Terminal de Cruzeiros de Lisboa recebe milhares de turistas, mas em alguns dos bairros à volta quase não se nota

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Sofia Cristino

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VIDA NA CIDADE

Beato
São Vicente

18 Abril, 2019

Inaugurado há pouco mais de um ano, e vencedor do Prémio Valmor 2017, o novo Terminal de Cruzeiros da capital já recebeu 558 mil pessoas. O turismo de grandes navios atravessa uma das melhores fases de sempre, mas quem trabalha nos bairros do Vale de Santo António, Santa Engrácia e Beato garante que ali “não chega um turista dos barcos”. Na Rua do Vale de Santo António, o cenário é preocupante. Alguns estabelecimentos fecharam e quem abriu recentemente teme encerrar em breve. “Esta rua está pelas horas da amargura, muito fraca”, lamenta um comerciante. O presidente da Junta de Freguesia do Beato debate-se “há anos” para pôr o Beato no mapa dos roteiros turísticos, mas a luta tem sido inglória. Em 2016, um projecto de criação de um roteiro para esta zona venceu o Orçamento Participativo de Lisboa, mas nunca terá saído do papel. Nas reuniões realizadas na Câmara de Lisboa, lamenta, “não se chegou a conclusões sobre a melhor forma de pôr em prática o roteiro”.

Quem visita Lisboa e torneia a estação ferroviária de Santa Apolónia, em direcção à Rua Caminhos de Ferro, acaba por inverter a marcha e não passar daqui. A sujidade e a deterioração da zona, que acolhe vários sem-abrigo à noite, é uma das razões apontadas pelos comerciantes para a fuga dos turistas do novo terminal de cruzeiros para outras partes da cidade, como Alfama ou a Graça. O afastamento daquela zona por quem vem conhecer a capital estará também relacionado com os circuitos turísticos propostos por empresas turísticas, que não contemplam a zona oriental.

 

Pelo novo terminal dos cruzeiros, inaugurado em Novembro de 2017, já passaram 558 mil pessoas. Há cada vez mais passageiros a bordo dos navios que passam pela capital e o turismo de cruzeiros está a atravessar uma das melhores fases. Segundo dados do Porto de Lisboa, 2018 foi “o melhor ano de sempre” neste sector de actividade na capital portuguesa. O impacto positivo não está, todavia, a sentir-se em alguns bairros a oriente de Santa Apolónia, onde os navios atracam.

O bairro do Vale de Santo António, na freguesia de São Vicente, está muito envelhecido. O encerramento de algumas lojas, como drogarias e cafés – onde agora se vêem jornais a tapar as montras -, e a degradação dos imóveis denunciam o estado de abandono de uma parte da cidade rica em património cultural, mas, segundo quem lá trabalha, muito pouco visitada. Pedro Proença, 43 anos, trabalha no bairro de Santa Engrácia e diz que o aumento do turismo de cruzeiros não teve muito impacto na economia local do bairro, onde trabalha há mais de uma década.

 

“Os turistas saem dos navios e vão logo em direcção ao Panteão Nacional, passam pela Feira da Ladra e dão uma volta por Alfama. Ninguém vem aqui”, garante. O aumento do número de pessoas a visitarem a cidade, acrescenta, até “trouxe mais problemas”. “Nesta rua, há mais alojamentos locais que moradores. Não há quase população local, os lisboetas é que tiveram de sair, foi muito mau. Sei de pessoas que não conseguiram alugar os apartamentos, depois de despejarem os inquilinos, e, agora, os prédios estão vazios. Ficou pior”, lamenta.

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Os benefícios do terminal inaugurado no final de 2017 são ainda pouco sentidos nos bairros em direcção à zona oriental da cidade

Os projectos de condomínios de luxo e um hotel, para o antigo Hospital da Marinha e Santa Apolónia, respectivamente, poderão até “fixar mais estrangeiros nesta zona e incentivá-los a frequentarem mais os bairros da zona oriente”, mas “não deixa de ser tudo um exagero”, critica o proprietário de um café na Rua do Vale de Santo António. No estabelecimento comercial, numa zona maioritariamente envelhecida, os principais clientes são idosos e, por vezes, aparecem alguns estrangeiros, mas “é raro”, explica ainda.

 

Uns metros acima da Capela do Vale de Santo António, construída no século XVIII, Manuel Cipriano, 68 anos, queixa-se do mesmo. “Aqui, os turistas só entram por engano. Depois, alguns levam uma garrafa de água ou uma peça de fruta. E ‘grão a grão enche a galinha o papo’”, cita o ditado popular. “O negócio está muito mau”, admite de seguida, enquanto espreita para a rua a ver quem passa. A movimentação é, porém, desanimadora e alguns só vão à mercearia para conversar. Como uma moradora de 90 anos, que ali vive há várias décadas. “O que isto era, e o que é. Perdeu-se tudo, já não há ninguém. Felizmente, ainda estou bem para vir às compras”, comenta com vivacidade.


 

 

Do outro lado da rua, entusiasmado com o aumento do turismo na capital, Paulo Costa, 62 anos, abriu um café há dois anos. Já pondera, contudo, fechá-lo. “Se o negócio não melhorar, ao final de três anos encerro. Esta rua está pelas horas da amargura, muito fraca. Há pessoas que vêm jantar no restaurante aqui ao lado, gostam muito das refeições e surpreendem-se porque ainda não o conheciam. Passam de carro e não reparam”, desabafa. Uma vez ou outra, serve pequenos-almoços a estrangeiros instalados em hostels e alojamentos locais naquele bairro, mas, explica, “muito raramente”. “Normalmente, vão para outras zonas da cidade e, se passarem aqui, é de transportes e não páram. Os cruzeiros não chegam aqui”, lamenta.

 

No restaurante A Costa, André Fernandes, 20 anos, esperava mais gente nesta altura da Páscoa, mas à hora de almoço da passada terça-feira (16 de Abril) ainda não havia clientes para provarem os grelhados tradicionais deste estabelecimento. “Ninguém vem para aqui, as pessoas procuram outras zonas. Quem sai dos cruzeiros segue directamente para Alfama. Na altura dos Santos, esta zona já mexe mais”, antecipa.

 

 

Tem-se falado em planos urbanísticos para o Vale de Santo António. Na encosta ingreme, de onde se avista o Tejo, por agora, não se vêem, porém, sinais de modernização. Ao caminhar em direcção a Xabregas, para onde também há vários projectos, o cenário piora. Vêem-se autocarros turísticos a circular, mas, no cruzamento da Igreja Madredeus com a Rua de Xabregas, todos viram à direita para a Avenida Infante Dom Henrique, em direcção, novamente, a Santa Apolónia e a Belém.

 

O Museu do Azulejo encontra-se entre os dez mais visitados, em 2018, de acordo com dados da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) do ano passado. Aníbal Marçal, 59 anos, há mais de três décadas a trabalhar naquela zona, garante, porém, que o turismo de cruzeiros não chega ali. “Aqui, os passageiros dos barcos não chegam. Talvez um dia cheguem, mas o crescimento do Beato tem sido muito lento, ao contrário do que se ouve. Os funcionários do Museu dos Azulejos, que almoçam aqui várias vezes, dizem que não sentem uma diferença substancial no número de turistas, apesar de este estar a aumentar”, conta. A Igreja de Madredeus, já na freguesia do Beato, também é pouco visitada e “o seu potencial não é conhecido”, considera. Num estabelecimento de restauração mais recente, a Tribo da Terra, Leonor Clara tem a mesma visão. “Os turistas ainda não chegaram aqui. Vêm até ao Museu do Azulejo e voltam para trás”, desabafa a dona do restaurante, ali instalado há quatro anos.

 

 

O presidente da Junta de Freguesia do Beato, Silvino Correia (PS), em declarações a O Corvo, confirma que não se sente a demanda turística na freguesia que preside. “Infelizmente, os turistas dos cruzeiros não vêm para este, lado porque os circuitos turísticos não estão encaminhados para este lado”, lamenta. O autarca socialista admite que se debate “muito”, há vários anos, para alterar este cenário, mas “a luta tem sido em vão”. Em 2016, recorda, a autarquia que lidera teve uma das propostas vencedoras do Orçamento Participativo de Lisboa, com o projecto de criação de um roteiro do património da zona oriental. “Queríamos muito pôr o Beato no mapa turístico da cidade, e este roteiro seria uma grande ajuda, mas o projecto nunca saiu do papel. Nas reuniões organizadas pela Câmara de Lisboa não se chegou a conclusões sobre a melhor forma de pôr em prática o roteiro. E continua assim, à espera de encontrar um rumo”, diz.

 

A ideia do roteiro é dar a conhecer as zonas industriais da cidade, de forma a “promover a reabilitação da zona ribeirinha entre Santa Apolónia e o Parque das Nações”, diz o resumo do projecto. A área de intervenção, lê-se ainda, abrange as zonas históricas das freguesias de Santa Maria Maior, São Vicente, Penha de França, “com particular destaque para as freguesias do Beato e Marvila, com graves problemas no espaço público, no edificado, entre outros”, elucida-se.

 

 

Há uma semana (11 de Abril), o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, entregou o Prémio Valmor e Municipal de Arquitectura 2017 ao novo Terminal de Cruzeiros de Lisboa, ao arquitecto Carrilho da Graça, autor do projecto – vencedor ex-aequo com Manuel Aires Mateus e Francisco Aires Mateus, pelo edifício sede da EDP. Medina considerou o projecto do terminal como  “de qualidade ímpar”, por se tratar de “um projecto construído em frente a um bairro histórico e não se ter registado uma única crítica”.

 

A nova gare de cruzeiros de Lisboa já causava falatório, porém, ainda antes de ser inaugurada. O terminal foi comentado pela relação que estabelece com a zona envolvente, mas também pelo impacto negativo que o turismo de massas poderia provocar. Apesar de reconhecerem a importância da obra, um mês antes da abertura do terminal, em Outubro de 2017, os comerciantes de Alfama e Santa Apolónia consideravam haver outras prioridades. Entre estas, reivindicavam a reabilitação da área circundante da estação de caminho-de-ferro, a tomada de medidas para que o comércio não dependesse só do turismo e o controle do Alojamento Local (AL) no bairro.

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