Sem tecto e sem saber lidar com a burocracia, há gente a viver ao relento junto ao Marquês de Pombal

REPORTAGEM
Samuel Alemão

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VIDA NA CIDADE

Avenidas Novas
Santo António

22 Março, 2019

Sob os vãos dos edifícios, mas também noutros recantos, de uma das mais centrais zonas da capital dormem pessoas com vidas desestruturadas e sem perceberem qual o caminho mais curto para saírem da rua. À espera de entrarem num apartamento municipal em Marvila, enquanto as obras de requalificação não terminam, Eduardo Simões e Paula Silva pernoitam ao frio, junto a um prédio entaipado. Ao lado, José Pires, um homem de 72 anos, destroçado pelo fim do casamento e doente pulmonar crónico, raramente deixa o aconchego do velho cobertor. Há ainda uma família com a trouxa às costas, enquanto não decide para onde ir a seguir. Todos concorreram a habitação social da câmara, embora em fases e com resultados diferentes. Retratos da miséria humana que passa quase desapercebida no vaivém dos funcionários dos escritórios.

A envergadura de Eduardo Simões, 40 anos, é quase tão grande quanto o novelo de problemas em que se tornou a sua vida, nos últimos anos. E, muito por causa disso, revela-se suficientemente volumosa para demover potenciais ameaças, quando à noite tenta dormir ao relento juntamente com a companheira, sob a arcada do rés-do-chão de um edifício entaipado, no número 5 da Rua Braancamp, a poucos metros da Praça Marquês de Pombal. “De vez em quando, há uns engraçadinhos que se metem connosco. Ainda no outro dia, um tipo levantou o cobertor com que nos cobríamos e, quando meti a cabeça de forma e ele percebeu o meu tamanho, fugiu”, conta este homem de constituição robusta e voz suave. Desde há duas semanas que ele e Paula Silva, 44, partilham um leito improvisado junto deste prédio de arquitectura modernista – a aguardar uma intervenção de requalificação que lhe conferirá o valor de mercado a condizer com a localização. Ao lado, noutros nichos improvisados, há mais quem pernoite na rua nesta zona no epicentro da vida económica da capital.

Eduardo e Paula estavam até há poucos dias, tal como outros, alojados ilegalmente no interior do edifício, mas foram forçados a sair e impedidos de lá voltar a entrar, depois de ter sido colocado um cadeado na porta lateral por onde entravam. Agora são forçados a permanecer no exterior. “A polícia veio cá e obrigou-nos a sair, embora os agentes tivessem reconhecido não causávamos problemas nenhuns. Eles disseram-nos que vieram devido às queixas dos hotéis das redondezas, que tinham medo que roubássemos os turistas”, conta Eduardo, enquanto enrola uma mortalha com tabaco. Ao seu lado, Ricardo Silva, 23 anos, cinco dos quais a viver na rua com a mãe e a mulher, após terem sido despejados de uma casa “ali para os lados do Coliseu dos Recreios”, acrescenta que, não fosse essa delação dos hotéis, nem teriam problemas de maior em manter-se no interior. “O dono do prédio veio aí um dia e até nos disse que preferia que estivéssemos por aqui, porque assim isto estava vigiado”, assegura o rapaz encorpado que apenas na semana passada se candidatou a uma habitação municipal.

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Doente e a dormir na rua, José Neves prefere não mostrar a cara

Ricardo, juntamente com a mãe, de 57 anos, e a mulher têm dormido sob o vão que serve de entrada de uma agência bancária situada no início da Avenida da Liberdade. Não se haviam inscrito mais cedo no concurso de atribuição de uma habitação social – onde obtiveram a “boa pontuação” de 122 no simulador online que estabelece o ranking de atribuição de casas camarárias, com base numa série de factores sócio-económicos – por desconhecimento, explicam. Ainda assim, tal avaliação permite-lhes acalentar esperanças bem maiores que as de José Pires, 72 anos, que O Corvo encontrou a dormir num “compartimento” ao lado do usado por Eduardo e Paula. Diagnosticado com doença pulmonar obstrutiva crónica tabágica, José também vive há cinco anos na rua. Desde que a relação matrimonial entrou em colapso. “A minha mulher trocou-me por outro”, conta, enquanto se mantém deitado e coberto por um velho cobertor. Foi-lhe conferida a pontuação de 94 no sistema camarário de atribuição de casa, o que se revelará aquém do necessário para que venha a ser contemplado com a chaves de uma habitação. A pensão de 430 euros é curta para alugar um quarto. “O que é que faço com isso?”, pergunta.


Já a história de Eduardo e de Paula revela contornos diferentes. A narrativa da vida de cada um tem a suas idiossincrasias, é certo, mas a deste casal assume-se como particularmente complexa. E dificilmente se deixa encapsular na constatação da linearidade da pontuação (120) de Paula no concurso de atribuição de um tecto pertencente ao parque habitacional da autarquia da capital. Portadora de uma deficiência cognitiva, esta mulher – que trabalhou 24 anos como empregada de limpeza – ficou a saber em 6 de Fevereiro que, na sequência da candidatura apresentada, lhe fora atribuído apartamento de tipologia T2, situado na Rua Bento Gonçalves, no Bairro do Armador, em Marvila. Mas para o qual apenas se poderia mudar com Eduardo e a filha Inês, com 17 anos e também ela padecendo de perturbação do desenvolvimento intelectual, após a realização das trabalhos de beneficiação do imóvel. “Eles dizem que a casa tem de sofrer obras, mas continuamos à espera que comecem e não sabemos quando estarão prontas”, diz Eduardo, beneficiário de um rendimento social de 189 euros, tal como a companheira, aliás.

 

 

Numa situação de grande fragilidade psíquica e dependência emocional, Paula tem demonstrado resistência em aceitar soluções de alojamento temporário que não contemplem a vida em comum com Eduardo. “Ela não quer viver longe de mim, não consegue”, diz Eduardo Simões. Razão pela qual ambos se encontram a viver na rua há cerca de quatro meses, após Paula e a filha Inês terem saído de um alojamento temporário, na zona da Rua de São Bento, providenciado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). “O senhorio disse que preferia receber turistas”, conta o electricista desempregado, que já viveu em barracas e ocupou ilegalmente casas da câmara. Enquanto o casal não recebe as chaves do apartamento municipal, Inês está a viver com o seu pai, na zona de Sintra – o que a obriga a levantar-se às seis da manhã para conseguir estar nas aulas de educação especial que frequenta na Escola Secundária Eça de Queirós, nos Olivais. Paula e Eduardo conheceram-se há cerca de um ano, quando ambos eram frequentadores da assistência alimentar providenciada, todas as noites, por uma instituição junto à Gare do Oriente. Agora, não conseguem viver separados.

 

 

Questionada por O Corvo sobre que solução poderá ser encontrada para este casal, enquanto não lhes são entregue as chaves do apartamento em Marvila, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) garante já ter desencadeado “os mecanismos para ser verificada a situação pela rede social, para encontrar solução temporária em termos de habitação ou outras medidas necessárias para a protecção destas pessoas”. O Corvo sabe que o pelouro da habitação estará a estará a realizar contactos com a Protecção Civil nesse sentido. Na resposta escrita enviada, ao final da tarde desta quinta-feira (21 de Março), a autarquia confirma a atribuição da casa na Rua Bento Gonçalves e diz que as obras na mesma estarão finalizadas no próximo mês. “A CML sabe que situação desta família estava, entretanto, a ser seguida por várias instituições de apoio social, não tendo chegado ao Município nenhum pedido de alojamento temporário ou de emergência deste casal até ao momento. Este contactou, por várias vezes, os serviços de habitação municipal para finalizar o processo de contrato”, esclarece.

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COMENTÁRIOS

  • Jose Barros
    Responder

    Como e possivel depois de todo o alarido do Presidente da Republica e Governo ainda haver tantos SEM ABRIGO a viver nestas condicoes!!!!?????

  • antonio severo
    Responder

    Aos cigano dão tudo e mais alguma coisa, é triste ver as coisas desta forma.

    • Jmpg
      Responder

      Não digas asneiras pá!
      Cala-te!🤬😡

  • Raquel Nascimento
    Responder

    Isto é uma vergonha.
    Vê-se o retrato da nossa sociedade e da podridão da CMLisboa, em que despreza completamente os pobres, os idosos, a população local, as pessoas honestas e trabalhadoras. Em benefício dos turistas, que não têm culpa nenhuma. Mas q passeam na cidade como ricos, p terem alojamento de luxo, á custa da expulsão de pessoas honestas q ali vivem há anos. (Alfama, por ex)
    O Fernando Medina chega a dizer na TV que só pode viver em Lx quem é rico. O que interessa é bloquear carros no time out, e encher os bolsos á CML.
    O problema não é o turismo, os turistas salvaram-nos da miséria.
    Quem pôs a população local na miséria foi a CML, o governo e a Assunção cristas qd mudou a lei das rendas.
    Vê-se a podridão a q a nossa cidade chegou, qd não há sentido de solidariedade nem protecção dos pobres.
    Nos países desenvolvidos, o tratar dos idosos e pobres é um sentido de dever, e honra.
    Aqui não há esse sentimento.
    Quem não tem € suficiente, é tratado como criminosos, e postos á margem da sociedade.
    Vejam lá como a Noruega ou Canadá tratam os pobres. Há um sentido de ajudar, de solidariedade, de protecção.
    Tenho vergonha de dizer q sou Lisboeta/Portuguesa, qd tratamos os q mais precisam assim.
    Isto está errado. Mto errado.
    Como é q quem tem poder, não faz nada sobre isto?!

  • Maria da Conceição Trindade
    Responder

    Não esquecer que na Rua Camilo Castelo Branco junto aos edificios da EDP existem vários sem abrigo na Duque Loulé na entrada do antigo BBVA está um casal, ela chama-se Sandra que está con graves problemas depressivo que agride verbalmente e fisicamente o seu companheiro, precisa urgentemente de ajuda, só não vê quem é cego, apelo aos organismos competentes que tomem medidas e ajudem esta gente

  • Fernando Maia
    Responder

    Para Mocambique mandam aviões com comida, militares, milhões em ajuda e para o povo Português que vive na misêria não há nada? Lindo GOVENO DE GERINGONÇA que temos, estou farto desta merda.

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