quer se queira quer não, fazem parte de todas as línguas – talvez não de um registo ‘culto’, e daí nem sempre.

No blogue ex-Ivan Nunes”, após ter sabido da morte de Pedro Ornelas, o autor e amigo publica talvez uma das mais acertadas descrições do que era o Ornelas: “O Pedro tinha um olho raro, curioso, inteligente, culto, sensível. Tinha também um tom pouco comum na escrita. Como se fosse tudo um pouco subdued. Os entusiasmos apareciam de forma entusiástica, sem dúvida (e havia muitos entusiasmos no blog dele), mas os textos nunca tinham a menor fanfarronice. (Essa coisa rara, não haver fanfarronice). Parece haver uma dúvida a atravessar a escrita, mas é uma dúvida inquisitiva, curiosa. Os textos eram limpos, impecáveis, irrepreensíveis.”

Eram, sem dúvida. Os exemplos são muitos. Mas, focando-nos no seu olhar sobre Lisboa, eis esta seleção:

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Foto do livro: Outubro 2004 / 20.10.2004

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Foto do livro: Outubro 2004

Com o cabelo encaracolado, a pele marcada pelo acne, um ar bonacheirão e boémio e olhos doces, muita gente o conhecia de vista, porque era uma figura incontornável da noite de Lisboa. E se o Bairro Alto era a sua segunda-casa (ou talvez a primeira), a ZDB era a sua sala. Ali estava quase sempre, mas se há coisa em que todos os amigos coincidimos é que o Pedro tinha o dom de estar em todo o lado. Aliás, havia uma piada clássica entre nós: “fui não-sei-onde, estava lá o Ornelas, claro”. Podia ser o sítio mais óbvio ou mais fora de mão, mas se houvesse concerto, exposição, filme ou performance, o Ornelas estava sempre lá. Sempre. Como é que ele fazia, ninguém sabe.

Gonçalo Praça conta um episódio que lhe ficou na memória: “houve uma cerimónia mais ou menos grande para apresentar o lançamento oficial e ao publico da Internet em Portugal. Estava cheia de engenheiros, geeks e políticos e de pessoas de gravata. E lá no meio, de repente, reparei em duas pessoas que conhecia de vista: o Pedro e a Helena“. Típico. Quem mais poderia estar ali? Tal como o Gonçalo, tinham ido “por curiosidade” segundo lembra hoje Helena. Essa apresentação aconteceu em Abril de 1994, num seminário intitulado “Portugal na Internet”, altura em que “foi mostrada ao público e aos jornalistas, pela primeira vez, a Internet em funcionamento”, escreveu o Público mais tarde.

Para Helena, esse dom da ubiquidade “tem a ver com o facto de ele conhecer muitas pessoas, e quando lhe falavam das coisas, ele ia”, conclui. “Fui com ele de férias aos Açores e foi incrível. Íamos sem nada marcado. Chegamos ao Pico e, no primeiro café que fomos, estava um amigo dele, de uma família de Arouca, nem sequer era de lá! E ficamos em casa dele, numa propriedade muita bonita. Daí fomos para Faial, chegamos lá, demos três voltas e ele encontrou outro amigo que também nem sequer era de lá, é de Lisboa. Havia acasos como este”.

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Foto do livro: Abril 2005 / 14.4.05

Voltando ao blogue, além dos momentos de Lisboa que captou, na selecção de textos feita para este livro, encontram-se algumas pérolas, como esta:

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Foto do livro: Janeiro 2004

“Por sorte”, conta Helena, “o Gonçalo (Praça) conseguiu ir lá e sacar os conteúdos” e a mãe, entretanto, guardou religiosamente os discos externos com as imagens “todas desarrumadas”. Rapidamente se trocaram ideias e mensagens sobre um possível livro d’ O Céu sobre Lisboa. Uma homenagem ao Pedro e um registo histórico de um trabalho etnográfico sem par da Lisboa do início do século. Foi um processo longo, de quase 10 anos, “basicamente foi um processo de luto”, explica Helena.

Bem diz Helena, num tom muito “orneliano”, que “o Pedro tinha um sentido de humor do caraças”. Daí que, quando ele desapareceu de repente, após um internamento hospitalar que correu mal, amigos chegados e seguidores não podiam conceber a ideia de deixar os textos do blogue perderem-se no vazio da Net. Entre bloguistas, questionou-se o que seria dos conteúdos dos blogues após a morte dos seus autores, haveria direitos sobre os mesmos, haveria backups? Alguém disse que “crackers” atacavam os blogues que estavam inativos. Além das questões éticas da possibilidade de copiar todos os textos e pespegá-los noutro sítio, Maria João Nogueira, a.k.a. Jonasnuts, outra bloguista ainda ativa, questionava: “O que é que vai acontecer ao Blog? Depois de x tempo sem ser actualizado, é removido? Não sei, não conheço a política do Blogspot acerca do tema. É neste momento que me assalta uma dúvida ou, mais apropriadamente, deparo-me com o dilema. Não tenho dúvidas acerca do deveria ser feito. O Blog deveria ser preservado. Ali ou noutro sítio qualquer, devia ser preservado.” (http://jonasnuts.com/226498.html#comentarios)

Mas com o tempo e com o apoio de Ivan Nunes, Gonçalo Praça, de outros amigos próximos e da colaboração gráfica do ateliê Silva Designers, o livro d’ O Céu sobre Lisboa finalmente materializou-se. A primeira edição está esgotadíssima, mas “vai haver uma segunda de certeza, e depois acabou”, diz Helena.

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