Crianças de escola básica em Campo de Ourique com falta de funcionários sujeitas a clima de intimidação

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Sofia Cristino

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VIDA NA CIDADE

Campo de Ourique

28 Fevereiro, 2019

Na Escola Básica 1 de Santo Condestável, duas centenas de alunos são vigiadas apenas por duas funcionárias. Há momentos em que não terão nenhum adulto a olhar por eles, queixam-se os pais. Nesses períodos, acontecem episódios de violência entre os estudantes, mas também entre alguns encarregados de educação. A rotatividade dos professores é outro dos problemas. Crianças do 1º ano tiveram três docentes só num ano. “Tento explicar ao meu filho que isto não é normal, mas é difícil ele perceber quando assiste a esta realidade tantas vezes”, lamenta uma encarregada de educação. O presidente da associação de pais diz que os miúdos “infelizmente, estão entregues a si mesmos”. A Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEsTE) garante que o agrupamento cumpre o rácio previsto por lei de assistentes operacionais, mas, em breve, promete, abrirá um novo concurso para mais duas funcionárias a tempo parcial.

Ao final do dia, vários pais cruzam-se na Praça Afonso do Paço, em Campo de Ourique, em direcção à Escola Básica e Jardim de Infância de Santo Condestável, onde os filhos esperam. Em sentido contrário, Susana Pereira empurra um carro de bebé, com o filho recém-nascido, e já leva pela mão o mais velho, aluno do 2º ano, que vem cabisbaixo. No estabelecimento de ensino situado no coração de uma freguesia com um dos valores por metro quadrado mais caros da cidade, a encarregada de educação nunca pensou ter receio em deixar o filho na escola. “Todas as semanas, há situações de bullying ou de pancadaria. Tento explicar ao meu filho que isto não é normal, mas é difícil ele perceber, quando assiste a esta realidade tantas vezes. Frequentemente, também lhe roubam o lanche. Infelizmente, não tenho outra solução”, desabafa.

Há duas semanas, a escola abriu só com uma assistente operacional de serviço, situação que terá acelerado a contestação dos pais. “Felizmente, pude trazer o meu filho para casa, porque estou de licença de maternidade, mas a maior parte dos pais não o pode fazer”, diz Susana Pereira, que garante já ter feito várias queixas ao agrupamento escolar. A escola básica tem quatro funcionárias, mas a rotatividade de horários leva a que nunca estejam mais de duas ao mesmo tempo a vigiar os alunos. “Um recreio com mais de duzentas crianças do primeiro ao quarto ano, muitas vezes vigiado apenas por duas funcionárias, com 60 anos, é ingovernável. A escola deve estar à espera que aconteça uma desgraça para agir”, queixa-se André Chêdas, pai de um estudante do primeiro ano e de um outro a frequentar o Jardim de Infância. Quando uma funcionária falta, a situação agrava-se. “Ainda hoje, vi uma auxiliar do Jardim de Infância a fazer de porteira, é este tipo de ginástica interna que se faz para se tentar suprir as lacunas. É frequente não aparecerem por estarem de baixa médica, e estas baixas sucedem-se por desgaste e saturação das condições de trabalho”, explica.

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Cerca de duas centenas de crianças frequentam uma escola com apenas dois funcionários auxiliares

Junto à entrada da escola, é normal ver-se a Polícia de Segurança Pública (PSP), e os desacatos não acontecem só entre crianças. “Já vimos pais a entrarem para falarem com os miúdos e já vimos pais à porrada. Não é correcto os pais conversarem com as crianças, mas entende-se, quando se vê uma miúda com uma perna engessada porque outras crianças lhe bateram”, conta Susana Pereira. A encarregada de educação acredita que a recorrência destes episódios estará relacionada com a falta de assistentes operacionais, uma hipótese corroborada por vários encarregados de educação. André Chêdas diz mesmo que, nestas condições, “a escola devia estar encerrada”. “Além das situações recorrentes de bullying, existem janelas, sem qualquer sistema de segurança, num primeiro andar, que os alunos abrem frequentemente, sem que nenhum funcionário os possa impedir ou alertar do perigo”, alerta.

 

A rotatividade dos professores é outra das queixas mais recorrentes. Vários alunos do 2º ano deverão repetir o ano escolar, e os pais acreditam que a escola tem responsabilidades. “O meu filho, só no 1º ano, teve três professores, porque fogem todos daqui. Provavelmente, ele vai repetir o ano, e é melhor assim, mas por falta de condições da escola”, diz Susana Flores. A encarregada de educação gostava de colocar o filho na outra escola básica pública da sua área de residência, a EB 2,3 Manuel da Maia, mas esta estará sempre lotada. “Vou continuar a aguardar, mas não é fácil, porque as alternativas são caríssimas. As pessoas têm uma ideia errada de Campo de Ourique, não é um bairro assim tão chique”, diz. No primeiro dia de aulas do filho, quando foi conhecer o estabelecimento, conta Susana, observou distúrbios em pleno átrio. “Há muitas crianças que, infelizmente, não têm acompanhamento em casa e vêm para a escola arranjar conflitos”, lamenta ainda.

 

O contexto económico dos agregados familiares da EB 1 e Jardim de Infância Santo Condestável é heterogéneo, existindo famílias pertencentes a um nível socio-económico médio, mas também há várias situações de desemprego e trabalho precário. Tais características levaram o Ministério da Educação a incluir o Agrupamento de Escolas Manuel da Maia, onde se insere este estabelecimento de ensino, no programa governamental Território Educativo de Intervenção Prioritária (TEIP).


 

 

As escolas abrangidas pelo TEIP localizam-se em zonas económica e socialmente desfavorecidas, caracterizadas pela pobreza e pela exclusão social, “onde a violência, a indisciplina, o abandono e o insucesso escolar mais se manifestam”, lê-se no site da Direcção-Geral da Educação. Os objectivos centrais do programa prendem-se com a “prevenção e redução do abandono escolar precoce e do absentismo, mas também a redução da indisciplina e a promoção do sucesso educativo de todos os alunos”. Tais metas estarão, porém, longe de serem cumpridas, queixam-se os encarregados de educação. “O meu filho deixou de ir à casa-de-banho porque os miúdos mais velhos o trancavam lá dentro. Uma situação destas podia ser resolvida, se houvesse mais assistentes operacionais. É uma falha gritante, ainda por cima numa escola TEIP. É vergonhoso”, critica André Chêdas. Episódios que se repetem, todos os dias. “Se nós, adultos, não trabalhamos bem, se tivermos vontade de ir à casa-de-banho, imagine-se uma criança. Como se aprende assim?”, questiona Susana Pereira.

 

O presidente da Associação de Pais do Agrupamento de Escolas Manuel da Maia, Sérgio Palmeiro, critica a rotatividade dos professores e a carência de pessoal auxiliar. “Muitos miúdos replicam o que vêem em casa e, como não há nenhum adulto a vigiá-los, aumenta a liberdade e a violência escala. Acredito que não são violentos por natureza, é mesmo por falta de controlo. Infelizmente, estão entregues a si mesmos”, lamenta. A alternância de docentes não estará só relacionada com a falta de vontade de permanecerem neste ambiente escolar, mas por estarem deslocados da terra-natal. “Ao serem colocados noutra escola, todos os anos, dificulta-se a aprendizagem dos alunos. Convinha que os projectos que nascem no primeiro ano cresçam nos próximos anos, num diálogo entre professor e aluno”, diz.

 

O representante dos pais, apenas há três anos a viver em Campo de Ourique, diz que “quem chega de fora”, como o caso de muitos pais, acaba por entrar “em choque”. “Não estou a desculpar a violência, mas, infelizmente, nas quatro escolas do agrupamento, é comum, e, para quem chega de fora, como o caso de muitos pais que moram nesta parte da cidade há menos tempo, é um choque”, considera.

 

 

O encarregado de educação André Chêdas, inconformado com a aparente inacção do estabelecimento de ensino, enviou emails à Junta de Freguesia de Campo de Ourique e ao Agrupamento de Escolas Manuel Maia, a pedir esclarecimentos e soluções. As respostas, contudo, serão “insuficientes”. “Apesar das assistentes operacionais do 1.º ciclo não pertencerem aos quadros da Junta de Freguesia, deviam preocupar-se com novas soluções para um problema que se arrasta há anos. Infelizmente, sacodem a água do capote”, lamenta. Já a direcção da escola, avança, “reconhece haver falta de assistentes”. “Em poucos quarteirões, temos escolas privadas onde se paga 900 euros mensais para ter os filhos e esta. Mesmo que, por uma situação absurda, se estejam a cumprir os rácios, estes episódios são perigosos e tem de se encontrar uma solução, antes que algo grave aconteça”, pede.

 

O agrupamento escolar garante, em resposta escrita ao encarregado de educação, que tem “insistentemente” comunicado, via email e por telefone, à Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE), “a situação precária em que se encontram todas as escolas do Agrupamento de Escolas Manuel Maia, devido ao número reduzido de funcionárias”. A resposta da DGEsTE, porém, “tem sido sempre a mesma”: o agrupamento cumpre o rácio previstos por lei de assistentes operacionais. O agrupamento avança ainda que lhe terá sido garantido que, em breve, abrirá um novo concurso para mais duas funcionárias a tempo parcial, embora ainda não saiba precisar quando.

 

No dia em que terá estado apenas uma funcionária a receber todos os alunos, a direcção do agrupamento garante ter reforçado o estabelecimento escolar das 16h às 18h30, com a deslocação de uma funcionária. “Ou seja, praticamente, a escola manteve o mesmo número de funcionárias que sempre teve. Quanto ao número de alunos que permaneceram na escola só com uma assistente foram 80 e não 200 ou mais do que 200”, explica.  O quadro de assistentes operacionais será constituído por quatro funcionárias em horários rotativos. “Uma entra às 8h e sai às 16h. Às 10h, entra outra, que sai às 18h. Depois, às 12h30, entra uma terceira, que sai às 16h30 e, finalmente, uma outra que entra às 15h e sai às 18h30. Ora, só faltou a funcionária que cumpre horário das 10h às 18h”, esclarece.

 

 

A Junta de Freguesia descarta-se de responsabilidades, dizendo que “as assistentes operacionais do 1º Ciclo do Ensino Básico pertencem ao quadro de pessoal e gestão da Direcção do Agrupamento de Escolas Manuel da Maia”, a quem, promete, irá encaminhar a comunicação de André Chêdas, solicitando esclarecimentos. As assistentes do Jardim de Infância, que pertencem ao quadro desta Junta de Freguesia, e a equipa do horário do CAF (Componente de Apoio à Família) “encontraram-se na escola ao serviço”, garante.

 

O Corvo enviou questões para o Agrupamento de Escolas Manuel Maia, a Junta de Freguesia de Campo de Ourique, e ainda para o Ministério da Educação e a Câmara Municipal de Lisboa (CML). Até ao momento da publicação deste artigo, recebeu apenas resposta do município. Fonte do gabinete do vereador da Educação e dos Direitos Sociais, Manuel Grilo (BE), diz, em depoimento escrito a O Corvo, que olha para a falta de funcionários desta escola, e de outras, “com muita preocupação”. “Já levámos a reunião de câmara três recomendações, ao longo do ano de 2018, no sentido de exigir ao Governo um reforço e valorização destes profissionais e dos assistentes técnicos, que também estão em falta na maioria dos agrupamentos escolares”, garante.

 

O Ministério da Educação anunciou, na passada quinta-feira (21 de Fevereiro), que vai contratar mais 1067 funcionários para as escolas. O pelouro da Educação considera que “tão importante como o reforço anunciado pelo Governo” é passar a ser prevista “uma forma de substituição dos profissionais em falta quando se encontram doentes”. “Consideramos ainda que os rácios têm de ser revistos e adaptados tendo em conta a realidade das nossas escolas”, reforça. Além disso, “há falta de outros profissionais que ajudam a prevenir e a intervir nestes casos, tais como psicólogos e animadores sociais”. “O papel que desempenham nas escolas é essencial para ter comunidades saudáveis e equilibradas, e estão também em enorme escassez nas escolas básicas”, conclui.

 

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COMENTÁRIOS

Comentários
  • Paulo Só
    Responder

    Pequenos sinais de que as coisas não vão tão bem assim, e que os recursos são desviados para onde não deveriam ser. A Câmara tem dinheiro para distribuir às entidades de turismo, mas não para as escolas, sobretudo em lugares onde a miséria recomendaria que um esforço fosse feito para que se conseguissem melhores condições de estudo. É o caso dessa escola que concentra alunos de regiões pobres e muito ricas. Esperemos que os sindicatos se interessem também por essas questões e não só pelos salários dos professores. É assim que o país aposta na ciência?

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