Associações de moradores de Lisboa acusam pelouro do Urbanismo de “falta de transparência e ilegalidades”
Grupos de residentes e associações ligadas ao direito à habitação criticaram, ao início da tarde desta quarta-feira, a política de urbanismo da autarquia ao licenciar empreendimentos de luxo em bairros históricos. E denunciaram o que consideram ser “as irregularidades, a falta de informação e a opacidade da Câmara de Lisboa” em relação a vários projectos da empresa imobiliária Stone Capital. Só para Alfama estão projectados 184 apartamentos de luxo. Recentemente, na Graça, abateram-se dezenas de árvores de um logradouro para se construir um condomínio fechado, onde haverá fogos com valores que ultrapassam os 2 milhões de euros. Os representantes dos movimentos cívicos manifestaram-se frente aos Paços do Concelho, ao mesmo tempo que decorria uma reunião do executivo camarário. Nesta, o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, garantiu que todas as operações urbanísticas estão dentro da legalidade e não se mostrou disponível a reconsiderar nenhuma delas.
Nos últimos dois anos, as petições e os protestos contra a construção de condomínios de luxo, em plenos bairros históricos de Lisboa, dispararam. Alguns dos mais polémicos pertencem a Arthur e Geoffroy Moreno, donos da imobiliária Stone Capital. Neste momento, os dois irmãos já têm mais de quarenta empreendimentos – em fase de construção ou concluídos – na cidade, alguns do quais têm sido alvo de fortes críticas por parte de certos movimentos cívicos. Ao início da tarde desta quarta-feira (24 de Abril), alguns autores de tais abaixo-assinados, representantes de movimentos cívicos e grupos de moradores juntaram-se à entrada da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para denunciarem o que consideram ser a “falta de transparência” e as “intenções especulativas” da referida empresa e ainda acusarem a vereação do Urbanismo de não cumprir com as suas obrigações.
Representantes do movimento Vizinhos da Rua do Paraíso, Vizinhos do Palácio de Santa Helena, Colectivo Glória, Associação do Património e da População de Alfama (APPA), STOP Despejos e Habita falaram, um de cada vez, aos jornalistas, repetindo queixas comuns e salientando o que os une: “a luta contra uma imobiliária que detém, neste momento, mais de 150 mil metros quadrados na cidade”. Catherine Morisseau, que tem intervindo em algumas sessões da Assembleia Municipal de Lisboa (AML), nos últimos meses, contra a transformação do antigo Hospital da Marinha em apartamentos de luxo, foi a mais severa nas críticas. “A autarquia criou um Plano Director Municipal (PDM) muito evasivo em relação ao que é permitido, ou não, e a classificação como ‘projecto estruturante’ dos projectos que envolvem muito dinheiro, um sistema que permite ao vereador do Urbanismo decidir sozinho a aprovação final”, acusa.
As obras no Palácio de Santa Helena, em Alfama, começaram a ser contestadas em 2017
A moradora da Rua do Paraíso, onde será construído um novo condomínio, diz que “o que está a acontecer na cidade é o resultado de uma cumplicidade entre a Stone Capital e a Câmara de Lisboa”. “A imobiliária obtém da câmara a aprovação dos projectos num piscar de olhos, mesmo quando estes apresentam irregularidades. Enquanto os cidadãos ‘normais’ têm grandes dificuldades para obterem aprovações para obras mínimas. A câmara não só aprova os projectos da Stone, como impede que os princípios básicos da democracia sejam respeitados”, acusa. Catherine referia-se à dificuldade em aceder aos projectos, “para que os moradores os possam contestar a tempo e horas”, e à alegada falta de discussão pública. Catherine critica ainda o recentemente anunciado projecto da imobiliária – colocação de seis apartamentos na Mouraria com rendas acessíveis. “A Stone Capital lava a cara com um falso projecto de rendas acessíveis, que, na verdade, não tem nada de acessível para um português da classe média ou baixa”, critica.
Só para Alfama, a Stone Capital tem projectados 186 apartamentos de luxo, estando já 26 concluídos. Júlio Soares, representante dos moradores dos prédios junto ao Palácio de Santa Helena – a ser requalificado para a construção de um condomínio de luxo –, debate-se pela suspensão da obra desde 2017. Segundo o habitante de Alfama, os edifícios à volta do palácio do século XVII têm estragos decorrentes da obra da Stone Capital. “Existem rachas em todos os prédios à volta, alguns vão ficar sem luz natural com as novas construções, e terraços ao nível do segundo andar nos quais as pessoas vão perder a privacidade”, critica. A petição contra o avanço da obra foi entregue há um ano e os moradores queixam-se de continuarem com “vários problemas por resolver”. “Não é esta a cidade que quero e não quero sair de Lisboa, onde nasci e sempre vivi, assim como todos os moradores das zonas históricas”, afirma.
A presidente da Associação do Património e População de Alfama (APPA), Lurdes Pinheiro, lembrou que o bairro “continua a perder moradores, património e a ganhar muitos condomínios fechados” e pediu um travão no avanço destas construções. “Isto tem de parar, a câmara tem de tomar mais medidas. Hoje está previsto aprovarem um programa de habitação com mais cem casas, mas isso não chega. A câmara tem de se preocupar mais com Lisboa e não transformá-la numa cidade de ricos. Não podemos continuar a fazer os condomínios sem discussão pública, tudo nas costas de quem vive e mora na cidade”, critica.
A reabilitação de edifícios com alegados fins especulativos e o consequente despejo de moradores não é só “um problema de Alfama, do Castelo ou da Mouraria”, lembra Rita Silva, dirigente da associação Habita, que tem ajudado vários habitantes da cidade a encontrarem alternativas residenciais, quando são despejados. “É um problema da cidade inteira, há muitos fundos como a Stone e este tipo de fundos está a apoderar-se da cidade e a açambarcar Lisboa, para transformá-la num tipo de negócio virado para o luxo, o arrendamento temporário e o turismo, o que está a expulsar as pessoas directa ou indirectamente”, reforça.
A activista garante que tem vindo a receber um número cada vez maior de pessoas “que já não conseguem encontrar uma casa ou aparecem com carta de despejo na mão”. “Estamos perante um momento muito difícil, a lutar pelo direito à cidade e por um lugar para viver. A câmara e o governo são as entidades públicas que acomodam, preparam, apoiam e incentivam este tipo de projectos e não criam a regulação necessária para proteger as pessoas que aqui vivem e trabalham”, acusa.
Em representação da associação STOP Despejos, Jaume Sastre denunciou a que considera ser “uma das causas dos despejos mais frequentes nas cidade, os processos de especulação promovidos por fundos de investimento e empresas imobiliárias como a Stone Capital, que transforma edifícios históricos em apartamentos de luxo com a cumplicidade da Câmara de Lisboa”. “A empresa afirma que reabilita edifícios e bairros degradados e que, assim, preserva o património. Mas este discurso, partilhado pela câmara, é uma armadilha. Parece que a única forma de estar e ocupar estes edifícios é deixar que os grandes investidores lucrem com eles fazendo apartamentos de luxo”, censura.
No início do mês passado, no bairro da Graça, freguesia de São Vicente, foi conhecido um novo projecto: a construção de outro empreendimento de luxo – com apartamentos a custarem entre 600 mil e dois milhões de euros, estando entre estas nove já vendidas –, num terreno antes com mais de cinquenta árvores, entretanto abatidas. Os moradores tiveram conhecimento das intenções da promotora Stone Capital quando as máquinas entraram logradouro adentro e derrubaram quase todas as árvores.
Nikolas Sousa, representante do Colectivo da Glória, lançou uma petição contra este projecto que, em pouco mais de um mês, já conta com 1107 assinaturas. “Este condomínio fechado, denominado Jardim da Glória, destrói o tecido social e económico do bairro. Devido ao impacto enorme que vai ter em termos de volumetria, deveria haver uma consulta pública”, critica Nikolas Sousa, que momentos depois interveio na reunião camarária. O morador acusa ainda o executivo camarário de não ter em conta a opinião dos cidadãos. “O projecto foi aprovado em 2016, não houve consulta pública. Quando a câmara apresentou o Plano Director Municipal (PDM), em 2012, disse ‘a cidade é das pessoas e para as pessoas, é com elas e para elas que deve ser planeada’, mas em sete anos não fez nada disso”, critica.
O morador deslocou-se à reunião camarária desta quarta-feira (24 de Abril) para entregar a petição contra o projecto da promotora. E aproveitou a ocasião para pedir mais habitação acessível e questionou os vereadores se foram avisados da existência deste projecto. O presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, recordou os programas de habitação acessível municipais em curso e o contributo do programa Uma Praça em Cada Bairro para a criação de espaços de lazer na capital. “Não podemos adquirir todos os terrenos privados onde se desenvolvem projectos na cidade. Lutamos para encontrar os recursos para fazermos os investimentos no património que a câmara já tem”, sublinha. “O que a câmara tem de fazer é cumprir a lei relativamente aos direitos de edificabilidade, não podemos fazer diferente”, garante.
O vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, também em resposta à intervenção, garante que o projecto Jardim da Glória, da Stone Capital, cumpre o Plano Director Municipal (PDM), o qual prevê, explica, que aquela área “seja um interior de quarteirão edificável, com excepção de uma parte verde que ficou assegurada e respeitada”. “Não contesto que se trate de um empreendimento de luxo, mas, quando a câmara aprova projectos, não pode pôr um rótulo a dizer que isto é de luxo ou é social, ou aqui só se pode vender com as rendas x e y ou z, não é da nossa competência”, frisou.
O vereador do Urbanismo admitiu “concordar com algumas coisas” que ouviu do munícipe, mas, a maioria “não concorda”. “Não concordo com uma municipalização dos solos em Lisboa, não vejo que se justifique a expropriação de toda aquela área para habitação acessível e um jardim público”, afirma. Salgado lembrou ainda que a operação urbanística para aquela parte da cidade, aprovada em 2016, “não é uma operação de loteamento”, mas de “um projecto de operação urbanística de um edifício único”. “Esse edifício tem uma área de construção com um índice inferior ao índice fixado no plano director. Alguns edifícios que existiam são reabilitados”, explicou.
A resposta do vereador suscitou várias reacções na oposição, reacendendo o debate sobre a alegada falta de transparência da autarquia na aprovação de empreendimentos deste cariz, ao não levar estes projectos urbanísticos a reunião pública ou camarária. O vereador do CDS João Gonçalves Pereira perguntou a Salgado se as obras estão licenciadas e se já arrancaram, questões às quais obteve resposta positiva. Muita crítica em relação processo, a vereadora do PCP Ana Jara acusou a câmara de promover “um jogo urbanístico por forma a licenciar estes gigantescos edifícios como edifícios únicos, que nunca foram”.
“Mais que um edifício único, tem a aparência de um loteamento. Na apreciação do projecto, há várias recusas à construção neste loteamento, durante vários anos, e depois aparece um PDM de 2012 que proporciona isto. E esta construção dentro de um logradouro, que é uma área verde tão rara, e cada vez mais rara, devia ser compatibilizada com uso público”, disse a vereadora comunista, que se alongou em várias críticas à forma de actuação do pelouro do Urbanismo. “Temos um vereador a dizer que está sempre tudo dentro da legalidade e o nosso trabalho dos eleitos fica extremamente reduzido. Não se percebe como este projecto é licenciado e aprovado. Chama-se Jardim da Glória, o que até parece um pouco irónico câmara”, concluiu.
O Corvo enviou perguntas à Stone Capital, confrontando-a com as acusações, mas não teve respostas até ao momento da publicação deste artigo.