Será a criação de uma linha circular no metro de Lisboa um “enorme erro”?
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Samuel Alemão
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Metropolitano de Lisboa
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Cidade de Lisboa
17 Maio, 2017
Os problemas que a nova configuração da Linha Verde terá a partir de 2021 dominaram o debate da Assembleia Municipal de Lisboa convocado pelo Bloco de Esquerda. Especialistas em transportes alertam para os problemas de engenharia que se colocam na construção da ligação entre Rato e Cais do Sodré e das estações de Estrela e Santos. Há demasiados riscos, alertam. A comissão de trabalhadores avisa que o “efeito túnel” da ligação circular pode confundir os passageiros e até os maquinistas. E lembra que os “erros de planeamento têm custos demasiado elevados”. Toda a oposição preferia uma expansão para a área ocidental de Lisboa. Mas Fernando Medina garante que esta solução é “estrutural” e “prioritária”. A expansão à zona poente da capital virá logo de seguida, diz.
Depois da solenidade da cerimónia de apresentação do programa de expansão da rede do metropolitano de Lisboa, na semana passada, com o anúncio da construção das estações da Estrela e de Santos e da consequente criação de uma linha circular, evidencia-se agora a rejeição a essa solução. Afinal, temem as muitas vozes críticas a tal plano que começam a emergir, o que está a ser apresentado como uma solução pode muito bem vir a converter-se num problema. Mais que isso, a concretização de prometida obra, que deverá estar terminada em final de 2020 ou início de 2021, poderá muito bem vir a revelar-se “um erro muito grave, comprometendo seriamente e, por muitos anos, o futuro da cidade de Lisboa”. Foram muitos e profundos os reparos ao anúncio, feito pelo Governo, da planeada expansão da rede do Metropolitano de Lisboa, durante o debate sobre o tema – solicitado pelo Bloco de Esquerda (BE) -, realizado na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), na tarde desta terça-feira (16 de maio) .
O facto de a nova configuração da Linha Amarela prever que a mesma passe a assegurar apenas o funcionamento no eixo Telheiras-Odivelas e, sobretudo, a manutenção da exclusão da zona ocidental da capital no programa de expansão foram os dois principais alvos das muitas e duríssimas críticas ouvidas na assembleia municipal. Algumas delas vieram não só dos partidos da oposição, mas também de especialistas de transportes convidados para o debate – um dos quais um ex-quadro do Metropolitano de Lisboa – e ainda do próprio representante da comissão de trabalhadores da empresa transportadora. Em causa está não apenas a estratégia de mobilidade em Lisboa associada à decisão de criar a referida ligação circular, bem como as questões financeiras de tão grande empreendimento, mas também a própria exequibilidade da mesma. Isto porque há quem tenha grandes dúvidas sobre as dificuldades técnicas associadas às obras em perspectiva.
O forte declive previsto na ligação entre as futuras estações da Estrela e de Santos e ainda a consistência geológica dos terrenos entre esta e o Cais do Sodré foram apontados como problemas sérios a ter em conta. “Não sei se lembram dos incómodos tidos com as obras feitas no Cais do Sodré. Pois, isto será muito mais incómodo”, disse Fernando Santos Silva, antigo funcionário do Metropolitano, onde foi responsável pela coordenação das disciplinas ferroviárias com as diferentes áreas da construção civil e sua integração nos novos empreendimentos com vista à colocação em serviço dos novos troços da rede, entre 2001 e 2009. Uma afirmação feita já depois de referir que o estacionamento subterrâneo existente em Santos constituirá um obstáculo de relevo, aumentando a complexidade dos trabalhos. “Esse parque terá de ser contornado, numa curva muito acentuada, a não ser que procedam à sua demolição”, afirmou.
Também o engenheiro Pompeu dos Santos, reconhecido especialista na área de transportes, criticou de forma contundente o que considerou ser “uma obra muito arriscada”. “Antevejo aqui muitos problemas, estamos a falar de uma área, a da Estrela e a de Santos, com muitos edifícios antigos e frágeis. E, depois, temos o aterro da Boavista, na zona ribeirinha, que é uma zona de lodos e terrenos de fraca consistência. Isto vai dar problemas complicadíssimos”, prognosticou o professor, antes de se debruçar sobre a questão do declive previsível na ligação entre a Estrela e Santos. “Há uma coisa que, para mim, é chocante, pois vamos ter um troço com 670 metros de extensão e um desnível de 60 metros. Ou seja, uma pendente de 9%. A menos que a estação da Estrela seja num poço a 30 ou 40 metros de profundidade, só pode. Mas não me parece que isto seja muito razoável”, afirmou o técnico, antes de lamentar que o aumento da rede não seja feita na direcção do território poente da capital. Crítica que conseguiu reunir o consenso entre os diversos oradores: técnicos, deputados municipais e munícipes que falaram ainda antes do debate.
Fernando Medina, que mais à frente no debate alegaria também ele querer ver avançar o mais rápido possível a expansão do metro para as freguesias ocidentais, teve antes de ouvir um longo e ruidoso coro de reparos à criação de uma linha central. Tal solução, nascida da construção das estações da Estrela e de Santos e da junção à Linha Verde do actual troço entre Campo Grande e Rato da Linha Amarela, é colocada em causa em vários aspectos, para além dos já mencionados eventuais problemas de engenharia. Se da parte dos partidos, como o PCP, o Bloco de Esquerda ou o PSD se colocam dúvidas sobre a efectiva necessidade da sua existência para garantir uma mais abrangente cobertura, Paulo Alves, da comissão de trabalhadores do metro, lançou interrogações e alertas sobre as reais consequências para utentes e maquinistas da entrada em funcionamento dessa linha – que se passará a ter a designação de Linha Verde. Em causa está o que identificou como “efeito túnel”, com as composições a circularem ininterruptamente em círculo.
De acordo com Paulo Alves, existem apenas duas cidades no mundo com tal tipologia de ligação, Londres e Pequim, sendo que em ambos os casos as mesmas estarão muito de longe de ter um funcionamento satisfatório. “Os relatórios técnicos sobre o funcionamento destas linhas estão disponíveis na internet. Os responsáveis pela nossa rede deveriam ponderar se é isso o que entendem ser mais razoável para a nossa cidade”, disse. E depois explicou os problemas relacionados com o mencionado “efeito túnel”, com consequências inesperadas. “Com esta linha circular, os utentes verão dificultada a sua orientação, podendo ser originados muitos enganos das pessoas em relação ao sentido em que apanham o metro”, afirmou. Já para os maquinistas, alega, poderá dar-se “uma desorientação, com perca da noção de tempo e de espaço”, decorrentes da circulação incessante, sem quebras, sem princípio nem fim definido dos trajectos, como acontece nas outras linhas. Algo que qualifica como “um alteração radical”, obrigando a uma preparação específica.
O representante da comissão de trabalhadores havia dito, momentos antes, que a expansão da rede metro é sempre algo positivo, mas a mesma deve resultar de grande ponderação. “Quando prolongamos uma linha ou fazemos uma nova estação, estamos a investir muitos milhões de euros. Um erro de planeamento tem custos demasiado elevados, pois mudar o local de uma estação ou alterar o traçado de uma linha não é algo concretizável” à posteriori, avisou. Por isso, Paulo Alves apelou à realização de um “debate profundo e alargado, quer técnico quer político, sem pressas nem condicionantes” sobre o plano agora anunciado pelo governo de António Costa. “Um erro de projecto ou um estudo deficiente podem custar muitos milhões de euros a todos nós e pode condicionar o desenvolvimento urbano e a mobilidade da cidade”, alertou. Mais estudos são necessários antes de se avançar para tal empreitada, sugeriu.
Um apelo feito também pelos engenheiros Pompeu dos Santos e Fernando Santos Silva. “Novos investimentos em infra-estruturas deverão ser submetidos a análises custo-benefício rigorosos e ter em conta eventuais alternativas de prestação de serviço. Nestas coisas dos transportes, se não se pensa integradamente, não estamos a fazer investimento, estamos a fazer despesa”, postulou Pompeu dos Santos. Já Santos Silva, que pediu também um “debate aberto entre técnicos” sobre os planos de expansão previstos, entendeu ser importante sublinhar que “quem projectou a linha circular não é quem a mantém e quem opera” as composições. “Acho que devem ser ouvidos os técnicos que operam e mantêm a rede. Este plano ignora a manutenção e a operação. Está subordinado a uma suposta procura, que contribui para a desigualdade de tratamento dos troços da cidade”, afirmou, sublinhando a necessidade de aprofundamento da sustentação técnica das decisões agora anunciadas.
E uma delas, decorrente do projecto de criação da linha circular, passa pela reconstrução do nó e da estação do Campo Grande, numa operação para ligar à Linha Verde o troço da Linha Amarela que vai até ao Rato. Tal obrigará a complexos trabalhos de engenharia, com a construção de um novo viaduto rodoviário 400 metros sobre a Segunda Circular. E se há quem critique a nova configuração da Linha Amarela, entre Telheiras e Odivelas, por considerar que esta passará a ser um “braço morto” – como lhe apelidou o arquitecto Nuno Mendonça Raimundo -, não permitindo um acesso directo de Odivelas e Lumiar ao centro de Lisboa, o engenheiro Santos Silva acrescenta-lhe fortes objecções do ponto de vista da construção da necessária ligação rodoviária entre a Segunda Circular e a Av.Padre Cruz, cujas obras já decorrem. “Como técnico que assistiu à construção dos viadutos que lá estão, só posso dizer: não façam isso, por favor! Aquele traçado tem um declive de 10%, é contra as normas da União Europeia”, assegurou, contrastando com os 9% do Túnel do Marquês.
Os argumentos dos dois especialistas – apenas contrariados de forma algo tímida pelo seu colega Álvaro Costa, que defendeu a construção da linha central como a melhor forma de garantir a distribuição de passageiros – foram depois aduzidos à argumentação dos partidos da oposição. Luís Newton (PSD), presidente da Junta de Freguesia da Estrela, criticou a “falta de uma definição clara das prioridades” na expansão da rede de metro e o facto de, para a realização da mesma, “não se ouvirem as pessoas”. A prioridade, alegou, deveria ser a expansão para a zona ocidental da cidade de Lisboa, onde há 100 mil pessoas que continuam sem acesso a este meio de transporte. E acusou Fernando Medina de “preferir servir 5 mil empregos na Estrela e em Santos a servir 100 mil pessoas na zona ocidental da cidade”.
Uma argumentação que, embora em moldes diferentes, coincidiu com a do PCP e a do Bloco de Esquerda (BE). “Para além da pompa e circunstância, sobra muito pouco. Esta expansão não acrescenta nada de significativo à rede de metro existente”, criticou Ana Baptista (PCP), apontando o dedo à omissão da ligação às freguesias ocidentais, com prioridade a Alcântara. Considerando “um erro técnico” a criação da propalada linha circular, pelos custos e transtornos que a mesma acarretará, eleita comunista diz que a mesma vai beneficiar apenas o turismo e os empregos do centro da cidade, em detrimento das classes menos abonadas. Apreciação que muito irritou Fernando Medina, para quem é algo “profundamente sem sentido” fazer tal distinção. “Todos vão beneficiar, porque este é um investimento estrutural. Do que se trata é de tornar mais operacional e fluído o sistema de transportes”, alega o presidente da câmara.
Ideia que está bem longe de convencer Ricardo Robles, candidato do BE à presidência do município e líder da bancada do partido que convocou este debate para a assembleia municipal. “Os recursos são limitados, pelo que as decisões que tomarmos agora terão forte impacto no futuro. Já foram feitos muitos erros no passado. Temo, por isso, que este possa ser o maior erro desta década de executivo municipal do PS. Podemos estar a comprometer, por muitos anos, o futuro de Lisboa. Isto pode sair muito caro à cidade”, considerou Robles, lamentando, também ele, o eterno esquecimento de freguesias como Alcântara, Ajuda e Belém. Para o deputado municipal bloquista, Estrela e Santos estão longe de ser prioritárias, uma vez que “são zonas relativamente bem servidas de transportes públicos, que podem ser melhorados através do serviço da Carris”. Por tudo isto, pediu uma “reflexão profunda”.
Ante tal barragem de críticas, e apenas defendido pelo PS, o presidente da CML fez questão de dizer que, mais que tudo, era relevante que se estivesse a debater sobre a forma da expansão. Isto por contraste com os anos anteriores, em que apenas se falava de cortes e degradação nos níveis de serviço. “Estamos a discutir uma coisa boa para a cidade de Lisboa”, afirmou Medina, que apodou de “um todo ou nada exagerada” a apreciação feita por Ricardo Robles. Qualificando como “estrutural” a linha circular a implementar, por se cruzar com todas as outras linhas, o autarca socialista chamou a atenção para a importância para o facto de a mesma cobrir uma área – a zona ribeirinha entre Cais do Sodré e Alcântara – “que está a crescer muito em termos de emprego”. Reconhecendo desafio técnico da nova ligação, falou ainda na necessidade de se avançar o mais rápido possível para o prolongamento da Linha Vermelha para a zona Ocidental e da ligação ao Aeroporto através do Campo Grande.
Fernando Medina, que não deixou de responder a todas as críticas, lançou também farpas ao CDS-PP – cuja líder e candidata à presidência da câmara, Assunção Cristas, apresentou, na semana passada, no parlamento, um plano de expansão da rede prevendo mais 20 estações. Depois de o deputado municipal Diogo Moura ter confessado não ter nada contra a nova linha central, mas que ainda assim preferia ver supridas outras necessidades de ligação dentro da capital, Medina disse compreender a “posição difícil” em que os centristas se encontram. “Registo a conversão rápida, talvez por influência da visita do Papa, ao investimento público na rede de transportes da parte de quem, enquanto esteve no governo, tudo fez para promover a sua destruição. Acho que tal conversão é demasiado rápida para ser credível”, ironizou o presidente da CML.