Há famílias a ocupar ilegalmente lojas de prédios municipais em Lisboa e a convertê-las na sua habitação

REPORTAGEM
Samuel Alemão

Texto

VIDA NA CIDADE

Santa Clara

26 Outubro, 2018

“Qual é o polícia que me vem tirar daqui? Não vou viver para a rua com os meus filhos. Prefiro morrer aqui, a sair”, assegura Samuel Gouveia, 31 anos, no meio da sua espaçosa sala de estar, no canto da qual funciona a cozinha. Uma tipologia, aliás, recorrente em várias das antigas lojas de prédios municipais de habitação social da Ameixoeira, na freguesia de Santa Clara, ocupadas de forma ilegal por famílias da zona. Quem o faz assegura não ter outra escolha, devido às dificuldades do mercado e à alegada inacção da Câmara Municipal de Lisboa (CML) na resposta aos pedidos por uma casa. Um cenário que se repetirá em diversos bairros capital administrados pela empresa municipal Gebalis, garante o PSD, que na tarde desta quinta-feira (25 de Outubro) convidou os jornalistas a visitarem blocos habitacionais naquela parte da cidade.

Razão suficiente para levar os vereadores laranja, Teresa Leal Coelho e João Pedro Costa, a pedirem uma rápida acção da autarquia na identificação dos “espaços não habitacionais” devolutos, para assim os poder converter em fracções residenciais para os mais carenciados, sobretudo idosos e pessoas com mobilidade reduzida. A única condição é que as mesmas cumpram os requisitos técnicos para tal mudança de uso, dizem os eleitos social-democratas. “Não podemos tolerar que haja propriedade municipal abandonada, no meio desta crise habitacional e com 4.600 famílias em lista de espera para ter casa”, afirma a vereadora Teresa Leal Coelho, destacando os pedidos insistentes do seu partido, no último ano, para que a câmara disponibilize a lista das “casas por ocupar” integrantes do parque habitacional municipal. Solicitação que, diz, não tem recebido qualquer reposta. Em Junho passado, O Corvo noticiava as tentativas da autarquia em perceber ao certo quantas das suas casas estão ocupadas de forma ilegal.

No caso da Rua Fernanda Alves, localizada na Zona 2 da Ameixoeira, na fronteira Norte da capital, são frequentes os relatos de situações descritas como desesperadas como justificação para os arrombamentos das portas de lojas situadas em prédios de habitação social. Muitas delas abandonadas há anos ou até nunca ocupadas. “Havia aqui uma associação, mas eles tinham deixado isto ao abandono. Vinha para aqui gente drogar-se, havia montes de lixo, de seringas e muitos ratos. Limpei esta porcaria toda, fiz obras, coloquei um texto falso, levantei uma parede, construí a casa de banho e assim os meus filhos já têm uma casa para viver em condições”, conta Samuel, vendedor ambulante, que ali vive, há cerca de seis meses, com a mulher e as duas crianças, Gessiana (8) e Kevin (6).

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A porta da nova casa de Samuel Gouveia, que ali diz ter investido "dois ou três mil euros em arranjos"

Num bairro habitado maioritariamente por famílias ciganas, ouvem-se histórias de gente que justifica tais acções com o direito à dignidade habitacional. “Assumo que o fiz por necessidade. A polícia municipal passa aqui e não tem dito nada”, diz o inquilino irregular. Esta é, de resto, uma atitude idêntica à dos outros residentes à margem da lei que, na tarde desta quinta-feira, franquearam, à comitiva laranja e à comunicação social, as portas das fracções de que agora dispõem como sendo os seus lares. “Estou de acordo em pagar uma renda, claro. Se legalizarem a minha situação, não tenho problemas com isso. Quero é ter uma casa em condições”, explica Samuel, que antes vivia num andar do mesmo prédio com outros familiares. Ao todo, eram onze. Razão pela qual teve de sair e ocupar a loja, no rés-do-chão, diz. “Já gastei aqui dois ou três mil euros em arranjos”, assevera.


 

Também Luís Ramos, 25 anos, alega não ter tido outra escolha se não a de entrar numa antiga loja da Rua Fernanda Alves, a qual, garante, até já tinha a porta arrombada. “Não forcei nada. Isto aqui, antes, era um local onde vinha para aí pessoal fumar ‘ganzas’. Precisava de uma casa, não podia estar mais em casa da minha mãe, sobretudo por estar incompatibilizado com o meu irmão, que é uma pessoa problemática”, relata, tentando assim legitimar a ocupação da fracção onde vive com a mulher, Maria Margarida (27) e o filho de um ano, o qual herdou o nome do progenitor. Luís está a morar ali há cinco anos, sem pagar renda e tem vivido do Rendimento Social de Inserção (RSI), tal como a companheira. Encontra-se desempregado há cerca de um ano, após ter perdido o trabalho como cantoneiro. Mas diz que gostaria de pagar renda, se a sua “situação” fosse legalizada. “Penso que eles sabem que estou aqui, porque nunca me vieram chatear”, diz.

 

 

Uns poucos metros mais à frente, também Jorge Corneta, 23 anos, e Sónia, 18, dizem-se dispostos para regularizar a sua ocupação ilegal do património municipal, que dura há já sete anos. Ambos com o sexto ano de escolaridade e também dependentes do RSI – no conjunto, recebem 379 euros – , queixam-se da dificuldade em encontrar habitação a preços compatíveis com as sua possibilidades. E as listas de espera da Gebalis, dizem, são de molde a deixá-los desencorajados. “Todos os anos vou lá inscrever-me”, diz Jorge, encolhendo os ombros, justificando assim a ilegalidade. “Estou disposta a pagar uma renda à medida das nossas necessidades”, diz Sónia, mãe de uma criança de três anos e à espera do segundo filho. Interrogados se alguma vez trabalharam, ambos abanam a cabeça em sinal de reprovação. “Eu quero trabalhar, mas, com o sexto ano, não arranjamos emprego em lado nenhum”, queixa-se Sónia, contendo as lágrimas.

 

Ouvindo tal descrição, a vereadora Teresa Leal Coelho lembra-lhes a importância de “estudar e trabalhar”. Algo que já fizera no início da visita, quando dizia ao chefe da comunidade daquela zona, Novélio Maia Fonseca (69), que “uma das preocupações na Ameixoeira é a de que as crianças ciganas vão à escola”. “A ida para a universidade é fundamental, até por uma questão de igualdade de oportunidades”, dizia a também deputada na Assembleia da República. “Não havendo discriminação, eles infiltram-se na sociedade”, retorqui-lhe, sorridente, o líder comunitário.

 

 

Neste momento, porém, a preocupação maior, tanto de Leal Coelho, como do seu colega João Pedro Costa, é constituída pelo que ambos consideram ser “a grave crise habitacional da cidade”, que acreditam estar a ser intensificada pela “incapacidade da Câmara de Lisboa em dar resposta às 4.600 famílias que se encontram em lista de espera, apesar de o município dispor de um enorme parque habitacional, seja em bairros ou propriedade dispersa”. De acordo com dados recolhidos pelo PSD, “um número significativo” dos 1300 espaços não habitacionais sob gestão da Gebalis “acabam por não desempenhar a função para a qual foram destinados, encontrando-se actualmente vazios ou abusivamente ocupados”. O problema, diz Teresa Leal Coelho, é que os próprios serviços camarários não são capazes de avançar com uma estimativa do número de fracções nessa situação de ocupação ilegal.

 

 

“Não pactuamos com ocupações. Mas a câmara deve recuperar este património e atribuí-lo a quem precisa. Não há razões para termos esta situação”, afirma a vereadora, que se confessou “chocada” com os casos ontem revelados. “Esta é uma Lisboa esquecida”, disseram em uníssono os vereadores social-democratas, acusando a câmara liderada por Fernando Medina (PS) de “incapacidade, falta de método e planeamento”. “Estamos a viver um grave problema de habitação na cidade e a câmara poderia resolver isto com método, organização e uma correcta gestão, fazendo uso de uma base de dados actualizada, que responda às necessidades das pessoas”, considera João Pedro Costa, afirmando que a câmara “tem de ajudar a criar condições para que o mercado de habitação volte a funcionar”. O vereador promete ainda que o PSD apresentará, nos próximos meses, uma proposta de relevo para o sector na capital.

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