Deve o monumento a Sá Carneiro, no Areeiro, dar lugar a outro “menos feio”?

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

VIDA NA CIDADE

Areeiro

23 Maio, 2017


A questão é recorrente e tem tantos anos quanto a estátua que motiva o debate. Há, contudo, quem não se conforme com o que vê. Desde que foi inaugurado, em julho de 1991, o monumento a Francisco Sá Carneiro (1934-1980), antigo primeiro-ministro português, tem dividido as opiniões dos lisboetas. Não tanto por dissensões ideológicas relacionadas com o legado político do primeiro chefe de governo de direita após o 25 de Abril de 1974 – embora elas também se tenham feito notar na altura -, mas sobretudo pela opção estética tomada na homenagem.

A obra do escultor Domingos Soares Branco (1925-2013), resultado de uma subscrição pública lançada à época pelo jornal de direita O Dia, consiste num busto em bronze do ex-líder do Partido Social-Democrata (PSD), morto num acidente de aviação em Camarate, a 4 de dezembro de 1980, apenso a uma estrutura de betão. Encimando-a, surgem figuras humanas recortadas em metal. Uma representação mal-amada, que os olhos de muitos vêem como “uma cabeça decapitada”, aberta às mais variadas interpretações metafóricas. Tanto que existe quem persista em pedir a sua substituição.

“Aquilo é de muito mau gosto e não creio que seja uma forma digna de homenagear a pessoa em causa, num local que funciona como uma das portas de entrada de Lisboa”, diz a O Corvo Rui Martins, um dos representantes do grupo cívico Vizinhos do Areeiro, entidade que, há bem pouco tempo, avançou com uma proposta de “demolição da estrutura de betão e a substituição do busto de Sá Carneiro por outra estátua, esteticamente mais conseguida, mas mantendo a mesma homenagem”.

A sugestão, que havia sido lançada no final do verão de 2016, foi repescada pelo colectivo, em março passado, ao ser colocada à consideração pública na iniciativa “LisBOA Ideia” do portal municipal Lisboa Participa. Nos dois meses em que esteve sujeita a votação, todavia, acabou por receber pouco mais de três dezenas de votos, bem longe da centena indispensável para que a sugestão fosse tida em consideração pela Câmara Municipal de Lisboa (CML) – embora sem carácter vinculativo.

Rui Martins nem sequer é militante ou simpatizante do PSD e admite mesmo que a proposta “pode gerar mal-entendidos”. Por isso, sente necessidade de frisar que o que está em causa é a qualidade do espaço público. Apenas isso. “Não estamos contra a pessoa em apreço, mas sim contra a forma como lhe foi prestada homenagem. É uma questão meramente estética. E o que está ali é de um grande mau-gosto, podendo até ser interpretado com uma alusão à decapitação do antigo governante”, explica o cidadão, repetindo uma crítica ouvida desde a inauguração do monumento. Para o responsável pelo movimento Vizinhos do Areeiro, Sá Carneiro e a Praça do Areeiro “mereciam uma outra estátua, mais digna”.

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O mesmo pensava, por exemplo, Pedro Santana Lopes, que, enquanto presidente do município, eleito pelo PSD, pediu a Soares Branco que concebesse uma nova estátua – que seria em bronze e teria quatro metros de altura. Apesar de a ter inaugurado, na qualidade de secretário de Estado da Cultura, Santana havia revelado, numa entrevista televisiva, no verão de 2003, que pretendia substituir o busto de Sá Carneiro por uma representação do mesmo de corpo inteiro. Para o efeito, anunciava, deveria ser lançado um concurso de ideias. A novidade, segundo deu conta na altura o jornal PÚBLICO, teria deixado magoado o autor da peça original. Sentimento que manifestou publicamente. A ponto de, alguns meses mais tarde, o presidente da autarquia voltar atrás e decidir endereçar-lhe o tal convite. Isto apesar do artista, mesmo contristado, se ter mostrado disponível para participar no concurso.

O então presidente da câmara dizia, em dezembro de 2003, que o convite ao escultor “era a opção mais natural, adequada e bonita”. Garantindo que ia apresentar o projecto à restante vereação, Santana Lopes avisava, porém, que o mesmo apenas se materializaria se o executivo por si liderado assim o entendesse. E escusava-se a revelar uma estimativa de custos para tal empreendimento. Soares Branco meteu então mãos à obra, mais uma vez. Mas os primeiros resultados terão desagradado tanto a Santana, que não foram precisos mais de três meses para receber sinal para abandonar o projecto. Em abril de 2004, os jornais davam conta de que a CML iria lançar um convite público para que escultores apresentassem ideias para a execução de uma nova estátua de Sá Carneiro.

Poucos meses depois, quando Durão Barroso (PSD) abandonou o cargo de primeiro-ministro para ir liderar a Comissão Europeia, Santana Lopes sairia da presidência do município para o substituir. Seria a última vez que haveriam de surgir notícias sobre a possibilidade de ser construído um novo monumento a Francisco Sá Carneiro para tomar o lugar do existente. Apesar disso, ao longo dos anos, o sítio da CML tem mantido activa uma página com uma ficha descritiva da obra de arte, na qual, e depois de mencionar autoria de Soares Branco, se pode ler que “uma nova estátua em homenagem a Sá Carneiro está a ser executada pelo referido escultor, com o objectivo de substituir o monumento actual”*.

O Corvo questionou a câmara sobre esta questão, em novembro do ano passado, sem ter obtido resposta à mesma. Na semana passada, e após ter contactado o responsável do Movimento Vizinhos do Areeiro, voltou a insistir na pergunta feita meses – a saber, se a autarquia mantinha a intenção expressa no seu sítio oficial de construção de um novo monumento. Até à publicação deste artigo, a questão ficou por responder.

Interrogado por O Corvo sobre o tema, o presidente da Junta de Freguesia do Areeiro, Fernando Braancamp Freire (PSD), considerou não fazer sentido voltar a pôr em causa o monumento existente. “Os assuntos nunca estão totalmente encerrados, mas não julgo que existam factos novos que justifiquem uma mudança. Estamos a falar de algo subjectivo do ponto de vista estético. Se me perguntar, em termos pessoais, também não acho que seja uma maravilha de monumento, nem que esteja à altura do papel do estadista. Já vi coisas mais bonitas. Mas se já está feito, está feito”, considera.

Braancamp Freire confessa também não entender muito bem o que “representa” o monumento de José Cutileiro situado no alto do Parque Eduardo VII – uma obra evocativa do 25 de Abril -, mas sublinha que tal não o leva a querer vê-lo substituído. O presidente da junta diz que o debate em torno da estátua de Sá Carneiro “é defendido por algumas pessoas, de vez em quando, como forma de obterem algum destaque mediático”.

* Nota: Depois da publicação deste artigo, a informação sobre o monumento a Sá Carneiro no sítio da CML foi actualizada, tendo sido retirada a referência à construção de uma nova versão do mesmo.

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