Há idosos sem poderem sair de casa em bairros municipais de Lisboa devido aos elevadores avariados
Os problemas técnicos são, há muito, uma constante nos ascensores dos aglomerados habitacionais camarários da capital. Parte explicadas por actos de vandalismo, parte motivadas por deficiente assistência técnica, as imobilizações frequentes têm consequências graves na vida das comunidades afectadas. Na Quinta do Cabrinha, onde foram realojados moradores do antigo Casal Ventoso, é usual os mais velhos e doentes ficarem impedidos de ir à rua. “É como se tivéssemos uma pulseira electrónica, estamos de castigo”, desabafa a O Corvo uma residente que, com o marido, leva meses sem sair de casa. Muitos lamentam que a empresa municipal Gebalis não dê resposta eficaz às anomalias. Mas também há quem reconheça que os danos propositados são rotineiros. A Câmara de Lisboa tem tentado, por isso, sensibilizar os moradores para um problema recorrente. Mas tal não se revela suficiente. Tanto que houve uma mudança de estratégia: os novos bairros sociais serão projectados de forma a não serem necessários elevadores. Em todo o caso, diz a CML, a adequada manutenção técnica tem sido assegurada.
Sentada na borda da cama do quarto da neta, Cristina Santos, 87 anos, vai escrutinando as movimentações lá fora. Na nesga do pátio interior da Quinta do Cabrinha, junto à Avenida de Ceuta, observável através da janela, pouco ou nada difere do costume. Há vizinhas a passar vagarosamente com sacos de compras e miúdos que chutam uma bola com algum vigor. Quando está na cozinha, o ângulo move-se alguns metros. “É aborrecido, é sempre a mesma coisa. Há muitos anos que estou assim, mas o que posso fazer? É a vida, estou velha”, resigna-se, depois de recordar tempos mais felizes, quando vivia no antigo bairro do Casal Ventoso. O realojamento dos moradores daquele núcleo degradado, há já quase duas décadas, trouxe outras condições e outro modo de vida. Mas também problemas inesperados. As avarias nos elevadores são tão constantes que, para os residentes mais velhos e doentes dos pisos acima do rés-do-chão, são sinónimo de calvário. Por causa disso, Cristina, operada há alguns anos à perna direita, não sai de casa desde Agosto do ano passado.
Seja por falta de manutenção adequada ou por vandalismo, quando não as duas razões conjugadas, as anomalias técnicas nos dispositivos mecânicos têm sido uma constante nos bairros camarários de Lisboa. Não apenas naquela zona da cidade – na qual os antigos moradores do Casal Ventoso foram colocados em três núcleos distintos, Quinta do Cabrinha, Avenida de Ceuta e Quinta do Loureiro -, mas um pouco por todo o lado onde a empresa municipal Gebalis é responsável pela administração dos condomínios. O problema é crónico e tem custado muito dinheiro aos cofres do município. Tanto que, tentando erradicar pela raiz um problema que parece irresolúvel, a autarquia se prepara para estabelecer um novo paradigma de construção de bairros sociais: a partir de agora, os prédios de habitação social que vierem a ser edificados serão projectados de forma tal a que não haja necessidade de estarem dotados de elevadores. A informação foi confirmada a O Corvo por fonte do pelouro da Habitação da edilidade.
Tal alteração da política arquitectónica não serve, contudo, como resposta a todos os que habitam nas centenas de torres em dezenas de bairros municipais espalhados pela capital. Um problema a assumir particular gravidade pelos efeitos na qualidade de vida de uma população em acelerado envelhecimento. “Os idosos estão a ser completamente desprezados. Eles têm dificuldades de locomoção, precisam de utilizar os elevadores. Mas as avarias são tão frequentes que muitos sentem medo de os usar. Há muitos casos de pessoas que lá ficam presas, por causa das anomalias, por isso, é natural que elas se sintam receosas”, diz Vítor Lopes, responsável pela Pró-Comissão de Moradores da Quinta do Cabrinha e genro de Cristina Santos. Apesar de viverem no primeiro andar da torre 6 daquele aglomerado, as imobilizações frequentes do elevador mais próximo, conjugadas com as dificuldades em andar de Cristina, resultantes de uma intervenção cirúrgica, fazem com que para ela a rua seja um lugar remoto. Apesar de estar ali mesmo em baixo.
A angústia pela situação é tanta que faz com que Cristina anseie pelo bairro de lata onde passou a maior parte da vida. “Gostava mais de viver no Casal Ventoso do que aqui”, suspira, lamentando que as amigas de longa data residentes no Cabrinha não a venham visitar com frequência, também por causa dos elevadores. “Elas também estão velhas, custa-lhes subir pelas escadas e ficam com medo de ficar presas nos elevadores. Até a minha filha já lá ficou, aí há uns tempos”, relata. O genro confirma e insurge-se contra a falta de resposta da Gebalis aos constantes apelos dos moradores para solucionar as frequentes avarias. “Eles não resolvem isto como deve ser. As reparações acabam por nunca dar resultado. Atamancam as coisas, tiram peças de um elevador para pôr o outro a andar. Há cerca de dez anos que é assim”, acusa Vítor Lopes, aludindo ao facto de a empresa responsável pela manutenção não conseguir, alegadamente, dar a resposta técnica adequada, porque os ascensores foram instalados por uma firma concorrente.
“A população não tem nada a ver com isso. É uma situação que está a causar grandes transtornos. E, no caso da minha sogra, por causa desta situação, ela está como se se encontrasse em prisão preventiva. No fundo, está refém da Gebalis”, considera Vítor, replicando uma queixa ouvida amiúde naqueles andares. Basta subir um piso, aliás, para o confirmar. “O elevador está quase sempre escangalhado, a gente não sai de casa”, lamenta, chorosa, Maria Ivone Pereira, residente no segundo andar da torre 6, a poucos dias de completar 82 anos. “Isto é como se tivéssemos pulseira electrónica, estamos de castigo”, desabafa, ao dar conta da triste situação em que ela e o marido, José Santos, 86, se encontram. Diabética, a tomar 19 comprimidos por dia, move-se com muita dificuldades. E faz questão em apontar para os inchaços em forma de pernas. Andar é-lhe difícil. Mas, ainda assim, nota, até se mexe bem melhor que o marido, sujeito a quatro intervenções cirúrgicas. Para o provar, pede a José que dê alguns passos. O antigo operário especializado da Lisnave, onde trabalhou durante quatro décadas, assente à solicitação. Não são precisas mais explicações.
Por razões evidentes, para José e para Maria Ivone, como para muitos outros inquilinos daquelas torres, o ascensor é de importância vital. Mas as anomalias tornadas rotina acabaram por acantoná-los em casa. Tanto que Maria Ivone tem de contar com a ajuda do filho mais novo nas mais elementares tarefas implicando contacto físico com o mundo exterior. No momento em que disso dá conta a O Corvo, ele ali surge, carregado com compras. “Na verdade, isto nunca funcionou como deve ser. Eles vêm cá reparar o elevador, está dois dias a trabalhar, no máximo, e depois avaria”, conta António Santos, 53, residente do outro lado da avenida, também em casas municipais de realojamento. Das conversas que, por vezes, têm com os técnicos da empresa encarregue da manutenção, tanto António Santos como Vítor Lopes têm a confirmação dos próprios de que muitos dos problemas estarão relacionados com o facto de “algumas peças serem muito caras, o que obriga a remediar, em vez de reparar” e que “para empresa não compensa muito vir reparar, porque não lhes é paga a taxa de saída”.
As consequências da usual inoperância dos elevadores podem, por vezes, ir bem mais além da impossibilidade de fazer uma vida normal. Cristina Santos, que ao problema nas pernas soma uma doença cardíaca, viu-se impossibilitada, no ano passado, de sair de casa no dia em que tinha marcada uma intervenção no seu “pacemaker”, no Hospital de São Francisco Xavier. Teve de remarcar a intervenção. Foi, aliás, a última vez que saiu de casa. Também Maria Ivone Pereira sentiu, recentemente, de forma aguda as limitações impostas pela inoperacionalidade dos elevadores. No dia em que o marido, José Santos, caiu na avenida, mesmo em frente ao prédio onde mora, e se magoou com gravidade, Maria não conseguiu sair de casa para ir auxiliá-lo. Valeu a intervenção de quem passava por ali, no momento. José e Maria foram os primeiros residentes do Casal Ventoso a serem realojados na Quinta do Cabrinha – “até viemos no jornal”, recorda ele -, mas hoje apenas sentem tristeza pela condições em que vivem.
No mesmo piso, logo ao lado da entrada do elevador, Fernanda Jesus, 89, e o marido Manuel Duarte, 80, estão longe de encontrar motivos para sorrir. “Às vezes, tenho de comer pão duro, com vários dias, porque não podemos descer para ir fazer compras. Isto é uma porcaria, nunca funciona”, lamenta-se Fernanda. O marido, que sofreu uma trombose e, por isso, tem a mobilidade bastante reduzida, diz que as coisas não funcionam como deviam, “mas não é apenas por culpa dos homens dos elevadores, mas também por culpa da pessoas, que estragam”. A vandalização dos equipamentos colectivos revela-se um dos problemas mais frequentes em bairros municipais da capital, com especial relevo para elevadores, seja pelas consequências que tais actos acarretam para a comunidade, seja pelo peso que tal representa no orçamento da Gebalis. “Há rapazes que, de propósito, carregam no botão de abrir as portas e, ao mesmo tempo, no de fechar. E as avarias acontecem”, relata. Certo é que, por causa dos actos uns, pagam todos os outros, de cada vez que um elevador fica inactivo.
Que o diga Isabel Alves, 72 anos, moradora no terceiro andar da torre 5. Com os joelhos e as costas bastante desgastados, por mais de vinte anos a “limpar de gatas” os pavimentos de escolas públicas, sente com amargura as intermissões do funcionamento dos ascensores. “Quando tenho de subir com os sacos das compras, vejo a coisa preta. Não posso subir estas escadas, carregada de sacos, os joelhos não aguentam. A vida de pobre é assim”, resigna-se. No dia em que O Corvo ali esteve, os elevadores das torres 5 e 6 tinham sido reparados “anteontem”. Mas a percepção geral dos moradores era que o normal funcionamento dos dispositivos seria coisa para durar pouco. Nesse momento, e sabendo da presença de um jornalista no local, uma inquilina dos prédios do vizinho bairro da Avenida de Ceuta Sul, do outro lado do Vale de Alcântara, aproximou-se para fazer queixas sobre o mesmo assunto. “No lote 5, onde moro, um elevador não funciona há ano e meio. O outro deixou de trabalhar há três semanas, porque o quadro eléctrico explodiu. Ligamos para a Gebalis a queixarmo-nos e nada”, denuncia Elisabete Silvestre, 71 anos.
Uma situação que, contudo, poderá mudar em breve. O Corvo questionou a Câmara Municipal de Lisboa (CML) sobre o número de avarias reparadas naqueles bairros, nos últimos 12 meses, bem como sobre as razões dos referidos problemas técnicos. Interrogou ainda a autarquia sobre o que planeia fazer para resolver a situação das anomalias frequentes nesses equipamentos. Sem dar respostas directas as estas questões concretas, a autarquia endereçou, porém, uma nota escrita a O Corvo, na qual dá conta do que tem sido feito neste campo, bem como o que se planeia fazer – seja nos bairros da Avenida de Ceuta, seja no restante parque habitacional do município sob alçada da Gebalis, onde existe um total de 1.193 elevadores. O conjunto dos equipamentos, informa a CML, é abrangido por um contrato de manutenção, assinado em 2014 e que implicou um investimento de 1,5 milhões euros.
Tal instrumento, assegura a edilidade, “aumentou a capacidade de intervenção (de simples para completa) permitindo uma mais rápida reparação em caso de avaria” e prevê “acções, quando necessárias, de prevenção”, com substituição de peças antes de fim de vida. A Câmara de Lisboa explica ainda que a Gebalis lançou uma campanha de sensibilização, junto da população destes bairros, alertando para “para a boa conservação dos elevadores e para o custo que acarretam”. “Esta campanha tem como objectivo envolver as pessoas na boa gestão do património que é de todos e para as consequências sociais – mesmo com apoio dado a idosos e grupos vulneráveis nestas situações -, para os gastos extra e delongas ligadas com a eventual intervenção das autoridades em determinados casos de mau uso ou vandalismo dos equipamentos”, informa a CML. E este problema é tão frequente, e grave, que a autarquia decidiu mesmo mudar de estratégia, a fim de cortar o mal pela raiz.
“No âmbito dos programas que, além de reabilitação, também envolvem construção nova, a CML está a implementar um projecto de habitação pública que, entre outras características inovadoras, evita o recurso a elevadores, com entradas directas para os fogos, dando assim melhores condições de acessibilidade aos moradores e evitando a questão das avarias ou uso incorrecto dos mesmos”, explica a câmara, dando conta de que tal tipologia está a ser posta em prática nos bairros da Boavista e Padre Cruz.
Mas, se existem medidas colocadas em prática e outras planeadas para o conjunto dos edifícios geridos pela Gebalis, na mesma nota enviada a O Corvo, a Câmara de Lisboa dá conta do que planeia para os bairros de realojamento do antigo Casal Ventoso. “O município, através do programa de reabilitação do património de habitação – no âmbito do qual foram aplicados nos últimos três anos cerca de 1M€ nas recuperações de fachadas e outras intervenções no edificado deste bairro -, irá iniciar proximamente obras na Quinta do Cabrinha com impactos na eficiência energética das habitações e em que o factor segurança estará igualmente reflectido. Toda a operação terá sempre associadas acções de natureza pedagógica junto da comunidade”, explica. E acrescenta que, através do novo contrato programa assinado entre CML e Gebalis, “Aqui há mais bairro II“, estão previstos, até 2021, “novos investimentos na reabilitação deste território, em especial na Quinta do Loureiro, onde os mesmos princípios de envolvimento da população serão adoptados”.