Centro Comercial da Mouraria está para durar, indiferente a uma cidade em transformação
Enquanto assiste à requalificação de prédios e ao nascimento de hostéis e novas lojas em redor, o Centro Comercial da Mouraria, no Martim Moniz, permanece alheado de tais mudanças. Desde sempre, diz quem lá trabalha, correm rumores do fecho do espaço. Mas a administração garante que isso está fora de hipótese. E até antevê uma vida longa ao complexo. Apesar de, todas as semanas, aparecerem potenciais compradores. O principal obstáculo a um possível negócio são os proprietários, que não querem perder a sua fonte de rendimento. Nos últimos anos, vendo uma oportunidade no boom turístico de Lisboa, têm sido muitos os que têm feito propostas para dinamizar o terraço. Uma ideia que a gerência até elogia por acreditar diminuir o preconceito com que alguns ainda olham para um centro comercial incomum, onde se fundem culturas e formas de estar muito distintas. “Dava outra vida e alegria ao centro comercial e, talvez, atraísse outro tipo de pessoas”, considera.
“Imagine o que é, de repente, ver trinta e tal caranguejos a andarem pelo centro. Uma chinesa queria vendê-los, mas o saco onde os transportava abriu-se e os que ainda estavam vivos saíram. Há uns anos, uma proprietária de uma loja começou a correr nua pelos corredores, porque não lhe pagaram a renda”, conta Paulo Afonso, o primeiro lojista do Centro Comercial Mouraria, no Martim Moniz. Estas são apenas algumas das histórias caricatas de um estabelecimento comercial invulgar, que resiste numa zona de Lisboa com características muito próprias e que, à semelhança do resto da cidade, começa a dar sinais de transformação.
De manhã, por volta das 8h, começam a chegar as primeiras encomendas. “São cinco a seis contentores, são toneladas de produtos. Se houver um incêndio, isto arde tudo. Eles trabalham em quantidade, não é à vela, como eu. Isto é um autêntico submundo, fazem-se milhares de euros aqui todos os dias. Se soubesse que a Mouraria se ia tornar nisto, tinha comprado mais espaços”, diz o vendedor de velas.
Em algumas lojas, é preciso fazer um esforço para perceber onde estão os comerciantes que cumprimentam os clientes ao entrarem, tal o amontoado de caixotes de cartão espalhados pelo chão. Pelos corredores, onde se mistura um cheiro intenso a caril e incensos, vêem-se pessoas de várias partes do mundo e de diferentes etnias a empacotar caixas de roupa com padrões étnicos, quimonos chineses, saris indianos e outros artigos originais dos seus países. O ritmo de trabalho é acelerado e só o interrompem para fazerem uma refeição ou deixarem passar um carrinho de mão com mercadoria. É frequente vê-los almoçar à porta da loja, a verem filmes através do telemóvel e, até, a cortarem as unhas, enquanto não aparecem clientes. Hoje, o centro comercial vende, essencialmente, produtos para revenda. Mas nem sempre foi assim.
Um mundo cheio de vida e idiossincrasias.
A funcionar desde 1989, começou por albergar espaços comerciais bem diferentes: uma perfumaria, lojas de artesanato, cafés e restaurantes. Nos últimos dois pisos, onde agora funcionam armazéns, chegaram a existir escritórios de arquitectos e de advogados, conta o comerciante Paulo Afonso, no dia em que O Corvo visitou o edifício. No início, os lojistas eram todos os portugueses. Agora, Paulo é o único. Vende incenso, velas e outros artigos esotéricos, mas a loja começou por ser um café, comprada pelo pai quando o centro ainda só existia numa folha de papel.
Nos primeiros anos do espaço comercial, havia muitos restaurantes africanos nos andares subterrâneos. Na altura, o horário de funcionamento era das 9h às 23h, mas foi rapidamente alterado. “A partir das 19h, há uns 15 anos atrás, havia muito tráfico de droga e rusgas policiais quase todos os dias. Os inquilinos da restauração tinham o hábito de só pagarem os primeiros meses de renda e acabaram por ser despejados. O horário mudou e os donos das lojas começaram a ser mais selectivos na escolha dos inquilinos”, conta.
Agora, os espaços estão arrendados essencialmente a chineses, mas também a indianos. Com culturas e formas de estar muito distintas, trouxeram uma dinâmica muito peculiar a este lugar. “No início, não havia esta confusão de caixotes, não faz parte da nossa cultura esta balbúrdia”, considera o lojista. Não tem, contudo, esperança que o cenário mude. “Se a administração começasse a proibir os caixotes no meio dos corredores, isto fechava porque as pessoas iam embora, faz parte da cultura deles e não se iam sujeitar a mudar esses hábitos”, observa, ainda.
“Isto é um mundo totalmente à parte, mas é um centro calmo, gosto muito de estar aqui. Nos últimos anos, o que mudou foi a saída de alguns lojistas e o encerramento ao domingo. Há uma vida que não há em mais parte nenhuma”, explica Lídia Jorge, a administradora do Centro Comercial da Mouraria.
Apesar das transformações que o complexo comercial tem vindo a sofrer, fruto também da multiculturalidade característica do bairro histórico da Mouraria, Paulo Afonso diz que as alterações, em certa medida, foram para melhor. “Às vezes, tenho saudades da civilização, isto é uma confusão. Mas, por outro lado, agora temos mais clientes”, explica, enquanto enumera algumas peripécias recentes. “As casas de banho estão sempre muito sujas. Já vi um indiano a lavar o pé no lavatório e reparei que levam uma garrafa de água para lavar o rabo. Os chineses costumam lavar lá a loiça. É uma confusão”, conta.
Andande Popat, 24 anos, é da mesma opinião. “O que é mais estranho é mesmo as pessoas lavarem os pés e a cara nas casas de banho. Às vezes parece que estão a tomar um duche e mete-me um bocado de impressão porque, apesar de ser indiano, já nasci em Portugal e não estou habituado”, diz, entre risos. A mercearia onde trabalha foi aberta pelo avô há 18 anos. Neste momento, o pai de Popat é construtor civil em Rajkot, na India, e é o filho que está a dar continuidade ao negócio. Vende alimentos, especiarias e incensos produzidos na Índia que só se encontram mesmo aqui.
Alexandre Silva, 34 anos, é um cliente habitual da mercearia. “Faço uma alimentação muito específica e há produtos que só consigo encontrar aqui. Alguns já se vão vendo nas grandes superfícies comerciais, mas a preços muito mais caros”, conta. Popat diz não ter falta de clientes, o que se comprova pela dificuldade em manter uma conversa ininterrupta com o vendedor, tal é a quantidade de pessoas que rumam à loja.
Já Wang, 56 anos, natural de uma cidade pequena perto de Shanghai, na China, não está satisfeita com o negócio. “Já tivemos muitos mais clientes, há dias em que não aparece ninguém, só faço 20 euros por dia e pago 600 euros de renda. Já fecharam, também, muitas lojas no piso de cima”, diz a vendedora de bijuteria e algumas lembranças.
Apesar das diferenças culturais, os dois comerciantes, Popat e Wang, gostam de trabalhar na Mouraria e elogiam o ambiente de entreajuda que ali se vive. “Damo-nos todos bem, às vezes só custa mesmo entender a língua de outros países, totalmente diferente da nossa”, explica Popat. “Se precisamos de alguma coisa, ajudam-nos. Aquele lojista diz aos clientes dele para virem à minha loja, porque sabe que tenho vendido menos”, diz Wang, apontando para o comerciante instalado à sua frente.
Durante alguns anos e, até recentemente, corriam rumores de que o espaço podia cessar actividade, mas a administradora do Centro Comercial da Mouraria garante que tal cenário é “praticamente impossível”. “Há anos que se fala do fecho, mas, até ao momento, esse risco está fora de hipótese, porque se trata de uma propriedade horizontal. Basta um comerciante não querer sair daqui, que não se vende”, explica, adiantando, contudo, que não faltam pessoas interessadas. Algo que O Corvo testemunhou no dia em que falou com Lídia Jorge, quando a proprietária recebeu uma chamada telefónica de um potencial comprador.
“Uns só querem comprar o terraço, mas, a maioria quer adquirir o edifício inteiro. Toda a gente procura um terraço nesta cidade, Lisboa está a sofrer uma transformação muito grande e é deprimente o que está a acontecer à nossa volta”, lamenta, elogiando, contudo, a ideia de instalar um bar ou um restaurante no topo do edifício. “Dava outra vida e alegria ao nosso centro e talvez atraísse outro tipo de pessoas. Muitas ainda olham desconfiadas e têm medo de vir aqui, é pena”, conclui.