Prédio no Poço do Bispo está à venda como devoluto, mas tem 17 inquilinos

REPORTAGEM
Sofia Cristino

Texto

URBANISMO

VIDA NA CIDADE

Marvila

20 Julho, 2018

Os residentes de um imóvel antigo de Marvila foram informados pelo senhorio que o prédio onde viveram toda a vida ia ser vendido. Em menos de uma semana, o edifício foi adquirido pelo valor de 2,7 milhões de euros, por duas empresas imobiliárias, e, um mês depois, estava novamente à venda por 7 milhões de euros no site de uma empresa imobiliária. O que está a indignar mais os moradores é, contudo, este estar a ser vendido como “devoluto”, quando está habitado. As obras de remodelação começaram em Março passado e, desde aí, a porta de entrada fica aberta toda a noite. Dizem, por isso, não dormirem descansados e estarem a sofrer de bullying. “Nem durmo bem a pensar que qualquer pessoa pode entrar. Isto é uma vergonha”, diz uma moradora. Os inquilinos queixam-se de não serem ouvidos pelo senhorio e exigem serem tratados com dignidade e ficarem nas suas casas.

Quem entra no prédio número 24 da Rua do Açúcar, no Poço do Bispo, na freguesia de Marvila, demora algum tempo a perceber que está num edifício habitável. Há materiais de construção, vigas de madeira e portas soltas espalhadas pelos corredores. “Isto parece uma autêntica casa de terror, querem assustar-nos. Estão a tratar-nos como se não existíssemos. Não somos ninguém, somos devolutos”, diz Irene Almeida, 77 anos, com uma certa ironia, referindo-se a ela e aos restantes dezassete inquilinos que a 10 de Outubro de 2017 receberam uma carta da North Atlantic Trading Company, proprietária do imóvel na altura, a informar a intenção de venda do prédio por 2.700.000 euros. Os moradores, dizia a missiva, podiam exercer o direito de preferência no acto da compra, mas deveriam fazê-lo no prazo de oito dias.

 

A Buy2Sale e a Preciousgravity, duas empresas imobiliárias, compraram o imóvel, a 20 de Outubro de 2017. E começaram a fazer obras, sem darem conhecimento aos inquilinos. Esta empreitada ficou, contudo, “a meio” e o imóvel encontra-se novamente à venda por 7 milhões e 200 mil euros. Os moradores acreditam que ali será construído um condomínio de luxo ou um hotel de apartamentos, pelo que observam das obras entretanto realizadas. A forma como dividiram as casas desabitadas, com placas de madeira, deixa adivinhar que ali vai surgir um duplex. “Cada casa vai ser dividida em duas e, em vez de 42 habitações, o novo imóvel terá o dobro, ou seja, 84 casas. É um bom negócio”, diz Eduardo Rodrigues, 64 anos, a viver com a mulher e o filho. “Quem comprou o prédio não sabia o que ia encontrar aqui, arrependeram-se”, acrescenta António Faria, 76 anos, a viver ali desde que nasceu.

Após a primeira transacção, logo a 13 de Novembro de 2017, e para surpresa dos inquilinos, a imobiliária Predial Liz colocou um anúncio de venda do prédio, por sete milhões e 200 mil euros. Na descrição, pode ler-se que se trata de um “fantástico edifício de traça antiga vendido devoluto com vista para o rio em Braço de Prata”, “para remodelação” e “com grande potencial”. Uns meses depois, surgiam novos anúncios, no site OLX, nos quais é novamente apresentado como “um prédio de traça antiga e devoluto com vista para o rio”. O imóvel é composto por 42 fogos habitacionais e, apesar de 25 já não estarem ocupados, ainda há dezassete casas habitadas e cerca de 45 pessoas a morar ali. “Devoluto? E nós? Somos invisíveis? Isto é uma fraude”, acusa Eduardo Rodrigues. “Identificarem-no como devoluto já é muito grave, mas o pior é que devíamos ter recebido uma carta a saber quem adquiriu o prédio e com quem deveríamos falar futuramente, para encontrarmos uma solução. Mas ainda não recebemos. Estamos às escuras”, acrescenta.

dav

Um prédio que desperta interesses imobiliários, mesmo com gente lá dentro

Por esse motivo, o reformado da Policia de Segurança Pública (PSP) dirigiu-se à Conservatória do Registo Predial para saber quem era, afinal, o novo proprietário do imóvel onde reside há 34 anos. As empresas imobiliárias Buy2Sale e Preciousgravity surgem como as novas detentoras do imóvel. No registo pode ler-se ainda que existe “uma hipoteca voluntária de um milhão e meio de euros”. Em 2013, o prédio foi alvo de uma vistoria pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), tendo-se chegado à conclusão que precisa de “obras profundas”. “Talvez não soubessem disso e, por isso, têm esta hipoteca”, sugere Eduardo. “Um dia, apareceu aqui um homem a dizer que comprou o prédio e agora era o dono disto. Não quis conversar connosco e ainda nos ameaçou para não contarmos a ninguém o que está a acontecer”, diz António Faria.


A 2 de Julho de 2018, os inquilinos recebiam uma nova carta, desta vez mais “duvidosa”, dizem. A missiva veio sem assinatura e solicitava que os moradores se candidatem a casas da Câmara de Lisboa. “De forma a registarmos a sua candidatura à habitação municipal, juntamos em anexo formulário que deverá preencher e devolver juntamente com cópia dos documentos de identificação de todos os elementos do seu agregado familiar, bem como os comprovativos dos rendimentos mensais de cada um dos elementos que aufere rendimento, para a Rua Duque de Palmela nº 25 – 3º andar, 1250-097 Lisboa, até ao dia 9 de Julho de 2018”, lê-se na carta. “Veja-se só a ilegalidade que para aqui vai, pedem documentos pessoais e não assinam. Nós não estamos a dormir debaixo da ponte, temos casa e pagamos renda, não queremos acesso a casas da Câmara de Lisboa”, diz, indignado, Eduardo Rodrigues.

 

 

Um dos inquilinos chegou a deslocar-se à morada onde estava sediada a antiga senhoria, a North Atlantic Trading Company, mas no escritório disseram-lhe que a empresa já não estava instalada lá. Em Março passado, explica António Faria, foi quando “o terror começou”. “Abrimos a porta de nossas casas e demos de cara com as obras. Começaram a partir as portas das casas desocupadas e a reabilitá-las. Tiraram os alicerces. O pior foi mudarem a fechadura da entrada principal. Não nos deram as chaves nem nos querem dar, e sentimos uma grande insegurança”, explica. Maria Alice Gomes, 77 anos, conta que a neta, com 26 anos, tem medo de entrar no prédio à noite. “Nem durmo bem a pensar que qualquer pessoa pode entrar. Isto é uma vergonha. Acham que isto é para deitar abaixo?”, questiona, enquanto vai mostrando a casa, onde investiu “muito dinheiro” na construção de móveis à medida. “Andam a partir tudo. Queria comprar um sofá novo, mas agora é melhor esperar. Há muito pó, não se respira bem, já ando a ser acompanhada por um psicólogo. O que estão a fazer é desumano”, diz de olhar triste a septuagenária. Os seus filhos, de 48 e 52 anos, moram ao lado, com os filhos deles, sendo dois menores.

 

 

“Vieram aí uns miúdos tirar fotografias e, quando perguntámos quem eram, disseram que não estavam autorizados a dizer”, conta ainda Maria Alice Gomes. “Perguntamos quem são e não nos dizem ou que não têm ordens para dizer. Isto não é um passeio, nem um lugar público, temos direito a saber”, critica também António Faria. Eduardo Rodrigues conta que, recentemente, teve de retirar dois colchões de dentro do prédio, onde estavam a dormir dois sem-abrigo. “Isto está terrivelmente perigoso. Se fazem uma fogueira, o prédio arde todo. À noite, vêem-se ratos e baratas, não há luz, é assustador entrar aqui. Deixam a porta aberta para nos intimidarem e fazerem-nos sentir mal. Isto é bullying, querem ver se nos vencem pelo cansaço”, conta ainda.

 

Os dezassete inquilinos da Rua do Açúcar, a maioria com idades entre os 60 e os 90 anos, querem continuar a viver em sua casa e não aceitam indeminizações como as que já foram dadas a dois habitantes. “Estavam aqui pessoas há 30 e 50 anos e receberam indeminizações de 5 mil euros e 15 mil euros. Eles já estavam no lar, a casa é que ainda estava em nome deles, por isso deve ter sido mais fácil negociar. Connosco, que estamos aqui a viver, não falaram. À inquilina mais velha, com 91 anos, disseram-lhe para ir para um lar”, conta Eduardo Rodrigues. Os inquilinos dizem já ter contactado a Junta de Freguesia de Marvila mas, até ao momento, não lhes foram apresentadas soluções.

 

“Disseram que iam falar connosco, mas não falaram, é um sentimento de impunidade. Mesmo que me dessem 60 ou 70 mil euros, que não vão dar, como está o mercado imobiliário não chega. Vou continuar a levantar a minha voz para defender um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, o direito à habitação”, garante Eduardo. “Marvila e Beato estão muito na moda, daqui a uns anos, vai ser a segunda ‘Expo 98’. Esta zona vai valorizar muito e é bom que valorize, mas com respeito pelos inquilinos e sem especulação imobiliária. Isto era um prédio de família, viveram aqui os nossos avós e pais, queremos a nossa casa”, diz ainda Irene Almeida, enquanto sai para fazer as compras para o almoço.

 

O Corvo tentou encontrar os contactos das duas imobilárias proprietárias do imóvel, para saber a sua versão dos factos, mas não o conseguiu obter em tempo útil da publicação deste artigo.

MAIS REPORTAGEM

COMENTÁRIOS

O Corvo nasce da constatação de que cada vez se produz menos noticiário local. A crise da imprensa tem a ver com esse afastamento dos media relativamente às questões da cidadania quotidiana.

O Corvo pratica jornalismo independente e desvinculado de interesses particulares, sejam eles políticos, religiosos, comerciais ou de qualquer outro género.

Em paralelo, se as tecnologias cada vez mais o permitem, cada vez menos os cidadãos são chamados a pronunciar-se e a intervir na resolução dos problemas que enfrentam.

Gostaríamos de contar com a participação, o apoio e a crítica dos lisboetas que não se sentem indiferentes ao destino da sua cidade.

Samuel Alemão
s.alemao@ocorvo.pt
Director editorial e redacção

Daniel Toledo Monsonís
d.toledo@ocorvo.pt
Director executivo

Sofia Cristino
Redacção

Mário Cameira
Infografias & Fotografia

Paula Ferreira
Fotografía

Catarina Lente
Dep. gráfico & website

Lucas Muller
Redes e análises

ERC: 126586
(Entidade Reguladora Para a Comunicação Social)

O Corvinho do Sítio de Lisboa, Lda
NIF: 514555475
Rua do Loreto, 13, 1º Dto. Lisboa
infocorvo@gmail.com

Fala conosco!

Faça aqui a sua pesquisa

Send this to a friend