Vaga de saída de trabalhadores da Junta da Penha de França está a dar que falar
O novo mandato na autarquia liderada pela socialista Ana Sofia Dias trouxe uma onda de “dispensas” de funcionários. Entre recibos verdes e contratados, terão sido 24 os que deixaram de exercer as suas funções. Alguns trabalhavam ali há mais de uma década. Houve quem tivesse visto o vínculo laboral expirar na antevéspera das últimas autárquicas. “Estou desesperado, não sei o que fazer”, diz a O Corvo um jardineiro que trabalhava na junta há onze anos. Este, como outros ex-funcionários, garante que os responsáveis da junta terão dito que “não há dinheiro”. O PSD fala em despesismo. E toda a oposição pede explicações em uníssono. Tanto que se conseguiu um raro consenso na convocatória de uma sessão extraordinária da assembleia de freguesia, a realizar na noite desta segunda-feira (19 de fevereiro). A presidente da junta, porém, diz ser abusivo falar em dispensas. Isto porque os contratos “foram concretizados com acordo de ambas as partes e com o seu término definido logo à partida”, diz a O Corvo. E alguns dos trabalhadores, garante, terão saído, afinal, por vontade própria. Mas há quem fale em “purga”.
“Não compreendo o que se está a passar. Sempre fiz o que me disseram para fazer, sempre cumpri e cheguei a horas. Até vinha aos sábados e aos domingos, quando me pediam. Nunca respondi mal a ninguém”. Caído no desemprego, logo nos primeiros dias do ano, Firmino Santos, 47 anos, não sabe que rumo dar à sua vida. Ao ex-jardineiro – mas que “fazia de tudo um pouco” – da Junta de Freguesia da Penha de França disseram-lhe que tinha acabado o contrato de trabalho, pelo que já não seria mais necessário. Depois de 11 anos ao serviço da autarquia – seis dos quais em funções para a extinta Junta de Freguesia de São João, integrada na nova realidade administrativa desde 2013 –, num acumular de sucessivos contratos a termo, sente como se lhe tivessem tirado o tapete. “Estou desesperado, não sei o que vai acontecer agora”, assume o pai de três filhos menores. Como ele, outros receberam, nos últimos meses, indicações para não voltarem a apresentarem-se ao serviço. Alguns trabalhavam para a edilidade há mais de uma década.
O número exacto de trabalhadores dispensados tem sido alvo de disputa – a oposição fala num conjunto de pessoas oscilando entre a dúzia e as três dezenas, enquanto a junta diz serem 24 –, mas há mesmo quem, sob anonimato, fale numa “grande purga”. Isto porque, se há registo de casos semelhantes noutras juntas, a dimensão do que se tem vindo a passar na Penha de França não terá paralelo. O caso está a causar tanto desconforto na freguesia que conseguiu mesmo a união de todas as forças políticas da oposição no questionar do executivo sobre as reais razões dos despedimentos. PSD, PCP, BE, CDS-PP e PAN juntaram-se no requerimento na origem da convocatória da sessão extraordinária da assembleia de freguesia a realizar na noite desta segunda-feira (19 de fevereiro). Da ordem de trabalhos fazem parte o pedido de “esclarecimentos”, mas também a “implementação de um processo de regularização de todos os vínculos precários” existentes na junta, com recurso ao Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários do Estado (PREVPAP) agora em curso.
Esse é também o objectivo do Sindicato dos Trabalhadores do Município de Lisboa (STML), que confessa preocupação com o que está a suceder naquela autarquia da capital. “Há vários trabalhadores que estão a ser dispensado sem razão aparente e, da nossa forma de ver, de forma errada. Temos diversos casos de falsos recibos verdes, situações que deviam ser regularizadas, mas acontece estarem a ser despedidos. Não se percebe esta forma de actuar. Antes, a junta queixava-se que não podia integrar os precários, e agora que têm a oportunidade de fazê-lo, através do PREVAP, não aproveitam”, critica José Vítor Dias, responsável sindical por aquela área territorial e que estima o número de dispensados “entre dez e doze” – mas o PSD fala em 27. O sindicalista, que pediu uma reunião urgente à presidente da Junta de Freguesia da Penha de França, Ana Sofia Dias (PS), diz não fazer sentido a justificação de falta de dinheiro, pois “a descentralização de competências da câmara para as juntas foi acompanhada do respectivo envelope financeiro”.
Tal não terá, contudo, servido de argumento suficiente para evitar a actual vaga de dispensas. “Comunicaram-me que não precisavam mais dos nossos serviços, disseram que não tinham dinheiro para nos pagar”, conta a O Corvo o antigo cantoneiro Luís Machado, 44 anos. O seu contrato cessou a 31 de dezembro último, após vinte meses “a trabalhar com amor à camisola”. Luís, morador do Bairro da Curraleira entrara ao serviço da junta de freguesia, após uma errância que incluiu problemas com a justiça. “Queria dar aos meus filhos condições suficientes para não lhes acontecer o mesmo que a mim. Mas isto cortou essa possibilidade”, afirma, antes de garantir que, em quase dois anos de serviço, “nunca deixou um cantão de limpeza por acabar”. A notícia do despedimento chegou dois dias depois de ter recebido ordem de despejo da sua casa. “Foi o pior Natal da minha vida”. Agora, a viver em casa de familiares, profetiza: “Fui dispensado e não tive direito a nada. Com esta idade, e com o meu percurso, o que vou agora fazer? Se calhar, vou ter de voltar ao crime”.
Também José Monteiro, de 36 anos, sente ter sido esquecido pela autarquia pelo qual envergou o fardamento de cantoneiro por apenas três meses. Foi contratado no início do verão passado, no período pré-eleitoral. Mas na sexta-feira anterior às últimas eleições autárquicas – realizadas a 1 de outubro de 2017 -, José foi dispensado. “Nos três meses anteriores às eleições, as ruas da freguesia estavam mais limpas do que agora”, assegura o ex-funcionário, agora amargurado pela má escolha que diz ter feito ao aceitar a proposta para trabalhar na junta. É que, ao fazê-lo, teve de pôr de parte uma oferta para uma formação que lhe abriria portas na fábrica automóvel Auto-Europa. “Tinha trabalho lá, mas não fui por causa disto, até por ser ao pé de casa. Se calhar, perdi uma oportunidade de uma vida”, diz, voz a denunciar angústia.
Diferente das restantes, mas igual no tratamento, é a situação de João Ferrador, 50 anos. O actor e encenador criou, em 2002, as Oficinas de Teatro da Penha de França, na altura sob a tutela institucional e financeira da então existente Junta de Freguesia de São João. Projecto com especial pendor para a integração social através da arte, rapidamente granjeou popularidade na comunidade. “Funcionava lindamente. Neste momento, tínhamos 23 alunos, todos muito motivados”, conta a O Corvo o responsável pelos ateliês de expressão dramática que eram já uma imagem de marca daquela autarquia. Até que a 4 de janeiro tudo mudou. Os alunos receberam um email da vogal da cultura da junta a informar que as oficinas se encontravam suspensas até novas indicações”. Depois de 15 anos a ganhar salário fixo, a recibos verdes, João recebeu uma proposta, em novembro passado, de passar a receber apenas 70% do valor pago pelos frequentadores das aulas. Tendo recusado, a resposta chegou algumas semanas depois.
O encenador, que diz ter notado um gradual decréscimo do interesse do executivo pelo trabalho realizado no projecto, tem dificuldades em perceber a razão por trás do seu afastamento. “Fala-se em questões financeiras, mas nós fomos recebendo cada vez menos dinheiro”, afirma. E não recusa fazer interpretações políticas sobre o caso. “O projecto foi criado numa altura, em 2002, em que a junta de São João era do PS, mas nós recebemos o nosso maior apoio, quando quem liderava era o PSD. Quando o executivo mudou outra vez para o PS, estranhamente, a anterior presidente chegou a dizer-me que se gastava muito dinheiro com o teatro”. Neste momento, as oficinas estão suspensas. E os alunos “revoltadíssimos”, diz João Ferrador. Uma petição pela manutenção em funções do profissional salienta, para além da longevidade das mesmas, “o número crescente de inscritos, provenientes de diferentes freguesias da cidade e mesmo residentes na periferia”.
A alegada falta de dinheiro para pagar a todos os funcionários é um argumento que toda a oposição deseja ver esclarecida na assembleia desta segunda-feira. “Queremos ouvir explicações da presidente da junta. Mas não deixamos de registar estes despedimentos em massa, desde as últimas eleições. Duas ou três pessoas, na verdade, até foram dispensadas nas vésperas. Estamos a falar de um despedimento colectivo encapotado por despedimentos individuais. Ora, isto acontece depois de termos avisado para o muito dinheiro desbaratado pela junta no anterior mandato”, acusa Afonso Costa (PSD), que foi presidente da Junta de São João entre 2005 e 2009. “Não foi por falta de aviso. Gastaram muito dinheiro em obras muito inflacionadas”, continua.
O social-democrata diz ainda não compreender a justificação do despedimento de alguns trabalhadores com contrato a tempo certo, há anos ao serviço da junta, relacionada com a alegada ilegalidade do vínculo. “Mas só agora é que estão ilegais?”, questiona. Afonso Costa critica o que considera ser a falta de uma explicação cabal. “Esta presidente está há dois anos no cargo. E, das duas uma: ou aqueles trabalhadores estiveram dois anos em funções, com contratos ilegais, ou então o que se está a fazer agora é um despedimento sem justa causa”. O representante da bancada laranja diz ainda que se torna ainda mais difícil perceber a dispensa dos funcionários, alegadamente devido a questões financeiras, quando o quadro de pessoal está por preencher. Mais, no mandato anterior, terão sido criados três cargos de chefe de divisão, cuja massa salarial acarreterá para a junta uma despeja mensal a rondar os 170 mil euros.
Também Rui Seixas, um dos dois representantes do Bloco de Esquerda na assembleia, confessa não perceber as alegações de que não haverá disponibilidade financeira para manter os trabalhadores dispensados. “Alguns dos trabalhadores agora despedidos vieram para a junta ao abrigo da descentralização de competências por parte da CML. E ela vinha acompanhada das respectivas verbas”, diz o eleito. Além disso, Rui Seixas comunga das muitas dúvidas que se vão acumulando sobre a forma como o processo decorreu. “Começámos a ouvir rumores sobre esta situação a partir de dezembro último. A presidente diz-nos que tudo aconteceu dentro da legalidade e que os trabalhadores foram pelo seu pé, quiseram sair. Ora, aquilo que ouvimos por parte dos trabalhadores não corresponde a tal cenário”, diz o bloquista, que contabiliza 25 pessoas afastadas de funções neste processo.
Um número mais próximo daquele que Ana Sofia Dias adianta a O Corvo. Em resposta escrita, a presidente da Junta de Freguesia da Penha de França diz que deixaram de trabalhar para a autarquia “24 colaboradores, oito por iniciativa própria, que tiveram todos os seus direitos respeitados na íntegra”. “Foi uma decisão do novo executivo autárquico e em alguns casos a pedidos dos próprios”, assegura. Questionada sobre as razões da dispensa de cantoneiros e de jardineiros, responde: “É abusivo dizer que a Junta de Freguesia dispensou colaboradores. Estamos a falar de contratos que foram concretizados com acordo de ambas as partes e com o seu término definido logo à partida. Nos contratos que agora terminaram encontram-se elementos com funções técnicas e outros com funções de confiança política”. Sobre a possibilidade de integrar os ex-funcionários através do PREVAP, a autarca diz que serão notificadas, para se apresentarem aos “concursos para ocupação dos postos de trabalho correspondentes às necessidades permanentes reconhecidas pelo executivo”, as pessoas que reúnam os “requisitos previstos” de acordo com a legislação.
Interrogada ainda por O Corvo sobre os motivos da cessação de funções do encenador João Ferrador, responsável pelas Oficinas de Teatro, a presidente da junta diz que a autarquia “não pode nem deve falar de casos concretos por questões de respeito pelos envolvidos”. E sobre as alegadas dificuldades financeiras da junta, que terão sido comunicadas aos dispensados? São verdadeiras? “Não. Essa afirmação é falsa. O relatório da sociedade revisora oficial de contas apresentado na última sessão da Assembleia de Freguesia (de 19 de dezembro de 2017) demonstra exactamente o contrário”. Confrontada ainda com a acusação, por parte do PSD, de um “esbanjamento de dinheiro” como a origem desse alegado problema de tesouraria, Ana Sofia Dias sugere que a mesma se inscreve num quadro de “guerras partidárias” e “declarações não suportadas em factos concretos”. E promete: “A Junta de Freguesia da Penha de França vai continuar a utilizar os seus recursos na defesa do bem estar das suas populações”.