Escola da Alta de Lisboa condenada pelos rankings é como “uma segunda casa” para muitos alunos

REPORTAGEM
Sofia Cristino

Texto

Paula Ferreira

Fotografia

VIDA NA CIDADE

Santa Clara

18 Junho, 2018

A Escola Básica Almada Negreiros, na Alta de Lisboa, está nos últimos lugares dos rankings. Em 2014, só um aluno teve nota positiva no exame de matemática. Todos os anos, porém, há um estudante que se destaca nas competições regionais de patinagem. “Quando encontramos uma forma de fazer com que essas potencialidades venham ao de cima, elas aparecem”, diz Rui Job, o director da escola. Há mais alunos a passarem tempo na biblioteca para ler, mas também por outros motivos. “Um aluno disse-me que gosta mais de estar na biblioteca do que em casa, porque aqui tem sossego e regras”, explica a coordenadora do espaço. Quebrar o “ciclo vicioso” de que a escola não lhes diz nada é “muito difícil”, mas a Almada Negreiros é a prova de que é possível fazê-lo. “Os alunos são muito carentes. A escola é uma segunda casa e, às vezes, é mesmo a própria casa deles”, explica o director.

Quem vê a Escola Básica Pintor Almada Negreiros por fora, de tons pálidos e uma pintura enegrecida, surpreende-se com o que encontra lá dentro. Uma escadaria central, com um corrimão cor de laranja decorado com desenhos dos alunos, confere uma vida peculiar ao estabelecimento. A contrastar com o ar sombrio do edifício, logo no átrio da entrada esbarramos com diferentes espécies de plantas e um painel de cortiça forrado com cartazes coloridos. Anunciam a “turma do mês”, as classificações dos alunos em competições desportivas e as actividades previstas para o Dia do Ambiente. Apesar das evidências de que ali há crianças e jovens com talento, porém, esta escola da freguesia de Santa Clara ainda é considerada uma das piores de Lisboa no ranking das escolas públicas.

A viverem nos bairros sociais da Alta de Lisboa, na antiga Musgueira Norte e Sul, e quando questionados sobre o que mais gostam na escola, a resposta surge-lhes de uma forma automática, quase como um dado adquirido. “Não é das melhores, mas gosto muito dos professores e dos funcionários”, conta um aluno do 3º ciclo, enquanto é interrompido por dois beijos e um abraço de uma colega. Quando se fala em actividades lúdicas ou desportivas, os olhos destas crianças e jovens já começam a ganhar outro brilho. “Tem um aspecto mau, mas vamos a competições de desporto e aprendemos vários tipos de dança”, diz, de sorriso tímido, outra estudante.

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Rui Job, o director da escola, quer valorizar o trabalho para lá do que dizem os rankings

Este rótulo negativo é fortemente criticado por Rui Job, o director da Escola Almada Negreiros, que não concorda que se avalie o sucesso de um estabelecimento de ensino apenas com base na componente académica. “Os rankings são perversos porque comparam coisas incomparáveis. Lidamos com famílias desestruturadas, não podemos compará-la a uma escola em que os pais acompanham os miúdos”, começa por elucidar, enquanto vai enumerando o que de melhor ali se faz. Na Almada Negreiros, garante, trabalha-se “tanto ou mais” do que na melhor escola do país, mas os resultados positivos não vêm plasmados nos rankings.

 

“Os alunos têm muitas competências, o meio onde vivem é que faz com que não mostrem quem são. Quando encontramos uma forma de fazer com que essas potencialidades venham ao de cima, elas aparecem. Quando vão a competições, trazem medalhas e taças”, explica Job, congratulando-se ainda por ter alguns dos melhores estudantes nas modalidades desportivas de patinagem e judo. “Aqui, fazemos tudo ou quase tudo de que toda a gente já se lembrou para os motivar. É um trabalho árduo, mas vai dando frutos”, frisa.

 

Esse trabalho está espalhado pelos corredores da escola e é visível em pequenos pormenores. Ao chegar a uma sala de aula, deparamo-nos com diversas mensagens. E há uma que se destaca: “Quando entras nesta sala de aula, tu és a razão porque estamos aqui”. Das paredes, pintadas de amarelo ou azul, saem bailarinas com saias de papel em forma de leque observadas por vários desenhos de Fernando Pessoa pintados pelos alunos. As mensagens sobre reciclagem e a importância da reutilização dos materiais estão espalhadas ao longo dos corredores por dois pisos. A consciência ambiental é, aliás, outra das preocupações mais recentes do agrupamento escolar, que aproveitou um terreno desocupado para fazer uma horta biológica. A terra está preparada para receber sementes e a ideia é que os pais também se envolvam nestas actividades. Apesar da panóplia de iniciativas, dizem gostar mais da área do desporto.

 

Na escola onde, em 2014, apenas um aluno teve nota positiva no exame de matemática, a disciplina preferida é Educação Física. Por essa razão, há também um maior investimento nas actividades desportivas. Uma tabela, afixada num painel à entrada, informa que os alunos da Almada Negreiros ocupam os primeiros lugares nos campeonatos regionais de patinagem. Outro panfleto anuncia que, às quartas-feiras, há aulas de Jiu-Jitsu grátis no ginásio da escola. Num estabelecimento de ensino com vários projectos em curso, Job só lamenta “a rotatividade dos professores”. “Qualquer projecto que esteja a ser desenvolvido fica interrompido, quando saem”, considera.

 

Num bairro estigmatizado desde a sua génese e onde as pessoas ainda olham desconfiadas para rostos novos, a maioria dos alunos chega à escola com expectativas muito baixas, sem hábitos de trabalho e pouco sentido de responsabilidade. As mudanças vão, contudo, acontecendo, ainda que muito diluídas no tempo. Na transição do 2º para o 3º ciclo do ensino básico e no final do 9º ano, Rui Job diz sentir alterações consideráveis na “forma de ser e estar” destas crianças e jovens. “No 9º ano, são pessoas absolutamente diferentes, mudam completamente nestes anos”, explica o também professor de Música e de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). A prioridade do corpo docente é trabalhar o “saber estar e o saber ser” e, só quando consolidadas estas competências, é que os professores partem para o ensino das unidades curriculares. “Não consigo ensinar um aluno que não se sabe sentar ou não sabe interagir com os adultos. Quando atingimos esse objectivo, já podemos leccionar”, explica Job.

 

 

Os alunos do 9º ano tiveram a oportunidade de revelar as competências trabalhadas ao longo de cinco anos lectivos – como um maior sentido de responsabilidade – ao organizarem a própria viagem de finalistas. Durante o ano lectivo, através da organização de almoços e lanches e da venda de rifas, angariaram dinheiro para viajarem de avião até ao Porto. “A maioria andou pela primeira vez de avião e muitos nunca tinham saído daqui. Foi bom nesse sentido, mas também por perceberem que precisam de trabalhar para alcançar resultados”, diz o responsável.

 

Maria da Encarnação Oliveira, coordenadora da biblioteca da escola, ainda se recorda de como a encontrou quando lá chegou, há três anos. Não tinha vida e havia “uma grande falta de cultura do livro”. Ao constatá-lo, a funcionária criou algumas regras, mas de uma forma “pedagógica e original”. “Era uma luta para irem fazer pesquisas na internet e estabeleci que quem lesse 15 minutos podia ir ao computador”, explica. Recentemente, começou também a premiar os leitores mais assíduos.


 

“Quem lê mais é considerado o ‘aluno do mês’ e recebe um livro. Às vezes, também trago escritores à escola. Um aluno disse-me que gosta mais de estar na biblioteca do que em casa, porque aqui tem sossego e regras”, conta.  Este mês houve, também, uma mostra de teatro sobre Igualdade de Género. “Nos sketches havia um pai machista e uma criança ‘maria rapaz’ que não queria aprender as actividades domésticas. Eles adoraram, porque se identificaram muito, é o que se passa nas famílias deles”, diz ainda.

 

Os alunos com bons resultados académicos ainda são a excepção e a mentalidade que vigora entre a maioria deles é a de que “o pior é o melhor”. “Como não têm enquadramento familiar, que contribua para que essa situação se altere, esta continua a perdurar. O mais ‘bandido’, o que enfrenta o mundo e o que sai por cima é o melhor”, explica Job. Desde cedo que a maioria não vê na escola uma oportunidade para fazer uma transição social, porque os próprios pais e avós já não a viam. “É um sítio onde vêm almoçar e passar um bom bocado com os amigos. Quebrar este ciclo vicioso de que a escola não lhes diz nada é muito difícil”, afirma.

 

 

Os problemas já vêm de trás e são alimentados por um ciclo de pobreza passado de geração em geração. Numa parte da cidade onde larga percentagem da população vive do Rendimento Social de Inserção (RSI) ou do salário mínimo, a desvalorização da educação escolar acaba por se intensificar. A existência de muitas famílias monoparentais, que deixam a educação das crianças ao encargo dos avós ou dos vizinhos, é também um dos factores responsáveis pelas elevadas taxas de absentismo e de abandono escolar e pela retenção por faltas. Outros dos problemas apontados, ainda que em menor escala, é a gravidez precoce.

 

“Além de os pais não se importarem, o mais grave é que ainda justificam que o filho não vá à escola. Aí não podemos fazer mais nada. Não temos a pretensão de nos substituir aos encarregados de educação”, explica Job. Depois de um aluno faltar, a situação é comunicada aos encarregados de educação e à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) por carta. Na ausência de resposta, a Escola Segura da Polícia de Segurança Pública (PSP) vai a casa destes jovens, uma situação que alguns docentes até tentam evitar.

 

“Os pais desresponsabilizam-se muito e não sentem obrigação de trazer os filhos à escola. Chegamos a ir a casa deles, com uma assistente social, para evitar que vá a polícia”, explica Ana Leal, coordenadora do grupo de Educação Especial da Escola Almada Negreiros. “Faltar às aulas é só o início dos vários problemas desta escola. Concorro todos os anos para aqui por amor à camisola, porque cada ganho é uma grande conquista e lição”, acrescenta. Apesar dos desafios diários sentidos, Ana Leal diz que tem motivos para se orgulhar dos alunos. “Dizem-nos muitas vezes que aqui se sentem ouvidos e acarinhados. É um reforço muito positivo para continuarmos”, conta.

 

O afecto dos professores e das auxiliares educativas para com os alunos é, de facto, bem visível. Tal como entre estes, que se  abraçam e confidenciam inseguranças próprias da idade. E só não tratam os docentes pelo nome, por respeito à hierarquia. Este foi, aliás, um dos traços característicos da escola mais sentido por um grupo de professores estagiários de uma universidade de Leiden, na Holanda. Os recém-licenciados passaram pela Almada Negreiros, o ano passado, para aprenderem mais sobre os métodos de ensino portugueses e ficaram “admirados” com o que se faz nesta escola, explica Rui Job.

 

 

“Tivemos cá uns estagiários holandeses, durante cinco dias, e o que mais lhes chamou a atenção foi o carinho com que tratamos os alunos. Quando recebemos este feedback de pessoas que não nos conhecem, nem o nosso contexto social, e percebemos que é essa componente que lhes salta logo à vista, ficamos muito felizes”, conta o director da escola. “. Os nossos alunos são muito carentes disso mesmo, de carinho. A escola é uma segunda casa e, às vezes, é mesmo a própria casa deles”, diz ainda.

 

Apesar dos resultados aparecerem, o trabalho que é feito na escola é, muitas vezes, desconstruído em casa. O “mais penoso” é mesmo trabalhar com os encarregados de educação. “É fácil moldar o carácter e o comportamento dos alunos, conseguimos progressos anualmente. O maior problema são os pais. Quando um aluno não se comporta bem e aplicamos uma sanção moral, por exemplo, os pais dizem-nos que eles é que mandam nos filhos”, explica.

 

A Almada Negreiros tem protocolos com várias entidades, nomeadamente a Associação Raízes e, mais recentemente, a Associação Par- Respostas Sociais. Estas parcerias têm ajudado muito o agrupamento a atingir os seus objectivos. “Temos muito pouco poder de intervenção junto dos encarregados de educação. A minha ideia é chegar às famílias através destas parcerias. Queremos que os pais se apropriem da escola e participem em actividades, a vejam com outros olhos”, explica.

 

Entre as várias actividades realizadas, neste momento, um dos monitores da Associação Raízes está a instalar uma rádio escolar na Almada Negreiros. “As parcerias com entidades externas visam colmatar as falhas da escola. O que devia ser o principal trabalho de um professor é diluído num trabalho acessório, muito burocrático”, lamenta Job, adiantando que o estabelecimento só tem uma psicóloga, o que também atrasa o aparecimento de resultados.

 

 

Na escola, onde o aspecto físico do edifício não é a principal preocupação dos professores, acabam por ser os alunos a manifestarem mais interesse por esta questão. Quando os docentes lhes perguntaram, recentemente, o que gostavam de mudar na escola, surgiram muitas ideias. A pintura de fachadas degradadas e de muros foi a que prevaleceu e a sua concretização já vai avançar este Verão. Os próprios alunos vão poder ajudar na pintura dos muros com a ajuda de um graffiter profissional.

 

No passado dia 6 de Junho, quando O Corvo visitou a escola, encarregados de educação, alunos e professores conviviam saudavelmente na celebração do aniversário de Almada Negreiros, conhecido por Dia do Patrono. As comemorações começaram cedo, com um peddy paper seguido de apresentações de dança e da Orquestra Geração, onde tocam alguns alunos. Pais e avós assistiam a uma mostra do trabalho desenvolvido pelos filhos e netos ao longo do ano, mas a postura em dia de festa é “totalmente diferente” da que têm ao longo do ano lectivo, explicava um docente.

 

Guilherme Rebelo, professor de Português e Inglês do ensino básico, dizia que os pais que estiveram presentes neste dia são os que vão aparecendo no resto do ano. “Fazemos várias actividades para envolver a comunidade, os pais que estão cá hoje são aqueles que participam nelas”, explicava, enquanto dava pistas aos alunos. “Estão a utilizar o espírito de equipa que não usam durante o ano. Eles interpretam a palavra ‘avaliação’ como um muro à frente, tem um enorme peso. Só com a realização de actividades é que vão consolidando conhecimentos”, explicava.

 

Emília Beirão, professora de Matemática do 2º ciclo e coordenadora do projecto Eco-escolas, está noutra mesa, onde se pode ler num placar de cartão “reciclar é que está a dar”. Cada posto onde os grupos de alunos têm de parar diz respeito a uma área de ensino. As actividades vão desde perguntas de cultura geral a terem de ir apanhar lixo à rua num saco de plástico. “Vocês são uma equipa, têm de trabalhar juntos, vamos lá”, encorajam os professores. Ainda que inseguros e de olhar no chão, lá vão respondendo, e saltam de entusiasmo quando acertam uma questão. “Aqui percebe-se o que não está percebido”, explica Emília Beirão.

 

 

Ao final da manhã, foram entregues os prémios de mérito e excelência. Liliana Gonçalves, mãe de uma aluna distinguida, diz que este tipo de eventos devia acontecer mais vezes. “A vida não é só estudar. Deviam fazer festas no Natal, na Páscoa e noutras ocasiões festivas, não só hoje”, sugere. “Eu gosto muito, recebo sempre o prémio”, comenta logo de seguida a filha, entre gargalhadas. Sandra Silva, mãe de quatro crianças da Almada Negreiros, também elogia a importância do convívio. “Este dia é muito importante para eles entenderem o valor que têm”, comenta.

 

Há 21 anos a trabalhar na Pintor Almada Negreiros e há dez anos na direcção da escola, Rui Job diz ter esperança no futuro. “Há 15 anos, os pais entravam pela escola adentro chateados. Agora, são mais moderados, o bairro está com uma cara mais lavadinha. É preciso atravessar várias gerações para a mudança acontecer”, conclui, enquanto bate palmas a mais um grupo de alunos a apresentar uma coreografia de Kuduru preparada ao longo do ano.

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