“Sala de chuto” móvel já arrancou no Beato, mas ainda não há data para a abertura das salas fixas de Lisboa

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Sofia Cristino

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22 Maio, 2019

As salas de consumo assistido foram anunciadas há mais de um ano e já deviam estar todas a funcionar. Fonte do gabinete do vereador dos Direitos Sociais admite agora que não se previu “a morosidade própria de um processo que acontece pela primeira vez em Portugal”. Não se sabe, por isso, quando abrirão portas as salas fixas. “Provou ser muito mais demorado”, reconhece a mesma fonte. A Câmara de Lisboa promete “trabalhar arduamente” para iniciar as obras no Vale de Alcântara e no Lumiar, onde ficarão tais estruturas. Mas sem se comprometer, porém, com datas. A presidente de Junta de Freguesia de Arroios reconhece que “têm havido algumas dificuldades em chegar a acordo quanto à localização” da unidade móvel e o presidente da Junta do Lumiar desvaloriza os atrasos. “Corre dentro do normal e expectável”, diz. O Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT), a circular com a unidade móvel do Beato desde o passado mês de Abril, admite que há “um trabalho intenso” a fazer no terreno. “É difícil implementar em duas freguesias ao mesmo tempo”, admite.

A nova unidade móvel de consumo vigiado já anda pela freguesia do Beato. Começou a circular, discretamente, no passado dia 23 de Abril, com paragens nas traseiras da Rua João Nascimento Costa, e entre a Rua J e a Calçada da Picheleira, durante a tarde. A carrinha de apoio ao consumo de estupefacientes, que também já deveria estar a circular na freguesia de Arroios, só deverá passar por lá, porém, no próximo mês, e as salas fixas, previstas para o Lumiar e Vale de Alcântara, não têm sequer data de abertura. Em Abril de 2018, Ricardo Robles, então vereador dos Direitos Sociais, prometeu três salas de chuto, até ao final desse ano, o que não aconteceu. Manuel Grilo, sucessor de Robles, nunca se comprometeu com uma data para a abertura das estruturas fixas, mas revelou, em Dezembro do ano passado, que o posto móvel arrancaria em Janeiro deste ano, o que também não se concretizou.

 

Uma fonte do gabinete do vereador dos Direitos Sociais, em resposta escrita a O Corvo, admite agora que, “aquando do primeiro anúncio da abertura das unidades, não prevíamos a morosidade própria dum processo que acontece pela primeira vez em Portugal”. “Desenhar procedimentos, estabelecer pontes com representantes políticos e sociais locais, entidades do Estado Central, como o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), assim como o processo de encontrar o melhor local, provou ser muito mais demorado do que o que previmos”, reconhece.

Assim, “e porque é preferível algo moroso e bem-feito do que rápido e com falhas, estamos a trabalhar arduamente para iniciar a fase de obra no Vale de Alcântara e no Lumiar”, garante, sem avançar, contudo, com datas concretas. Em declarações a O Corvo, a mesma fonte confirmou, no início do mês de Maio, que o atraso no início da circulação da unidade móvel deveu-se a “questões técnicas com a formação da equipa”. Já a escolha das salas de consumo fixas estava atrasada devido à dificuldade de encontrar um local. “Uma das freguesias quer um edifício totalmente novo e a outra não, o que tem atrasado o arranque”, justificava.

 

Foram precisos quase vinte anos para que estas estruturas saíssem do papel. As Salas de Consumo Assistido (SCA) estão previstas na legislação portuguesa, sob a designação de Programas para Consumo Vigiado, desde Junho de 2001. Quando foram anunciadas, as organizações responsáveis pela implementação do projecto nas freguesias de Arroios, Beato, Lumiar e Vale de Alcântara – Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT), Médicos do Mundo, Crescer e Ares do Pinhal – já sabiam que teriam um trabalho muito intenso, mas não esperavam que demorasse tanto tempo.

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É este o terreno onde deverá ser construída a sala de consumo assistido do Lumiar

Américo Nave, presidente da Associação Crescer, responsável pela implementação da sala de chuto do Lumiar, garante que a localização desta sala já está definida há vários meses e lamenta a demora. “Estes equipamentos já chegam sempre tarde. Dezoito anos depois de ter sido aprovada a lei que permite a abertura destas unidades, não percebemos a morosidade na sua implementação. Só a Câmara Municipal de Lisboa (CML), o SICAD ou o DICAD podem justificar a demora. Está tudo do lado deles, não precisamos de mais tempo. Por nós, já estava a funcionar”, diz, em declarações a O Corvo.

 

O dirigente da associação continua a ter os mesmos desafios de há 18 anos, quando a Crescer nasceu: “ajudar diariamente pessoas que se encontram a consumir na rua, sem quaisquer condições de salubridade ou segurança, colocando em risco a sua saúde e da comunidade”. Mas os reptos já deviam ser outros. “Continuam a existir pessoas com muito pouco contacto com as equipas de rua, por não estarem nos locais de consumo e nos horários das nossas rotas, o que seria minimizado havendo uma estrutura fixa”, explica.

 

Elsa Belo, da Associação Ares do Pinhal, responsável pela sala de chuto do Vale de Alcântara, diz que o espaço físico já foi encontrado, mas, admite, ainda “terá de ser sujeito a várias adaptações, para que se torne funcional”. Além do local de consumo vigiado, explica, “vão ser necessários outros espaços, para apoio aos utentes, de higiene, intervenções sociais, médicas e de enfermagem, rastreios, entre outras valências”, mas também protocolar cedências de espaços, orçamentar obras e articular com todos os parceiros para que se avance “de forma estruturada e sólida”, explica a O Corvo.

 

O facto de ser uma resposta pioneira em Portugal, “com todos os riscos e desafios que essa condição coloca”, está também na origem do atraso, admite a responsável. “É indispensável que este projecto-piloto seja bem pensado e implementado com a qualidade que se exige a um país que tem vindo a desenhar formas de intervenção reconhecidas internacionalmente”, sublinha. Para Elsa Belo, é ainda necessário fazer um “trabalho de sensibilização” junto da comunidade, que permita “uma melhor aceitação e compreensão da resposta”.

 


 

As salas de consumo assistido são uma novidade, em Portugal, e, por isso, há “um trabalho muito intenso a fazer no terreno”, reforça também Adriana Curado, do Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT) – organização que, em parceria com a Médicos do Mundo, é responsável pela implementação do projecto móvel, no Beato e em Arroios. “Não dá para chegar lá um dia, parar a carrinha e começar. Há um trabalho vasto de envolvimento da comunidade e desmistificação de alguns mitos, porque estes projectos geram alguma controvérsia. Um projecto destes nunca pode ser feito contra a vontade das pessoas”, explica Adriana.

 

Nas últimas semanas, o GAT visitou o Beato para “testar locais e horários de passagem da unidade móvel, falar com os moradores sobre o programa de consumo vigiado, criar confiança com os consumidores de estupefacientes, conhecer as dinâmicas do território e os serviços da freguesia”, explica. A comunidade foi “muito receptiva” à entrada da unidade móvel de consumo no bairro, mas, durante este processo, o GAT ouviu muitas dúvidas da população.

 

O posto móvel desloca-se ao Beato nos períodos de maior afluência dos utilizadores, durante a tarde. A maioria dos primeiros utentes a inscreverem-se nesta unidade foram sem-abrigo, “que só consomem nos espaços públicos porque, até agora, não tinham outro sítio para o fazer”, explica. A equipa – constituída por uma enfermeira, dois educadores de pares, que fazem a mediação entre os utentes e o serviço, uma psicóloga, uma assistente social, e uma médica – desloca-se ainda aos locais de consumo. “Podem ir ter à unidade ou vamos procura-los”, conta Diana Gautier, assistente social dos Médicos do Mundo. Os utentes consomem há várias dezenas de anos e encontram-se numa situação “de grande vulnerabilidade”. “Não é um incentivo ao consumo, como algumas pessoas pensam. Não permitimos primeiros consumos nas salas, nem vamos criar novas zonas de consumo”, garante a assistente social.

 

O principal objectivo da estrutura de saúde, garantem, “é a redução dos riscos relacionados com o consumo destas substâncias”, como transmissão de infecções e overdoses. O consumo é feito com material novo, não havendo partilha deste, estando assim as pessoas nestas circunstâncias “mais protegidas e em condições de maior segurança, do que se estivessem a consumir a céu aberto”. “Há uma equipa treinada e com a medicação necessária para socorrer as situações de overdose”, esclarece Adriana. A unidade móvel não é uma estrutura de tratamento, estando ainda preparada com alimentos, roupa, balneários e outros serviços de higiene.

 

 

Quem quiser reduzir ou parar os consumos encontra também junto do GAT e da Médicos do Mundo “o encaminhamento para outro tipo de estruturas”, garante a responsável. “A unidade funciona também como uma porta de entrada na rede de serviços da cidade. Fazemos uma ponte entre as pessoas que estão em situação de sem-abrigo, a maioria, e os serviços de saúde públicos”, explica. Outra das dúvidas recorrentes de quem não conhece a função das salas de chuto é se este espaço fornece drogas. “São os consumidores que levam as drogas, e a unidade móvel fornece apenas o material necessário para realizarem o consumo”, desmistifica Adriana.

 

Um dos grandes desafios para os próximos meses, explica Adriana Curado do GAT, é a “aceitação por parte da cidade”, o que também requer tempo. Embora a intervenção esteja a acontecer apenas em quatro freguesias, “é muito importante que Lisboa assimile este novo serviço como uma mais-valia e que, ao final de um ano, seja encarado com normalidade, como mais um serviço de saúde e uma resposta para quem usa drogas”, diz. A implementação desta solução, prevista na lei desde 2001, já é um sinal de que se conseguiram “quebrar algumas barreiras”, mas ainda há um longo caminho a fazer”, diz. “Até há muito pouco tempo, a cidade dizia aos utilizadores onde não podiam consumir, e empurrava as pessoas de um sítio para o outro. O turismo também o fez. Existir a unidade é uma mudança de mentalidade para a sociedade, mas também para os utilizadores, habituados desde sempre a serem estigmatizados”, sublinha.

 

No centro da cidade, onde os processos de gentrificação e pressão turística são mais visíveis, explica ainda, há “um maior impacto na vida das populações mais vulneráveis, que se vêem empurradas para outras zonas de Lisboa”. Tais transformações alteraram a forma como a associação trabalha, dificultando, por vezes, o contacto com os consumidores. “Há uma ‘invisibilização’ das pessoas que usam drogas, em espaços públicos, e o fenómeno assume outros contornos, diferentes dos que observamos nas periferias. Deixa de haver zonas de concentração de consumo, que passa a ser feito de forma mais dispersa e escondida, e mais solitária, e as pessoas são mais difíceis de alcançar pelas equipas”, explica. Ainda este mês, garante, as duas organizações “vão iniciar as conversações com os parceiros e a comunidade”, em Arroios. “É difícil implementar em duas freguesias ao mesmo tempo, e optamos por este modo faseado de começar. Há propostas de locais de paragem, mas têm de ser negociadas”, esclarece ainda.

 

 

Os receios da equipa do GAT e da associação Médicos do Mundo percebem-se porque, ao contrário do Beato, a freguesia do Lumiar não está a receber bem a novidade. A sala fixa do Lumiar localizar-se-á a poucos metros do Bairro da Cruz Vermelha e a proximidade com várias escolas básicas do ensino público e privado também tem gerado alguma polémica. Fernando Baião, eleito pelo CDS na Assembleia de Freguesia do Lumiar, lançou uma petição, no início deste mês, contra a instalação da sala de chuto naquela zona. “A informação vendida é de que o consumo vai passar a ser controlado, mas acho que vão existir novos focos de consumo. Andam a gastar milhares de euros nisto para os toxicodependentes não saírem dessa vida e destruírem-na ainda mais”, critica. Morador há mais de cinco décadas no Lumiar, Fernando Baião conhece bem a realidade do bairro e sugere que as salas sejam instaladas em edifícios vazios de unidades hospitalares, como o Hospital Júlio de Matos.

 

O presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, Pedro Delgado Alves (PS), avança que a discussão pública do documento base aprovado pela Comissão Social de Freguesia, que sustenta este serviço de apoio integrado, ainda está a decorrer. O autarca socialista, em resposta escrita a O Corvo, considera que “não há nenhum atraso” na abertura da sala de consumo. “Não foi fixado um prazo de funcionamento de equipamentos, mas antes o arranque da implementação, que está em curso. Trata-se de um processo que envolve inúmeras entidades para definir a forma de gestão, é necessário identificar locais e realizar obra. Corre dentro do normal e expectável”, desvaloriza.

 

A resposta, adianta ainda, “está a ser desenvolvida entre a Câmara de Lisboa, o SICAD, a Administração Regional de Saúde, as freguesias, entre outras entidades, estando a ser preparado o modelo e os locais, que implicam a realização de obra e/ou adaptação de edifícios para o efeito”, esclarece. “O que está a ser preparado no quadro dos programas municipais de resposta a problemas na área das dependências são serviços integrados, com várias valências (enfermagem, apoio psicossocial, despistagem de problemas de saúde, consultas médicas, encaminhamento social), no quadro dos quais existe também uma componente de consumo vigiado”, conclui.

 

O presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, Pedro Cegonho (PS), em declarações a O Corvo, diz “não ter informações concretas” sobre o a abertura da unidade do Vale de Alcântara. “Não vou especular, a Câmara de Lisboa é que tem de avançar com novidades. Estas coisas não se fazem de ânimo leve”, sintetiza. A presidente da Junta de Freguesia de Arroios, Margarida Martins (PS), diz apenas que “têm havido algumas dificuldades em chegar a acordo quanto à localização das salas de chuto”. “Pensaram em colocar a unidade móvel nas traseiras do Hospital de São José, mas rapidamente se percebeu que não era o melhor local. Continuamos a tentar perceber qual será o melhor sítio, o maior foco de consumo”, garante.

 

O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), do Ministério da Saúde, em resposta escrita a O Corvo, adianta apenas que a abertura, tanto da unidade móvel de Arroios, como das salas fixas, no Lumiar e em Campo de Ourique, requer “um trabalho cuidado e em articulação com os parceiros locais, que está a ter os seus adequados e necessários desenvolvimentos”. “Foram iniciados, em Lisboa, os procedimentos para a implementação de um projecto-piloto de programas de consumo vigiado descentralizados”, adianta. Não responde, porém, quais os motivos do atraso na abertura das salas.

 

Nota editorial: texto editado às 14h35 de 22 de Maio. Clarifica que Diana Gautier é assistente social da Médicos do Mundo e não do GAT. Pelo erro, pedimos desculpa aos leitores e aos visados.

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