Novos e velhos hábitos em confronto na reabilitada Rua dos Anjos

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

Carla Rosado

Fotografia

URBANISMO

Arroios

3 Novembro, 2014


A regeneração do Intendente é a obra de que António Costa mais se orgulha. Centrada no largo, tem tentado forjar uma nova dinâmica nas ruas adjacentes. Há, porém, quem tema que a manutenção do clima de insegurança, associado ao tráfico e ao consumo de droga na recentemente recuperada Rua dos Anjos possa deitar tudo a perder. Mas também existe quem receie que a câmara queira “limpar o terreno”.

São quase três e meia da tarde de um dia de semana e apenas duas mesas estão ocupadas. Num ambiente pautado pela suavidade da música e a média luz que banha a decoração calorosa, duas mulheres falam trivialidades, enquanto terminam o que parece ter sido um almoço prolongado, sem tirar os olhos dos respectivos smartphones. Na outra mesa, duas raparigas de pose urbana discutem qualquer coisa em redor de um portátil. Lá fora, prostitutas, toxicodependentes, alcoólicos e demais almas-penadas circulam por entre os ocasionais jovens hipsters e casais de turistas estrangeiros de mapa na mão.

A funcionar no 5B da Rua dos Anjos, desde o início de Maio passado, o Oh Nesta Mente, restaurante que se reclama como “bio-local”, ocupa o que em tempos era o New Times – uma casa de diversão nocturna de reputação a condizer com a daquela zona. Ou seja, má. Mas isso começou a mudar. O estabelecimento agora explorado por Raquel Fernandes, 36 anos, com a ajuda da mãe, e em parceria com o dono desse antigo bar, é apenas o ponta-de-lança de um processo de regeneração começado numa zona ainda a lutar contra a decadência. “Isto é só o início de algo que tem grande potencial”, diz Raquel.

A prostituição e o consumo de drogas continuam a ser uma realidade no troço final da Rua dos Anjos, que liga a Avenida Almirante Reis ao Largo do Intendente pelo interior da malha urbana. Mas, aos poucos, vai-se começando a respirar outro ar naquele que era, desde há muito, um dos tentáculos de marginalidade, sujidade e degredo citadino a funcionar na zona do Intendente. A grande operação regeneradora desta zona da cidade, iniciada em 2011, por António Costa – que a assumiu como uma das suas bandeiras políticas, tendo por isso para ali transferido o seu gabinete, durante três anos -, tem dado os resultados por todos reconhecidos. O Largo do Intendente não tem nada a ver com o que era.

O gabinete de Costa é agora ocupado por Margarida Martins, presidente da nova Junta de Freguesia de Arroios, que agregou as anteriores freguesias de Anjos, Pena e São Jorge de Arroios. Mas o ímpeto regenerador desta área da cidade, que abrange a Mouraria, é para manter, pretendem câmara e junta. E foi em sintonia com essa dinâmica de revitalização de uma área da cidade durante décadas fechada sobre si mesma, que foram realizadas as obras de reabilitação do espaço público no troço final da Rua dos Anjos – à imagem do que havia antes sido feito no Largo do Intendente e na Rua do Benformoso. Os trabalhos começaram nos últimos dias de 2013 e terminaram no início do Verão passado.

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Depois das obras, a rua passou a ser um local de passagem para mais gente.

Foi por acreditar no poder regenerador das obras agora terminadas, mas também no contágio de “bom ambiente” decorrente das melhorias antes realizadas no largo vizinho, que Raquel para ali se mudou. Fê-lo em Maio, ainda a poeira andava no ar. Isto depois de ter estabelecido uma parceira com o dono do New Times, em Dezembro passado. Além do proprietário do espaço, desses tempos, nada ficou. “Tinha um chão de cimento e umas paredes cor-de-rosa, que eram mesmo preciso mudar”, recorda, sorrindo. O que está à vista resulta dos seus gosto e critério, num misto de apelo à memória tradicional e de sensibilidade vagamente artística.

O que não surpreende, se atentarmos ao percurso desta antiga produtora cultural. Por motivos de força maior, começou por trabalhar pela primeira vez atrás de um balcão no Cafés das Joanas, em Fevereiro do ano passado – precisamente o primeiro estabelecimento a abrir no renovado Largo do Intendente. Foi assim que conheceu Catarina Portas, que a convidou a ir atender os clientes da loja da Vida Portuguesa que abriu mesmo ao lado, em Outubro de 2013, nas instalações da antiga Fábrica Viúva Lamego. Raquel ainda lá trabalha, mas em pouco tempo conseguiu forjar o que viria a ser o Oh Nesta Mente: um café-restaurante que privilegia a produção biológica, local e “caseira”.

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Raquel Fernandes acreditou desde logo no potencial da Rua dos Anjos.

Serve sopas, sandes, comida vegetariana, panquecas, saladas, um brunch americano ou infusões naturais. Esse género de coisas. “A nossa comida é, por definição, local. Se for de produção biológica, tanto melhor. Mas prefiro ter coentros comprados no supermercado do bairro a uns biológicos que vieram de Israel. É tudo uma questão de ética e de vizinhança”, explica Raquel, que exemplifica com os licores de laranja, banana ou maçã ou os bolos produzidos por moradoras do bairro. É uma forma de também alimentar a economia local.

Uma estratégia igualmente seguida por Carina Rodrigues. Esta decoradora de 25 anos abriu, a 27 de Agosto, juntamente com o namorado Pedro, 30, a Cadeira Rendada. Onde antes, no 4da Rua dos Anjos, havia uma loja de móveis usados que durava há três décadas, existe agora um espaço que funciona como um salão de chá, mas que também vende roupa em segunda mão, artesanato, mobiliário urbano, livros e vinis. “Tentamos trabalhar o máximo que conseguimos com os produtos portugueses”, diz Carina, salientando o facto de quase todos os alimentares serem comprados nas redondezas.

“A fruta e o pão vêm das lojas do bairro, como os bolos que aqui vendemos”, diz a empresária, que tem especial confiança na qualidade dos chás, das geleias como a de laranja e gengibre e, sobretudo, das sangrias por si servidas. “Temos a melhor sangria de Lisboa, é quase oficial”, graceja. O arrefecimento gradual da temperatura, expectável nesta altura do ano, poderá ser mais facilmente digerido com chá e scones, mas Carina quer que todos passem a conhecer a casa pelas sangrias “feitas com kiwi, abacaxi ou melancia, tendo como base vinhos leves, rosés e afins”. Há quem diga que mais parece um sumo, tal a leveza.

Apesar de se orgulhar com os produtos de origem nacional e de fomentar o tal espírito bairrista, Carina diz que quem se tem demonstrado mais entusiasta da Cadeira Rendada até têm sido os turistas estrangeiros, que “adoram o espaço”. “Os portugueses ainda ficam assim de pé atrás”, diz. E o curioso é que, apesar dos predicados locais, muitos dos turistas “dizem que esta loja é tipicamente holandesa, pelo aspecto e disposição do interior”. Até poderá ser, mas o bolo podre que ali se vende é feito nas proximidades.

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Carina Fernandes mudou a loja da Estefânia para a zona do Intendente porque vê ali futuro.

Os quarteirões em redor estão cheios de gente que precisa de ganhar dinheiro e que tem algo para oferecer. Carina Rodrigues acha que a zona tem um grande potencial, precisa é que puxem por ela. Foi por acreditar nisso que transferiu para ali a loja, que já funcionava na zona da Estefânia, embora sem muita clientela. “Uma amiga disse-me que me deveria transferir para o Intendente. Já tinha ouvido falar das melhorias, mas nunca cá tinha vindo. Então, num domingo de manhã, eu e o Pedro viemos passear aqui ao largo. E apaixonámo-nos por isto”, conta.

A mesma crença nas potencialidades do lugar tem o casal Josiane e Frederico Lima, ela (30 anos) brasileira, ele (49) português. Paredes-meias com a Cadeira Rendada, abriram no dia 5 de Outubro a Retrox, que se define como loja vintage. Embora tenha semelhanças com o estabelecimento vizinho, o conceito é outro, mais assente na venda de objectos antigos colecionáveis, escolhidos com base no critério dos donos da loja e extravasando o mero conceito de decoração. “Tudo o que aqui temos é original, não há imitações”, assegura Josiane (fotografia de abertura), que começou por vender com o marido, nas feiras de domingo da Lx Factory, o imenso espólio que têm vindo a construir. “Sempre gostámos de coisas antigas”, diz. E tal gosto estende-se também aos livros, assumindo-se Frederico como um bibliófilo. Há, por isso, obras singulares, como a primeira edição de “A cidade das flores”, de Augusto Abelaira.

Mas Frederico Lima é também grande apreciador de arquitectura e estudioso da forma como as cidades funcionam. E, por isso, tem um olhar crítico sobre esta área da cidade. “Sempre achei que a zona do Intendente e da Almirante Reis era mais íntegra em termos arquitectónicos. Isto porque a longa decadência que aqui se viveu teve a vantagem de tornar a zona pouco apetecível e, logo, com pouco interesse económico para os especuladores”, explica. Frederico defende ser essa a razão pela qual, e ao contrário de outras áreas, nunca se ter ali caído na tentação de deitar abaixo prédios antigos para erguer novos – e, por regra, feios.

Apesar das evidentes melhorias recentes, a imagem de decadência persiste em colar-se aos quarteirões inferiores da Almirante Reis, como que um sentimento difuso de insegurança que insiste em fazer-se sentir. Em muitos aspectos, o Intendente continua a ser o Intendente, se bem que talvez de forma mais discreta. Ou nem tanto. Basta observar as movimentações e o género de pessoas que por ali andam, numa tapeçaria de rostos e corpos entregues a consumos vários: sexo, drogas, álcool e jogo ilegal. E nem é preciso sair deste troço da Rua dos Anjos. Tudo isso convive, mais ou menos sem pudor, com os recém-chegados inquilinos. Faz parte da rotina.

Ao final da tarde de um dia de semana, quando O Corvo ali regressa, está um carro patrulha da PSP estacionado na esquina da Travessa da Bica dos Anjos, uma das transversais onde, no início do ano, foi demolido um prédio há muito devoluto. Três agentes, dois homens e uma mulher, conversam calmamente, enquanto à volta, entre prostitutas e demais indivíduos, é evidente um silêncio tenso, como se o tempo estivesse suspenso. Momentos depois, aparece um agente fardado e outro à civil com um homem algemado, que é metido dentro do veículo policial e levado para a esquadra mais próxima. Em segundos, volta a agitação do costume.

Um quarto de hora depois, na vizinha Travessa do Forno dos Anjos, mesmo em frente à esplanada do Oh Nesta Mente e ao lado do Anjos Bar, levanta-se uma vozearia motivada pelas apostas no jogo de dados que um grupo de homens faz saltar no asfalto. De vez em quando, dão passagem a pessoas com sacos de compras ou a mães que ali passam com os filhos pela mão. Nesse mesmo local, duas noites antes, num sábado, O Corvo assistira a uma escaramuça entre dois indivíduos, que acabou por motivar a intervenção dos polícias que estavam a poucos metros, no Largo do Intendente. Não chegou para interromper as transacções que vários homens faziam, pela penumbra, na Travessa da Bica dos Anjos – a tal onde, dois dias depois, pararia o carro-patrulha.

“Há aqui ainda uma violência latente e uma certa decadência, que persiste. E não estou a falar das prostitutas, mas de algo mais difuso”, afirma Frederico Lima, notando que esse sentimento poderá mudar de forma substancial “se se apostar mais na cultura e em mais lojas”. E vai mais longe no seu programa de intenções, defendendo para ali o que, por regra, é associado a algo negativo: a gentrificação, processo de valorização imobiliária de uma zona antes deprimida, resultando numa alteração da sua estrutura social – muitas vezes, conduzindo à saída das pessoas com baixos rendimentos.

Isso mesmo. “Estamos apenas no princípio do princípio do processo de regeneração de toda esta área. A gentrificação vai ser uma dinâmica que vai ter de acontecer aqui, mais tarde ou mais cedo. E eu não vejo o fenómeno como negativo, antes pelo contrário. Quando se concretiza, significa que a zona se valorizou em vários aspectos”. Dinâmica da qual ele e Josiane querem ser actores. Atrás do belíssimo balcão de madeira trazido de uma velha retrosaria de Algés, vêem-se não apenas como comerciantes, mas também como agentes culturais. O que vendem resulta de imensa pesquisa e tem uma forte carga simbólica.

Bem mais explícita nessa missão de activismo cultural, mas com uma visão diametralmente oposta do fenómeno gentrificador, é a associação MOB. Formada em 2012, no rescaldo da grande manifestação de 15 de Setembro desse ano contra as políticas de austeridade, e a partir da junção de vontades dos Precários Inflexíveis – Associação de Combate à Precariedade e da cooperativa cultural Crew Hassan, começou por funcionar na Travessa da Queimada, ao Bairro Alto. O preço da renda que aí pagavam, associado às dificuldades trazidas pela crise, fizeram com que a mudança para “um sítio onde se pudesse fazer o mínimo de barulho e que fosse central” os levasse até ao 12F, no troço final da Rua dos Anjos, conta Ana Feijão, 31, uma das associadas e principais dinamizadoras.

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Ana Feijão não acredita numa revitalização urbana que afaste alguns membros da comunidade.

A associação abriu ali portas em Abril, no auge das obras de requalificação do espaço público. Por morar há alguns anos nas imediações da Almirante Reis, Ana acabou por ser importante na escolha da nova localização desta associação com um posicionamento ideológico e cultural à esquerda – e que, na transição para ali, viu sair a Crew Hassan e entrar o Habita-Colectivo de Direito à Habitação e à Cidade. Mas ainda há espaço para outros projectos, como “A Bela Rama”, colectivo de voluntários que, cada terça-feira, organiza ali a venda de cabazes de produtos hortícolas de produção biológica.

Além de ser um lugar de encontro e partilha de ideias e afectividades, espaço de diversão nocturna, o MOB é sobretudo um centro cultural, onde ocorrem debates, aulas, palestras, exposições, leituras, música e o lançamento de livros. A 12 de Setembro, a associação abriu uma livraria na porta ao lado, a qual funciona de forma autónoma, de quarta-feira a sábado. Um local estranho para uma livraria, sugerimos a António Santos, 57 anos, veterano livreiro aos comandos da loja. “Há pessoas que ficam surpreendidas, mas também existem outras que aparecem e nos encomendam determinados livros. Esta é a única livraria nesta zona da cidade”, salienta ele.

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António Santos orgulha-se de estar à frente da livraria do MOB, a única desta zona da cidade.

Para além do beneficiar da renda barata do espaço que agora ocupa, ao instalar-se num lugar que sempre foi conhecido pela má fama, existe da parte do MOB um assumido gesto de missão cívica e ideológica. “Quando viemos para aqui, sabíamos o que isto era. Conhecíamos as contradições que esta área tem, o que é, neste momento, o Largo do Intendente e o que são as ruas à volta”, diz Ana Feijão, numa resposta indirecta a quem se queixa do que está à vista e mesmo do que se oculta. “Por muitas limpezas que se possa haver, este sítio é isto. A vida é feita de contradições, e também é isto”, afirma, ao pensar nas ideias racionalistas e funcionais associadas a um processo de reconversão urbana como este.

Para ela, não há dúvidas. “A gentrificação é uma coisa má, porque implica apagar o passado, a memória de um lugar”, considera, sem deixar de fazer notar que “as prostitutas fazem parte deste espaço e da sua história, e conhecem-mo muito bem”. Ana concorda que era necessária a intervenção de reabilitação do espaço público, que neste caso implicou a repavimentação integral da rua. Mas teme que, com ela, “haja a tentação de limpar o terreno”. Afinal, será isso que desejam as autoridades municipais.

Uma delas poderá surgir em breve, se for posta em prática a proposta apresentada por Raquel Fernandes à presidente da Junta de Freguesia de Arroios: no espaço vazio, rodeado por uma vedação, onde foi demolido o tal prédio, e onde o Corvo viu um indivíduo algemado a ser levado pela polícia, deverá nascer um parque infantil. Poderá bem ser esse o género de complemento à dinâmica defendida, há poucos meses, por António Costa, numa reunião pública. “O Largo do Intendente precisa de mais cafés”, disse, salientando que “não se pode esperar que seja ocupado em permanência por polícia”. “Algum dia, as coisas terão que normalizar”, disse, na altura.

Questionada sobre se tem consciência de que, mesmo que não seja intencional, o MOB acaba por desempenhar um papel de “normalização” de uma área considerada “deprimida” – obedecendo, de certa forma, a um guião estabelecido pelos responsáveis do planeamento urbanístico da câmara e replicando casos de gentrificação vividos em outras grandes cidades -, Ana Feijão não demora a elaborar a resposta. “Sim, claro. Isso pode acontecer. Este sítio vai, necessariamente, ter coisas novas”.

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