Tráfico de droga e violência comprometem reabilitação efectiva da zona do Intendente

REPORTAGEM
Samuel Alemão

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VIDA NA CIDADE

Arroios

19 Janeiro, 2017


Um dos maiores sucessos de António Costa como presidente da Câmara Municipal de Lisboa foi o início da regeneração do Intendente. Que está agora a ser posta em causa. O tráfico e consumo de droga, a violência e a prostituição voltaram a ter protagonismo. A saída, em abril de 2014, do gabinete de Costa do Largo do Intendente, onde esteve durante três anos, é por muitos vista como ponto de retrocesso. Na Rua dos Anjos, a venda de cocaína faz-se a céu aberto. E intensificou-se desde o início do verão passado. Há quem relacione o fenómeno com a realização das obras no Cais do Sodré. Moradores e comerciantes pedem medidas concretas para travar a decadência.

“As coisas não podem continuar assim. O ambiente está cada vez mais degradado. Os dealers, os toxicodependentes e as prostitutas, que sempre existiram nesta zona, começaram a crescer a olhos vistos, nos últimos meses. Não é isto que queremos para aqui, mas precisamente o oposto”, profere Bruno Assunção, num português com entoação francesa e a denotar irritação. Ele é um dos dois gerentes do café-restaurante Sabor K Intende, situado no 5b da Rua dos Anjos, no troço final do arruamento que começa no Largo de Santa Bárbara e desagua no Largo do Intendente. A meio da tarde de um frio dia de semana, sentado numa das mesas do estabelecimento aberto, no início do verão passado, com Filipa Santos, vai desfiando um rosário de queixas. Não era disto que Bruno estava à espera, quando decidiu trocar Paris por Lisboa.

O luso-descendente veio para a capital portuguesa por sentir que algo de importante estava aqui a acontecer. Queria participar do clima de optimismo nascido da euforia turística e de regeneração urbana em curso. Ainda para mais, tendo aqui as suas raízes familiares. E olhou para a zona do Intendente, uma das mais icónicas evidências da mudança dos últimos anos, como local ideal para assentar. Deixou-se entusiasmar pelos resultados do processo, iniciado em 2011, pelo então presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML), António Costa, de revitalização de uma área da cidade há muitas décadas ensombrada pela degradação urbanística e pela marginalização social. Mas observa, agora, com preocupação o robustecimento dos sintomas dessa decadência, que julgava a caminho do fim. “O ambiente tem-se vindo a degradar muito”, diz o empresário. E ele não está só nas queixas.

Depois dos três anos, entre abril de 2011 e abril de 2014, marcados pela presença do gabinete de António Costa no Largo do Intendente – acompanhando de modo simbólico o início do processo de reabilitação do bairro e da vizinha Mouraria, situada a jusante – e do forte investimento público realizado na zona, os resultados da terapia de choque começavam a fazer sentir-se. Relacionada com o início da dinâmica de forte crescimento da actividade turística e, mais tarde, com a retoma do mercado imobiliário, a revitalização daquela área da cidade começou a contagiar, gradualmente, todo o eixo da Avenida Almirante Reis. A movida nocturna e a regeneração comercial, entretanto desencadeadas com a nova dinâmica, fizeram-se acompanhar do anúncio de muitos investimentos para a reabilitação do, ainda muito degradado, edificado ali existente. Pensava-se, pois, que a droga e a prostituição teriam os dias contados naquela zona.

O ímpeto transformador – lançado no início desta década, pelo então futuro primeiro-ministro, com a ajuda dos fundos comunitários reunidos através do programa QREN Mouraria – traduzia-se não apenas em obras no espaço público, mas também através do Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria. Um instrumento de coesão social, iniciado ainda no final de 2010 e responsável por um vasto conjunto de medidas, para melhorar a qualidade de vida e a integração das populações. Em simultâneo, começavam a ser lançados projetos que complementavam a renovação daquela área. Como o da transformação do antigo Hospital do Desterro em pólo criativo e habitacional – ainda por cumprir, como noticiado ontem por O Corvo. Concretizada, no verão de 2014, foi a obra de reabilitação do espaço público do troço final da Rua dos Anjos, lançada nos últimos dias de 2013. É onde se se situa o Sabor K Intende.

Em Novembro de 2014, O Corvo dava conta dos desafios que se colocavam naquela zona. E escrevia: “A regeneração do Intendente é a obra de que António Costa mais se orgulha. Centrada no largo, tem tentado forjar uma nova dinâmica nas ruas adjacentes. Há, porém, quem tema que a manutenção do clima de insegurança, associado ao tráfico e ao consumo de droga na recentemente recuperada Rua dos Anjos possa deitar tudo a perder. Mas também existe quem receie que a câmara queira “limpar o terreno”. Passados mais de dois anos sobre o expressar de tal receio, o cenário mais pessimista parece estar a cumprir-se. “Infelizmente, assistimos a um progressivo aumento da sensação de insegurança. Temos vizinhos idosos que têm medo de sair à rua, resultado da violência e da degradação que podemos sentir todos os dias”, denuncia Bruno Assunção, que em dezembro passado lançou uma recolha de assinaturas a denunciar a situação e a pedir medidas concretas ao poderes públicos.

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O empresário assegura que muitos traficantes e consumidores de drogas se mudaram para ali, por causa das obras em curso na zona do Cais do Sodré. “Estamos fartos dos desacatos, dos traficantes. Gostávamos que as autoridades percebessem o que se está aqui a passar”, desabafa o empresário, que tinha esperança no cumprimento da expectativa, criada em 2014, a de que “este troço da Rua dos Anjos funcionasse com uma extensão do Largo do Intendente”. E que, por isso, beneficiasse também do embalo regenerador ali criado. Para que ele seja cumprido, Bruno defende o encerramento ao trânsito daquela parte da Rua do Anjos e também na Travessa do Forno ao Anjos, exceptuando moradores, serviços públicos, cargas e descargas. Algo que conferiria à área um novo perfil urbano, mais benéfico para o comércio e os residentes, defende.

Ao invés, o que se observa, neste momento, além do trânsito automóvel, é um espaço público tomado por traficantes, consumidores de estupefacientes e jogo ilegal – tudo pontuado por recorrentes cenas de pancadaria. “As coisas pareciam ter melhorado, mas voltaram a piorar nos últimos tempos. Há mais prostituição, mais zaragatas”, constata Luís Seabra, escritor e pianista, enquanto liga o computador portátil para mais uma jornada de trabalho à mesa do Sabores K Intende, de que é cliente quase desde a primeira hora. Luís lamenta que o bom trabalho realizado na revitalização deste bairro do coração da capital esteja a ser posto em causa desta forma. “A polícia assiste a isto, está cá todos os dias, podia ter uma acção mais firme. Não se percebe a inércia”, comenta, alertando para o perigo de este quadro poder afastar alguns dos estrangeiros com recursos económicos recém-chegados à zona, e atraídos pela dinâmica cultural dos últimos anos.

Algo de que se queixa também David de Sousa, detentor das nacionalidades sul-africana e namibiana, mas descendente de portugueses. “Isto está a ficar fora de controlo. Sinto que tem piorado. Há cada vez mais toxicodependentes e prostituição, mas sobretudo uma forte sensação de insegurança. Já assistimos aqui a cenas de confronto com facas e garrafas”, queixa-se, num inglês com sotaque sul-africano, o arquitecto convertido em empresário de alojamento turístico. Juntamente com a namorada portuguesa – razão pela qual veio para Lisboa, em 2015 -, explora dois apartamentos na Travessa do Forno dos Anjos. “Sei onde me instalei, não vim ao engano. Conheço o historial do bairro, aprecio a sua diversidade cultural e respeito as pessoas que cá vivem, mas acho que a situação está a ficar muito feia. Onde está a fronteira para o que é aceitável?”, questiona, antes de lembrar que, tendo vivido em Pretória, até está habituado a conviver com violência e insegurança.

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David de Sousa quer viver numa zona onde não precise de se preocupar com o que se passa sob a sua varanda, como sucede atualmente. “Nem sequer é por mim, não tenho medo. Vivia na África do Sul. É mesmo por causa das pessoas desta comunidade, de que gosto muito”, afirma, embora admita que os problemas de que se queixa tenham óbvio impacto no seu negócio. “Até temos bons ratings dos clientes que escolhem os nossos apartamentos. Mas há muitos que, quando chegam e percebem onde vieram parar, optam por se ir embora, porque não gostam nada do que observam à sua volta”, relata, com desalento, o jovem empresário. David queixa-se também da “falta de limpeza”, elemento a contribuir para o disseminar de uma crescente sensação de decadência. Imagem de que, apesar de tudo, o Intendente se estava a livrar nos últimos tempos.

O sentimento de que o ambiente pouco salutar de outrora está de volta e a ameaçar a admirável evolução dos últimos anos é voz corrente por ali. “Nunca tivemos problemas, mas há duas semanas houve uma cena de tensão dentro do estabelecimento, com tipos que estavam a arranjar confusão e não queriam pagar”, relata a funcionária de um café situado no Largo do Intendente. Já José Santos, 47 anos, morador há ano e meio na Rua do Anjos, descreve um quotidiano de “pancadaria e tráfico de droga”. Trata-se, sobretudo, de cocaína. Há quem a venda logo pelas 10 da manhã. Mas, naquela rua e nas adjacentes, só a partir das 16h se torna mais visível a gente que ali vai consumir “coca” e um dos seus derivados, o “crack”. Algo comprovado pela profusão de cachimbos no chão, nota Maria, moradora de 66 anos. “Desde que o gabinete do António Costa saiu daqui, as coisas pioraram. Há menos polícias e motoristas”, interpreta.

Quando, num destes dias, David de Sousa se queixou a um dos polícias – regra geral, parte de uma patrulha mista formada por agentes da PSP e da Polícia Municipal – sobre o clima de insegurança ali pressentido, um deles ter-lhe-á dito: “Escolheu mal o bairro para onde veio viver”. Algo que o deixa desapontado, admite. O mesmo sente Bruno Assunção, que se mostra muito crítico do que qualifica como “inação das autoridades”. Razão pela qual, na recolha de assinaturas que lançou, reclama “um policiamento eficaz que previna o tráfico de drogas duras que ocorre na rua a céu aberto e uma acção social humanista para toxicodependentes, com ajuda psicológica e sala de consumo”. Na petição dirigida à CML e à Assembleia Municipal de Lisboa, apela ainda à “revitalização do lote devoluto (correspondente ao número 10) com a criação de um jardim infantil e horta-pomar comunitária”. Uma aspiração antiga de diversos moradores e comerciantes da zona que, todavia, é já certo, não poderá ser concretizada.

Isto porque no lugar do referido lote onde, em abril de 2014, se procedeu à demolição de um imóvel que há muito se encontrava em ruína, nascerá um outro imóvel. A informação foi dada ao Corvo por Margarida Martins (PS), presidente da Junta de Freguesia de Arroios, referindo que o novo prédio se destinará a habitação e não para turismo. Sobre a mencionada pretensão de construção de um parque infantil e jardim no local, a autarca disse nada poder ser feito, por o terreno em causa “não ser devoluto, mas sim privado, de uma família”. Margarida Martins reconhece os problemas de segurança e marginalidade naquela área. “Temos solicitado o empenho das autoridades policiais, a quem transmitimos a situação. Não tenho competência legal para gerir isto sozinha”, afirma, salientando que já pôs ao corrente do quadro ali presenciado a CML, nomeadamente o presidente e o vereador Carlos Castro, com o pelouro da segurança. A presidente da junta – que solicitou video-vigilância para o local – diz ainda não ser possível cortar o trânsito automóvel na Rua dos Anjos, por ser vital para o esquema de circulação viária da zona.

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O assunto está longe de ser novidade para a câmara, uma vez que foi mesmo motivo de debate na reunião descentralizada de executivo realizada a 7 de setembro último. Quando interpelado sobre o assunto por uma munícipe, Fernando Medina reconheceu ser necessário “consolidar” e “ampliar” o processo de transformação em curso no Intendente, nos últimos anos. “Alguns dos fenómenos descritos não foram erradicados da zona, alguns nem se deslocaram muito. O processo de qualificação da zona tem de ser contínuo, quase prédio-a-prédio, espaço-a-espaço”, disse na altura. Já o vereador Carlos Castro admitiu também a existência de problemas, sobretudo na Rua dos Anjos.

O autarca deu mesmo o exemplo deste arruamento, em contraponto com o que considerou o sucesso da operação de estabilização da Rua do Benformoso – que faz a ligação entre o Largo do Intendente e o Martim Moniz. Ambas as ruas eram, segundo o titular da pasta da segurança, “dois focos problemáticos” por alturas do verão de 2015. Mas a intervenção policial terá conseguido na Rua do Benformoso aquilo que tarda em alcançar na Rua do Anjos. Nesta, a conjuntura ter-se-á mesmo complicado a partir de junho de 2016, com “um conjunto de situações nada abonatórias para a qualidade do espaço público”, segundo Carlos Castro. Tal terá levado a CML a pedir, no início de agosto passado, o reforço da actuação à PSP. Em simultâneo, ocorreram entretanto diversas ações conjuntas da Polícia Municipal com a ASAE e a Autoridade Tributária.

“Teremos de continuar a fazer este trabalho com as diversas entidades, no sentido de a Rua dos Anjos ter o mesmo destino que teve a Rua do Benformoso. Não é fácil, não é simples, mas quer a Polícia Municipal, quer a PSP estão atentas e a intervir no local”, assegurou Carlos Castro, na referida reunião descentralizada de executivo camarário, em setembro passado.

* Nota Redactorial: Editado às 10h00, de 19 de janeiro, clarificando as declarações da presidente da junta.

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